segunda-feira, 10 de junho de 2024

O destino



Sentada sob o iroco, a minha avó fazia um tapete enquanto eu e a Taiwo brincávamos ao lado dela. Ouvimos o barulho das galinhas e logo depois o pio triste de um pássaro escondido entre a folhagem da Grande Árvore, e a minha avó disse que aquilo não era bom sinal. Vimos então cinco homens contornando a Grande Sombra e a minha avó disse que eram guerreiros do rei Adandozan, por causa das marcas que tinham nos rostos. Eu falava iorubá e eve, e eles conversavam em um iorubá um pouco diferente do meu, mas entendi que iam levar as galinhas, em nome do rei. A minha avó não se mexeu, não disse que concordava nem que discordava, e eu e a Taiwo não tiramos os olhos do chão. Os guerreiros já estavam de partida quando um deles se interessou pelo tapete da minha avó e reconheceu alguns símbolos de Dan. Ele tirou o tapete das mãos dela e começou a chamá-la de feiticeira, enquanto outro guerreiro apontava a lança para o desenho da cobra que engole o próprio rabo que havia, mais sugerida do que desenhada, na parede acima da entrada da nossa casa.
Os guerreiros conversavam depressa e aos gritos, decerto resolvendo o que fazer, enquanto eu e a Taiwo nos demos as mãos, sem entendermos direito o que estava acontecendo. A minha avó se atirou ao chão diante deles, implorando que fossem embora, que levassem tudo o que quisessem levar, que Olorum os acompanhasse. Eles não a ouviam e falavam de feitiços, de pragas e de Agontimé. Como se já não houvesse sombra sob o iroco, uma outra sombra ainda mais escura e no formato de asas de um grande pássaro voou sobre a cabeça da minha avó. Eu já tinha ouvido falar daquele tipo de pássaro, era uma das ìyámis, uma das sete mulheres-pássaro que quase sempre carregam más notícias.
Atraída pelo barulho, a minha mãe surgiu correndo da beira do rio, onde se banhava acompanhada do Kokumo, que estava pescando. Naquele dia, a minha mãe tinha acabado de voltar do mercado, lavado as pinturas com que enfeitava o corpo e passado ori nele. Eu nunca tinha visto a minha mãe tão bonita. Ela tinha peitos pequenos, dentes brancos e a pele escura que brilhava ainda mais por causa do ori. A minha mãe cuidava dos meus cabelos e dos cabelos da Taiwo como cuidava dos dela, dividindo em muitas partes e prendendo rolinhos enfeitados com fitas coloridas, que comprava no mercado. O Kokumo apareceu correndo atrás dela e foi pego por um dos guerreiros, que o agarrou pela cintura e o levantou, até que ele ficasse com os pés balançando no ar. Outro guerreiro pegou a minha mãe pelos braços e a apertou contra o próprio corpo, e, de imediato, o membro dele começou a crescer. Ele disse que queria se deitar com a minha mãe e ela cuspiu na cara dele. O Kokumo chutava o ar, querendo se soltar para nos defender, pois tinha sangue guerreiro, e foi o primeiro a ser morto. Um dos guerreiros, que até então tinha ficado apenas olhando e sorrindo, chegou bem perto do Kokumo e enfiou a lança na barriga dele. Eu me lembro do sangue que saiu da boca do meu irmão e espirrou na roupa do guerreiro, e continuou a escorrer mesmo depois que o jogaram no chão, com a cara virada para baixo. O sangue imediatamente formou um riozinho, daqueles turvos e de água espessa, como os que recebem muita água de chuva na cabeceira.
