sábado, 8 de junho de 2024

Aurora


Foi confinada no cocho com as colegas de linhagem pura. Nem teria sentido abandonar as finas fêmeas ao sabor da roça, apanhando Carrapato e gonorréia. E Juvenal constatou que é mais dispendioso transportar alimentos para os animais no pasto do que abrigá-los e engordá-los em recinto fechado. Elas, as vacas, não chegaram a manifestar suas aflições e anseios. Antes de lhes sondar as opiniões, as dúvidas e palpitações, Juvenal impôs o motivo maior dos filhos futuros. Assim, por amor de seus filhos, elas guardariam duas quarentenas para os conceber. Gerados em tempo propício, nasceriam todos em clima de fartura e favor. E vê-los feitos pagaria qualquer sacrifício. Uniformes desfilariam, todos igualmente fofos, um delicioso pelotão.

1º de abril. Até que enfim Abá, empatado numa rampa de tábuas que eu nunca vi. O ardor do momento não me deu tempo de criticar a posição. Invenção de Juvenal, diz que para aliviar o peso de Abá em cima de mim. Juvenal é muito ponderado. Só desconhece o prazer que é padecer aquelas arrobas no dorso. Não calcula quanto eu desejava ser tão bem maltratada de novo, na roça sem programação, sem rampa, sem vergonha. De novo. Me machuca, filho, me dói, seu desgraçado, me xinga a sua rampeira. Como naquele tempo, anjo, que você me enganava com aquelas vacas, eu sei. Acabava voltando, o tarado, com as unhas enormes da mão direita que você não aprende a cortar. Eu lavava as cuecas dele, as porcas lembranças. Cochicho e muxoxo no muzungo, muxinga no meu lombo e cafezinho na cama da sua mucama sim feitor. Mas no átimo do clímax do bom mesmo, não se sabe se é você ou eu quem está por cima ou baixo, neste cosmo descoordenado, láctea nuvem, de novo, faz, me judia, coração. Vê, vem, abre a porta do meu quarto e anda desta parede à outra, sendo que quando atinge a outra já ainda está grudado nesta parede, me ocupando o quarto inteiro quase a me expulsar de mim. Me estufa o quarto e geme, ou fui eu quem soluçou, não importa quem chorou primeiro se nós derretemos juntos. Acorda. Não, meu, seu. Devagar, cresce outra vez dentro de mim e fica enganchado dum jeito que parece que a gente já nasceu assim e que senão estou amputada e com frio e já nem sei, assim sim, mim, sim, . . . , . . . , . . . , . . , . . , . , . , . , . , . , . , . , , , ,, ,, ,,, ,,,,, ; ; ; ; ; , , ; ; ; ; ! ; ! ; ! ! ; ! ! ! ; ! ! ; ! ! ! ; ; ! ? ! ; ? ; ! ; . ; , ; , ; , ; ; , . . , . , , . , . , . , . , . . . , . . . , . . . , . . . , . . . , sim, assim, assim sim, assim não, já nem sei o que estava falando, estava tonta, estava querendo respirar, estava perdendo a pontuação, meu bem. Fique mais um pouco, meu fôlego. Não me abandone assim de repente. Me esquente. Me beije. Me. Deixo Abá transversal, acocorado numa rampa ridícula a que o cretino se presta.

1.º de maio. Melengestrol. Impossível aceitar o sabor do melengestrol. Vontade de comer alfenas e alfazemas, esses arbustos proibidos de tão cheirosos. Por amor dum talvez filho, um nem ovo, engoli os antibióticos receitados. Não suportava o estibestrol, sem falar no ácido resordílico lactona, o mais revolucionário dos aditivos. Juvenal e a junta médica ainda prescreveram clorotetraciclina, oxitetraciclina e zincobacitracina. E eu carente anêmica de Abá, do tempo em que a gente provava de todos os matos, os podres, os tóxicos e o musgo que, no fim das contas, também é penicilina.

