domingo, 9 de junho de 2024

As rãs | Parte IV


7.

Professor, embora da boca para fora eu fosse contra Leoazinha trabalhar no ranário, no fundo fiquei contente com a notícia. Na realidade sou uma pessoa que gosta de ficar só, gosto de andar por aí sem companhia, enquanto perambulo vou me lembrando do passado; quando não tenho nada para lembrar, começo a devanear. Acompanhar minha mulher nas caminhadas era minha obrigação, e cumprir obrigação é um suplício, mas eu tinha de fingir que estava exultante. Com o emprego, ficou perfeito: de manhã cedo ela ia para o trabalho numa bicicleta elétrica que, dizem, meu primo comprou para ela. Através do vidro da janela eu a via, bem aprumada na bicicleta, deslizar silenciosa e ágil pela rua à margem do rio. Assim que sua silhueta desaparecia da minha vista, era minha vez de descer do prédio às pressas.
Em alguns meses, visitei todas as quadras ao norte do rio. Deixei minhas pegadas em bosques, jardins, supermercados grandes e pequenos, clínicas de massagem feitas por cegos, áreas públicas para exercícios físicos, salões de beleza, farmácias, lotéricas, shopping centers, lojas de móveis e a feira livre na beira do rio. Eu fotografava com minha câmera digital cada lugar que visitava, como um cachorro que levanta a perna traseira para marcar cada lugar aonde vai. Até atravessei aqueles campos ainda não explorados pelo comércio para visitar os canteiros de obra em plena atividade. Em alguns a estrutura principal dos prédios já estava pronta, num estilo pouco convencional; em outros, ainda estavam cavando, assentando as fundações, não dava para adivinhar sua futura aparência.
Depois de ver quase tudo na margem norte, passei para a margem sul. Podia atravessar o rio pela ponte estaiada em forma de duas asas estendidas, ou descer o rio numa balsa de bambu até chegar ao cais Aijia, alguns quilômetros abaixo. Sempre usava a ponte, achava inseguro ir de jangada. Um dia, um acidente de carro paralisou o trânsito na ponte e eu decidi pegar a jangada para relembrar aquela cena do passado.
O condutor da embarcação era um rapaz de jaqueta tradicional com botões forrados. Tinha um sotaque local bem carregado, mas só falava expressões da moda. Sua jangada era feita de vinte troncos de bambu grossos como uma tigela, na proa, erguida acima da água, havia uma cabeça de dragão colorida entalhada em madeira. No meio da jangada estavam fixados dois banquinhos vermelhos de plástico. Ele me passou duas sacolas de plástico, pediu para colocá-las nos pés para evitar molhar os sapatos e as meias. Disse-me, sorridente, que muitos passageiros da cidade gostavam de ficar descalços. É muito engraçado ver como as mulheres da cidade ficam chapinhando na água com seus pés miudinhos, claros como peixes prateados. Tirei meus sapatos e meias e dei a ele, que os guardou num armário de lata e disse, meio a sério, meio de brincadeira: “Vou cobrar um iuane para guardar!”. “Como quiser”, respondi. Jogou-me um colete salva-vidas vermelho-tijolo e pediu: “Tio, precisa vestir isso. Senão meu patrão vai descontar do meu bônus”.
Quando o jovem empurrou a jangada do cais, outros condutores que estavam agachados na margem gritaram: “Cabeça Chata, boa sorte! Tomara que se afogue!”.
O rapaz, que manejava a embarcação com grande habilidade, respondeu: “De jeito nenhum! Se eu morrer afogado, sua irmã vai ficar viúva!”.
A jangada entrou na correnteza central e desceu o rio em velocidade. Tirei a câmera para fotografar a ponte e a paisagem nas duas margens.
Tio, de onde o senhor é?”
De onde acha que eu sou?”, respondi no sotaque local.
O senhor é daqui mesmo?”
Quem sabe seu pai foi meu colega de turma?” Quando vi sua cabeça achatada e comprida, me lembrei de um colega da aldeia Tanjia que tinha o apelido de Cabeça Chata.
