sábado, 8 de junho de 2024

Da virtude que apequena


2.

Ando em meio a esse povo e mantenho os olhos abertos: eles não me perdoam que eu não tenha inveja de suas virtudes.
Eles procuram me morder, porque lhes falo que para pessoas pequenas são necessárias virtudes pequenas — e porque me é difícil aceitar que pessoas pequenas sejam necessárias.
Ainda pareço o galo num quintal novo, que mesmo as galinhas procuram bicar; mas nem por isso levo a mal essas galinhas.
Sou polido com eles e com todos os pequenos aborrecimentos; ser espinhoso com o que é pequeno parece-me uma sabedoria de ouriço.
Todos eles falam de mim, quando se sentam ao redor do fogo, à noite — eles falam de mim, mas ninguém pensa — em mim!
É este o novo silêncio que aprendi: seu barulho a meu redor estende um manto sobre meus pensamentos.
Eles fazem alvoroço entre si: “Que quer de nós essa nuvem sombria? Cuidemos que não nos traga uma peste!”.
E há pouco uma mulher puxou para si o filho, que vinha em direção a mim: “Levai as crianças!”, gritou ela, “olhos assim queimam as almas das crianças”.
Eles tossem quando falo: acham que tossir é uma objeção contra ventos fortes — nada adivinham do rugir de minha felicidade!
Ainda não temos tempo para Zaratustra” — assim objetam; mas que importa um tempo que “não tem tempo” para Zaratustra?
E, mesmo quando me elogiam: como poderia eu adormecer com o seu louvor? Um cinturão de espinhos é para mim seu louvor: arranha-me também quando o retiro.
E isto igualmente aprendi com eles: o louvador se porta como se retribuísse, mas, na verdade, quer receber mais!
Perguntai a meu pé se lhe agrada sua maneira de louvar e atrair! Em verdade, nesse compasso e tique-taque ele não gosta de dançar nem de ficar parado.
Para a pequena virtude gostariam de me atrair e louvar; ao tique-taque da pequena virtude gostariam de persuadir meu pé.
Ando em meio a esse povo e mantenho os olhos abertos: eles ficaram menores e se tornam cada vez menores: — mas isto se deve à sua doutrina da felicidade e da virtude.
É que são modestos também na virtude — pois querem o bem-estar. Mas somente a virtude modesta condiz com o bem-estar.
Sem dúvida, também aprendem a caminhar à sua maneira, e caminhar para a frente: a isso chamo seu claudicar —. Assim se tornam um obstáculo para todo aquele que tem pressa.
E mais de um anda para a frente e olha para trás, com o pescoço rijo: nesses gosto de dar um encontrão.
Pé e olho não devem mentir, nem desmentir um ao outro. Mas há muita mentira entre as pessoas pequenas.
Alguns deles querem, mas a maioria é apenas objeto do querer. Alguns deles são autênticos, mas a maioria é de maus atores.
Há atores sem o saber entre essas pessoas, e atores sem o querer —, os autênticos são sempre raros, em especial os atores autênticos.
Há pouca virilidade aqui: daí se masculinizarem suas mulheres. Pois apenas quem for viril o suficiente irá, na mulher, — redimir a mulher.
E esta hipocrisia me pareceu a pior entre eles: que também os que mandam simulam as virtudes dos que servem.
Eu sirvo, tu serves, nós servimos” — assim também reza, aqui, a hipocrisia dos dominantes — e que infelicidade, quando o primeiro senhor é apenas o primeiro servidor!
Ah, também nas suas hipocrisias se extraviou a curiosidade de meu olhar; e bem adivinhei toda a sua felicidade de moscas e seu zumbir junto a vidraças banhadas de sol.
Tanta bondade, tanta fraqueza enxergo eu. Tanta justiça e compaixão, tanta fraqueza.
Redondos, corretos e bondosos são eles uns com os outros, tal como grãos de areia são redondos, corretos e bondosos uns com os outros.
Modestamente abraçar uma pequena felicidade — a isso chamam “resignação”! E nisso já olham modestamente de soslaio para uma nova pequena felicidade.
No fundo, simploriamente querem uma coisa acima de tudo: que ninguém lhes faça mal. Assim, são obsequiosos com todos e lhes fazem bem.
Isso, porém, é covardia — embora se chame “virtude”. —
E, se alguma vez falam rudemente, essas pessoas pequenas: eu ouço nisso apenas a sua rouquidão — pois qualquer corrente de ar as enrouquece.
São sagazes, suas virtudes têm dedos sagazes. Mas faltam-lhes os punhos, seus dedos não sabem esconder-se atrás de punhos.
Para elas, virtude é o que torna modesto e manso: com ela transformaram o lobo em cão, e o próprio homem, no melhor animal doméstico do homem.
Pomos nossa cadeira no meio” — diz-me seu sorriso complacente —, “tão distante de lutadores moribundos como de porcos satisfeitos.”
Isso, porém, é mediocridade: embora se chame comedimento.

Friedrich Nietzsche, em Assim Falou Zaratustra

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