A minha avó continuava deitada na frente de um dos guerreiros, batendo a cabeça no chão e pedindo que fossem embora, mas eles não se importavam. O guerreiro que segurava a minha mãe, o que aos meus olhos era só membro duro e grande, jogou-a no chão e se enfiou dentro da racha dela. Ela chorava e eu olhava assustada, imaginando que devia estar doendo, imaginando que a minha avó, por ser grande, também já tinha feito aquilo e sabia que não era bom, pois ela também chorava e pedia que parassem, perguntando se já não estavam satisfeitos com o que tinham feito ao Kokumo. Eles continuaram fingindo que ela não existia. Na estrada que passava ao lado da nossa casa, algumas pessoas pararam para olhar, mas ninguém se aproximou. Dois dos guerreiros repararam em mim e na Taiwo. O primeiro pegou uma das mãos dela e apertou em volta do membro dele, e logo foi copiado pelo amigo, que usou a minha mão. Acho que a direita, porque a Taiwo estava sentada à minha esquerda e nem por um momento nos separamos, apertando ainda com mais força as mãos livres. O guerreiro forçava a minha mão contra o membro, que, de início, estava mole, e mexia o corpo para a frente e para trás, fazendo com que ficasse duro e quente. A minha avó chorava encobrindo o rosto, não sei se para esconder as lágrimas ou se para se esconder do que via. Um outro guerreiro se aproximou dela e, com a ponta da lança, sem se importar se estava machucando ou não, descobriu os seus olhos, mandando que ela olhasse o que estava acontecendo, dizendo que a feitiçaria dela nada adiantava contra a força deles.
Eu lembro que o riozinho de sangue que escorreu da boca do Kokumo quase alcançou o tronco do iroco, e as formigas tiveram que se desviar dele. Elas andavam com as costas carregadas de folhas, e quando chegavam à margem do riozinho, se desviavam e seguiam ao longo dele, com pressa para alcançar o final, cruzar na frente e seguir adiante. Como se acompanhasse a pressa das formigas, o guerreiro acelerava o movimento com o corpo e apertava cada vez mais a minha mão ao redor do membro, enquanto a outra estava amortecida dentro da mão da Taiwo, de tão forte que nos segurávamos, parecendo mesmo uma só pessoa, e não duas. Acho que os guerreiros também perceberam isso e riram, divertidos. A minha mãe ficou quieta, calada, e nem mesmo se mexeu quando outro guerreiro tomou o lugar do que estava dentro dela. Quase ao mesmo tempo, a minha mão e a da Taiwo ficaram sujas com o líquido pegajoso e esbranquiçado que saiu dos membros dos guerreiros e espirrou longe, quase atingindo o riozinho vermelho-escuro do Kokumo, que, àquela hora, já tinha perdido a força, sem conseguir chegar ao tronco do iroco, embora tivesse ficado mais largo. Percebi que a Taiwo estava observando o mesmo que eu, mas não comentamos nada, nem mesmo apostamos se o riozinho ainda se moveria ou não. Depois de um tempo, os guerreiros se deitaram para descansar, menos o que ainda estava dentro da minha mãe. Todo o resto permaneceu quieto, calado, e até mesmo o bando de pássaros que costumava passar por cima da casa àquela hora, barulhento e fugindo da noite, devia ter se desviado do caminho, como as formigas fizeram com o riozinho de sangue.
Foi então que vi o Kokumo se levantar e começar a cantar e a correr em volta da minha mãe, fazendo festa como se não visse o guerreiro entrando e saindo de dentro dela, com força e cada vez mais rápido. O guerreiro gemia e o Kokumo cantava, e seu canto atraiu outras crianças, outros abikus, que apareceram de repente e logo também estavam cantando e formando uma roda junto com ele. Uns surgiram correndo do lado do rio, outros pulando das árvores, outros brotando do chão, e estavam todos alegres ao abraçar o Kokumo, que, junto com eles, começou a rir, a cantar e a brincar de roda, convidando a minha mãe para se divertir também. Enquanto isso, o riozinho tinha parado mesmo de correr e estava ficando com uma cor cada vez mais escura. A minha mãe começou a sorrir e a girar o pescoço de um lado para o outro, acompanhando a brincadeira das crianças. Eu nunca soube se a minha avó pôde vê-las, mas decerto os guerreiros não viram, porque o que estava em cima da minha mãe não gostou da inquietação dela e mandou que parasse. Quanto mais ele falava e dava tapas no rosto dela, mais ela sorria e girava o pescoço, seguindo os abikus. Até que ele se acabou dentro dela, jogou o corpo um pouco para o lado, apanhou a lança e a enfiou sorriso adentro da minha mãe. Ela não parou de sorrir um minuto sequer, e tão logo surgiu um riozinho de sangue escorrendo na direção do riozinho do Kokumo, a minha mãe correu para perto dele e o abraçou. O guerreiro, que estava saindo de dentro dela, nem percebeu. Eu lembro que, naquela hora, a minha mãe, sempre tão alta, tinha o mesmo tamanho do Kokumo e das outras crianças, que brincavam felizes como se há muito tempo esperassem por aquele momento. Até que viram a minha avó e correram para conversar com ela. Por sorte o guerreiro já não mantinha mais a cabeça dela levantada pela lança. A minha avó olhava para o chão e rezava, ignorando a quizomba, como também fez com todos os convites para brincar. Finalmente, as crianças se cansaram e foram embora, sumindo tão de repente como tinham aparecido, levando o Kokumo e a minha mãe sem que eles ao menos tivessem se despedido de mim, da Taiwo e da minha avó.
