sábado, 17 de agosto de 2024

A casa número 18 da rua Archer


Quando Michael Dunbar e a Noiva do Nariz Quebrado se casaram, a primeira coisa que fizeram foi empurrar o piano outra vez pela rua Pepper, até o número 37. Precisaram da ajuda de mais seis homens da vizinhança e também de um engradado de cerveja. (A exigência era a mesma dos garotos de Bernborough: a cerveja tinha que estar gelada.) Entraram pelos fundos da casa para não terem que subir os degraus.
A gente tinha que ter chamado os mesmos caras da outra vez — disse Michael mais tarde. Apoiou um dos braços no tampo de nogueira, como se ele e o piano fossem bons amigos. — Eles entregaram o piano no endereço certo, no fim das contas.
Penny Dunbar apenas sorriu.
Estava com uma das mãos apoiada no instrumento.
E a outra nele.

***

Alguns anos depois, eles compraram a casa dos sonhos e para lá se mudaram. Era relativamente perto, próximo a um hipódromo, com uma pista e cocheiras logo atrás.
Fizeram a visita numa manhã de sábado:
Uma casa na rua Archer, número 18.
O corretor aguardava lá dentro e perguntou o nome deles, os únicos que deve ter ouvido naquele dia, porque pelo visto mais ninguém havia demonstrado interesse pelo imóvel.
Na casa da rua Archer havia corredor, havia cozinha. Havia três quartos, um banheirinho, um quintalzão com um grande varal redondo, e a imaginação de Penny e Michael ganhou asas; viram crianças correndo pelo gramado e surtos de caos pueril. Para eles, era o paraíso, amor à primeira vista:
Com um dos braços na haste do varal e os olhos focados nas nuvens acima, Penny ouviu um barulho. Ela se virou para o corretor e indagou:
Com licença, mas que barulho é esse?
Perdão?
Era o momento que ele mais temia, possivelmente a razão de ter perdido os outros casais a quem mostrara a propriedade — todos com sonhos e ideais parecidos sobre a vida naquela casa. Era provável que também houvessem imaginado as mesmas crianças risonhas arrumando confusão por causa de trapaças nos jogos de futebol ou arrastando bonecas pela relva e pela terra.
Não está ouvindo? — insistiu ela.
O homem ajustou a gravata.
Ah, isso?

***

Na noite anterior, quando estudaram o mapa do bairro no guia de ruas, viram que havia um terreno atrás da casa, e a legenda dizia apenas Cercanias. Agora Penny estava certa de que ouvia cascos se aproximando nos fundos e decifrou o cheiro que pairava no quintal — de animal, feno e cavalos.
O corretor se apressou para levá-los para dentro da casa.
Não deu certo.
Penny estava hipnotizada pelo trote vindo do outro lado da cerca.
Ei, Michael! — chamou ela. — Pode me levantar?
Ele cruzou o quintal e foi até ela.
Os braços dele, as coxas de varapau dela.

***

Do outro lado, Penny viu as cocheiras, o hipódromo.
Atrás da cerca, uma pista de asfalto fazia a curva ao redor da casa; a sra. Chilman era a única vizinha. Então Penny viu o gramado e as construções com telhado inclinado, e a cerca branca, obrigatória no esporte — dali, mais pareciam palitos de dente.
Cavalariços conduziam os animais do hipódromo para as cocheiras, a maioria sem notar a presença dela, alguns acenando com a cabeça. Um ou dois minutos depois, um deles, bem mais velho do que os outros, se aproximou, guiando o último cavalo. O animal baixou a cabeça, e o homem o enxotou com desdém. Pouco antes de avistar Penny, deu um tapinha na boca do animal.
Vem logo!
Penny, como não poderia deixar de ser, sorriu diante da cena.
Bom tarrrde! — Ela pigarreou. — Olá!
O cavalo notou a presença dela na hora, mas o cavalariço continuou alheio.
Ué? Tem alguém aí? — perguntou o homem.
Aqui em cima.
Jesus amado, assim você me mata do coração!
Era um tipo atarracado, de cabelo encaracolado, com rosto e olhos úmidos, e o cavalo o arrastava pelo terreno, se aproximando de Penélope. O animal tinha um raio branco traçado do topo da cabeça até as narinas, e o resto era marrom-nogueira. O cavalariço viu que não tinha saída. O cavalo não ia chegar à cocheira tão cedo.
Tá certo. Vai com tudo, meu bem.
É sério?
Sim, pode fazer carinho. Esse aqui é um baita de um bunda-mole.
Penny checou se estava tudo bem com Michael, porque, verdade seja dita, ela era leve, mas não era feita de vento, e os braços do marido estavam começando a tremer.
Ela mergulhou a mão no pelo aveludado da faixa branca e reluzente do animal e mal pôde conter a alegria. Ela encarou seus olhinhos curiosos. Açúcar. Por acaso tem açúcar aí, senhora?
Qual é o nome dele? — perguntou Penélope.
Bom, o nome de corrida é Patrimônio da Cidade. — Ele deu um tapinha no peito do cavalo. — Nas cocheiras, chamam de Sangue nos Olhos, mas ele não faz jus ao nome.
Ele não é muito rápido?
O cavalariço riu.
Você é mesmo nova por aqui, não é? Os cavalos dessas cocheiras são uns inúteis.
Ainda assim, Penélope ficou encantada, dando risada quando o cavalo sacudiu a cabeça, pedindo mais carinho.
Oi, Sangue nos Olhos.
Aqui, dá isso aqui pra ele. — Ele ofereceu alguns torrões de açúcar encardidos para ela. — Pode dar. Esse pangaré é uma causa perdida, não tem jeito.
Debaixo dela, Michael Dunbar estava concentrado em seus braços, se perguntando por quanto tempo ainda conseguiriam aguentá-la.
Enquanto isso, o corretor só pensava: vendida.

Markus Zusak, em O construtor de pontes

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