10 de maio. A regra está atrasada. Juvenal garante que não vem mais, que estamos todas bem grávidas. Não sei, na minha terra mulher só sabia que engravidou quando o marido tinha dor de dente. Mas Juvenal garante e nos policia a dieta: todas as vitaminas acima indicadas e nada de sorgo, mandioca, ferrã e forragem que é bom. Ele passa os dias andando de um lado para o outro, ansioso como se fosse o pai no corredor. Anda nervoso e nos transmite o nervosismo, acaba que o nervosismo é que nos deixa desreguladas. Como o primeiro filho, que a gente deseja tanto que vive engravidando em falso por conta dos desejos. Tenho até sentido náuseas, como no primeiro filho, principalmente após as refeições. Mas isso também é por conta do melengestrol que Juvenal me obriga a deglutir na sobremesa.

21 de maio. Juvenal já está me cansando com essa conversa de Fazenda Modelo para cá, Fazenda Modelo para lá, parece até que quer provar alguma coisa. Ele hoje nos levou a Juvenópolis, vejam só, uma cidade que se arvora em capital. Túneis, pontes, elevadores e até um laboratório num oitavo andar, onde a junta médica nos submeteu a um exame. Tudo branco, espaçoso e sonoro, mas ainda assim há algo ali que me incomoda. As outras não. Minhas colegas voltaram falando maravilhas no ônibus, falando de Juvenópolis dos viadutos da junta médica do oitavo andar. O ônibus de luxo veio saltitando de tanta animação.

23 de maio. Resultado do exame: positivo. Engravidamos todas e nem sei se Abá teve dor de dente. Juvenal diz que o laboratório não falha. Digo eu que Abá não falha, o canalha.

10 de junho. Ainda saudades de Abá, por que não confessar?

Tenho sonhado com viadutos lânguidos, na verdade línguas monumentais. Deve ser por isso que acordo indisposta, com frequentes náuseas, e é assim sonolenta que acompanho as outras nas consultas ginecológicas de praxe. Elas não descansam. O ônibus entra na cidade aos soluços, pára aos suspiros nas vitrines, nos filmes em cartaz, nos sinais de trânsito e na nova iluminação a mercúrio. É a luz da ciência, diz sempre o tal de Kirill da junta médica. Implico um pouco com essa junta médica, embora não possa me queixar do tratamento. São solícitos, o tal Kirill, o tal Kebab, o tal Kamorra, vivem perguntando se não me falta nada, no laboratório. Não sei o que me falta no meio de tanto branco, da música ambiental, do ar condicionado, do edifício alto, mas falta pouco para eu soltar um grito. Só pode ser um desses distúrbios de gravidez que Juvenal e a medicina chamam de fenômeno simpático. Deve ser o mesmo desequilíbrio neurovegetativo que provoca uma babeira permanente no canto da boca de Kirill, Kebab e Kamorra. Uma salivação abundante que se acentua quando eles me falam de gravidez e desenvolvimento, misturam útero com Fazenda Modelo, comparam automóveis a cromossomos, enquanto babam no avental e me dão ânsias de vômito, sensação de vertigens, vontade de pular pela janela.

11 de junho. Além do fenômeno simpático é a emoção, diz Juvenal, emoção da responsabilidade. Colocar um filho na nova Fazenda é como dar à luz pela primeira vez. Recomenda que eu assente meus quatro estômagos com grande quantidade de alimentos sólidos, porque as papilas do meu rume requerem um fator de aspereza na ração, para o funcionamento adequado da bio-síntese. Devo consumir, por amor de meu embrião, forragens artificiais tais como:
grânulos de matéria plástica
granito em pó
cascas de ostra
ureia em areia
e serragem