O riozinho da minha mãe primeiro correu lado a lado com o do Kokumo, depois se juntou a ele e o espichou um pouco mais. As formigas foram obrigadas a dar uma volta maior, subindo pelo tronco do iroco. Quando não consegui mais acompanhar o trajeto delas foi que percebi que já era noite e eu ainda tinha a mão presa à da Taiwo, nós duas muito quietas, não sabendo que providências tomar. Só então a minha avó se levantou e acendeu uma fogueira, para depois puxar o corpo do Kokumo e colocá-lo dentro dos braços do corpo da minha mãe. Fez aquilo como se estivesse arrumando a casa e escolhendo a melhor posição para um enfeite, mudando tudo de lugar enquanto não achava uma boa ordem para aqueles dois pares de braços e de pernas. Quando se deu por satisfeita, ela se sentou perto deles, pegou a cabeça da minha mãe, colocou-a sobre o próprio colo e começou a cantar com o mesmo alheamento com que cantava enquanto tecia seus tapetes. Passou o resto da noite embalando a filha e o neto mortos, e a luz do dia a encontrou buscando água no rio para molhar e esfregar os dois corpos. Depois cavou o chão no lugar onde dormiam, enrolou cada corpo em uma esteira e os colocou dentro do buraco. Uma única cova rasa para os dois, que mal deu para abrigá-los e à terra que jogou por cima enquanto cantava, para em seguida se ajoelhar ao lado e rezar por horas e horas. No meio da tarde, reacendeu o fogo no quintal e fez comida, que dividiu em cinco partes iguais: uma para mim, uma para a Taiwo, uma para ela e duas para colocar ao lado da cova. Só então desenrolou sua esteira e dormiu, sem ter dito uma única palavra para mim ou para a Taiwo, sem ter chorado uma só lágrima a mais desde a partida dos guerreiros.
Eu e a Taiwo já estávamos com medo de que ela tivesse morrido também, quando afinal se levantou na manhã seguinte e começou a recolher roupas, panos, um pouco de comida e as estátuas de Xangô, de Nanã e dos Ibêjis, colocando tudo em uma trouxa. Ela não disse nada, mas entendemos que devíamos fazer o mesmo e separamos as nossas poucas coisas em duas trouxas pequenas, para que conseguíssemos carregar. Estávamos cansadas porque tínhamos passado a noite inteira vigiando para que as crianças não voltassem e tentassem levar a nossa avó. Não chegamos a combinar nada, mas tenho certeza de que, caso se aproximassem, assim como eu, a Taiwo trataria de expulsá-las a qualquer custo, mesmo se o Kokumo e a minha mãe estivessem junto, mesmo se tivéssemos que brigar com todos ao mesmo tempo. Só afrouxamos a vigília quando finalmente amanheceu e acreditamos que não apareceriam mais, porque seria mais fácil para eles levarem a minha avó enquanto ela dormia, enquanto mantinha os olhos fechados e não via o quanto eu e a Taiwo precisávamos dela. Mas ela sabia, pelo jeito como nos olhou enquanto tentávamos equilibrar as trouxas sobre a cabeça, ela sabia. E era por isso que estava nos tirando de lá, pois tinha acontecido algo do qual nunca mais conseguiríamos esquecer. Até aquela hora, desde a hora do destino, nenhuma de nós três tinha falado nada, e foi assim, em silêncio, que pegamos a estrada sem que eu e a Taiwo soubéssemos para onde. Talvez a minha avó já soubesse, ou talvez tenha decidido quando estávamos a caminho.

Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor

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