29 de junho. Por amor de meu filho sigo as dietas e presto os exames periódicos, retenho o vômito e a saudade de Abá. É engolindo os problemas domésticos que vou, como todas as vacas, ao cabeleireiro, à ginástica sueca, à massagem anticelulite, à análise de grupo e ao tobogã. Cumpro o programa completo, senão lá vem Juvenal dizer que estou velha egoísta ranzinza reacionária e o assunto acaba em Fazenda Modelo. Vem dizer que estou parada no tempo e que negar o desenvolvimento é negar a realidade, é renegar o feto dentro de nós. Ao que acrescenta o tal de Kirill: F.M., os incomodados que se retirem. Tem sempre uma frase, esse Kirill. Então tomo a roda-gigante que confunde céu com chão, céu com chão, léu com cão, daí acelera e dispara e não se vê mais coisa com coisa, se desgoverna, a gente perde a noção do tempo, do céu e do chão, perde a noção da gente, e quando susta ninguém mais se lembra de nenhum problema. volta para casa e dorme feito bicho de pelúcia.

15 de julho. A Ariadna era uma que também não andava satisfeita. Era contra as coisas. Só que em vez de se conter, reclamava o troco e vomitava na roda-gigante. Pois ontem a junta médica resolveu examinar o seu caso. O tal Kamorra, assim que lhe perscrutou o abdome com o estetoscópio, fez uma cara nada boa. Alertou os colegas e todos concordaram com a cara ruim. Suspeitava-se que Ariadna estivesse utilizando indevidamente o seu cordão umbilical, cuja exclusiva função, como se sabe, é alimentar a criança no útero. Mas suspeitava-se que Ariadna, através desse cordão, estivesse passando mensagens negativas, perniciosas, infecciosas, capazes de desencaminhar a criança desde feto. Impressões deturpadas do nosso mundo exterior e, portanto, informações contrárias ao interesse geral, conforme boletim oficial da junta médica. Ontem Ariadna não voltou com o ônibus. Permaneceu no laboratório em observação.

12 de agosto. Tenho-me esforçado bastante, posso dizer que me violento para afetar naturalidade no dia-a-dia. Hoje a prova foi almoçar com Kebab e suportar a vista de sua boca mastigando.

Procurei conversar amenidades e evitar pensamentos negativos, porque dizem que um mau pensamento pode comprometer a gestação, mãe e filho. Kebab me explica que a junta médica tem recebido denúncias de alguns casos sérios de proselitismo pré-natal. Ele enche a boca quando fala da junta médica, da rapidez de seus diagnósticos, da sua importância para a saúde pública. Conta que, quando há sintomas de doenças consideradas incuráveis e contagiosas. danosas à sociedade, a junta se atribui autonomia para agir prontamente. Nesses casos extremos. Kebab e seus operadores assumem o nome jurídico de Comissão de Eutanásia (CE.), Não sei por que Kebab me contou essa história de boca cheia. Instintivamente, disfarçadamente, por baixo da toalha dei três cuspidas no chão. É uma superstição antiga e sem valor, essa que gestante não pode se impressionar com pessoas ou animais deformados, pois o filho nascerá com igual aspecto. Não acredito nessas lendas mas, por via das dúvidas e por amor de meu feto, estou sempre cuspindo para quebrar feitiço.

6 de setembro. A gestante não deve passar por baixo de cerca de arame, pois o cordão umbilical enforcará a criança na hora do parto. Juvenal reabilitou essa crendice porque conhece meu temperamento. Sabe que às vezes tenho ímpetos de errar por aí, saltar obstáculos, dançarolar, parir por aí, quem sabe ao lado de Abá. Mas Abá, diz Juvenal, Abá seria o primeiro a censurar tais aventuras. Hoje ele conhece o valor das palavras. Amor, liberdade, diz Juvenal, essas palavras são muito bonitas quando não estão em jogo valores maiores. Está em jogo o futuro dos nossos filhos. E é para eles que hoje existe um negócio chamado estabilidade. Um ótimo negócio, porque ninguém investiria num organismo sujeito a riscos, trancos, tombos, hemorragia, aborto.

8 de outubro. Feriado. Abá é o Campeão Sênior de Touros, isto é campeão mundial de reprodutores na 1ª ExpoInter de Juvenópolis. A cidade repleta de faixas, marchas, espoletas, busca-pés e pirotecnia. Kirill aproveita para lançar novo slogan: Fazenda, modelo de explosão. Nós estreando as batas de lamê. Mas Abá passa longe e não repara.

9 de outubro. O atleta. Exposto de corpo inteiro na capa das revistas. Não nego que esteja bonito, continua em forma. Mas não entendo para que tanto exibicionismo. Campeão reprodutor, que vantagem. Sim, pois o filho que mal fez num dia me consome um diário. Um rosário de varizes. Um ventre que é uma trouxa. Uma cabeça que é um balde d’água. Uns seios túrgidos de hormônios galactagogos. A silhueta qualquer de uma batata. E uma bata ridícula que nem esconde tudo isso.

15 de novembro. Se menino ou menina, essa curiosidade sempre deu. Então, que fazia a mãe: somava os anos, subtraía os meses, não lembro, matava um porco, arrancava o rim do porco, ou cozinhava o coração da galinha, não lembro. Hoje vamos ao laboratório para o exame da cromatina. Concordo que é mais simples, não precisa matar bicho nem fazer conta. Retiram um líquido da gente, levam para o microscópio e dão o resultado em dois dias.

17 de novembro. Não era para chiliques, Aurora. Que vergonha, sossega, parece criança, sabe o que disse o laboratório? Que espero gêmeos. Diga a Abá que espere gêmeos.

12 de dezembro. Confesso que já não contava com essa emoçãozinha besta. É o dia que se aproxima. Terei leite suficiente para dois? Sinto seus movimentos. Sinto o peso das cabecinhas me achatando a bexiga. Dá vontade de urinar toda hora.

8 de janeiro. E precisava ver a volúpia de Lubino e Latucha negociando as minhas tetas. Só que os úberes, de tanto amor ou galactagogos demais, jorraram um volume absurdo de leite. Os filhotes engasgaram com o primeiro colostro. E me foram desmamados para sempre.

Desmamar bezerro não é nada, duro é desfilhar a mãe. Ela sente calafrios e decide aquecer o inocente, ensaia trazê-lo de volta ao ventre. Depois ela pensa que bezerro gosta que o enxuguem com língua de vaca. Ela é que está faminta e lhe impinge as tetas. Sedenta de afeto, incomoda o coitado com gordos afagos que ele não pediu.

Juvenal custou a convencê-las que aquela abundância de leite não Convinha às crianças, era artigo de exportação. Deixassem com ele que os filhotes já tinham a agenda tomada, o leite em pó e a cama feita no box apropriado. Ali cresceriam recendendo a éter, não mais ao estrume de antigamente. E que era para o bem dos bezerrotes. E que era para o bem das mães. Aurora, um exemplo, precisa compreender que já não tem o corpo de outros tempos, após tantas distocias. Além da decadência orgânica provocada pelo aleitamento de tantas gerações. Olhe-se no espelho, conte-se os dentes, repare só o detalhe da barbela. Deletério ofício, o de mãe, disse Juvenal. E consolou Aurora besuntando-lhe os seios com sumo de babosa, que estanca o leite. Pense em si, Aurora, cuide do físico, poupe forças para o amor do amor dos próximos.

Finalmente as crianças foram internadas, ainda de olhinhos fechados, no box incubador. Este box é uma espécie de cavidade uterina, mais asseada, onde os pupilos hão de guardar a vigília que antecede a missão a que estão predestinados: povoar o Mundo Novo no dia de sua Redenção. Até então repousarão as pálpebras e Juvenal, pessoalmente, olhará por eles. Aliás, os primogênitos da nova Fazenda já começam bem. […]

Chico Buarque, em Fazenda Modelo

Nenhum comentário:

Postar um comentário