Mas eu não conheço o senhor. De que aldeia é?”
Dirija direito essa jangada. Não importa se me conhece ou não, o fato de eu conhecer seu pai e sua mãe já é o bastante.”
O jovem conduzia com experiência e olhava para mim de vez em quando, obviamente com a intenção de me identificar. Tirei um cigarro e acendi. Ele inalou e disse: “Tio, se não me engano o senhor está fumando a marca Zhonghua, de pacote mole”.
Exatamente o que eu estava fumando. Leoazinha é quem trouxera. Segundo ela, foi Bochecha que me mandou. Ela disse: “O presidente Yuan disse que ganhou de uma grande figura, mas como ele só fuma Ba Xi, não quer trocar de marca”.
Peguei outro cigarro, me inclinei para a frente e entreguei a ele. Num movimento reverente, o recebeu da minha mão e acendeu se virando de lado para barrar o vento do rio. Fumava com visível satisfação, em seu rosto se desenhava uma beleza feia, esquisita. Ele disse: “Tio, não é qualquer um que fuma uma marca dessas”.
Presente de um amigo”, respondi.
Eu sabia! Quem é que fuma isso pagando do próprio bolso? Então o senhor também é adepto dos ‘quatro quase’?”, perguntou, sorrindo.
Como assim ‘quatro quase’?”
Quase só bebe e fuma o que ganha de presente, quase não mexe no salário, quase não usa a esposa… Tem mais um que esqueci.”
Quase toda noite tem pesadelos!”, completei.
Não era isso, mas não consigo lembrar o que era.”
Nem precisa”, eu disse.
Se voltar amanhã, com certeza vou saber dizer. Tio, já sei quem o senhor é.”
Sabe quem sou eu?”
O senhor deve ser Xiao Verão-Primavera”, disse ele com um sorriso bizarro, “meu pai me disse que o senhor é o mais capaz da turma dele. O senhor é um orgulho para os seus colegas de turma, e também para todo o Nordeste de Gaomi.”
Ele era realmente muito capaz, mas não sou ele”, respondi.
Deixe de modéstia, tio, logo que subiu na minha jangada, percebi que o senhor não é qualquer um.”
Sério?”, ri.
Claro! O senhor tem a testa brilhante, tem um halo em cima da cabeça. Sinal de que é uma pessoa de grande poder e grande riqueza.”
Aprendeu fisiognomia com Yuan Bochecha?”
O senhor também conhece o tio Yuan?”, deu um tapinha na testa e continuou. “Que burrice a minha, vocês foram colegas de turma, é claro que se conhecem.
Embora nem se compare ao senhor, o tio Yuan também é uma pessoa capaz.”
Seu pai também é muito capaz”, eu disse, “ainda lembro que ele conseguia andar de cabeça para baixo, até deu uma volta na quadra de basquete.”
E de que serve isso?”, desdenhou ele. “Mente simplória, membros fortes! O senhor e o tio Yuan sabem usar a cabeça, brincam com o intelecto. ‘Os que trabalham com a mente, governam; os que trabalham com a força, são governados’.”
Sua lábia não perde para a de Wang Fígado”, comentei, rindo.
Tio Wang também é um gênio, mas ele optou por um caminho diferente dos seus”, apertava os olhinhos vivos e triangulares enquanto falava, “tio Wang diz por aí que está biruta, mas discretamente vai ganhando seu dinheiro.”
Quanto ele ganha vendendo os bonecos de barro?”
O que ele vende não são simples bonecos de barro, são obras de arte. Tio, o ouro pode ter preço, mas a arte não! Está certo que não dá para comparar o que tio Wang ganha com o que o senhor ganha, é como comparar uma poça de água com o mar. Já o tio Yuan é mais sabido que o tio Wang, mas se dependesse só da criação de rã, não ganhava nada.”
Mas se um ranário não ganha com a criação, então ganha com o quê?”
Tio, o senhor não sabe mesmo ou está se fazendo de desentendido?”
Não sei mesmo.”
Pare de brincar comigo, uma pessoa do seu nível sabe de tudo neste mundo! Uma coisa que até eu, da ralé, já sei, o senhor não vai saber?”
Voltei para cá há pouco tempo, não conheço nada ainda.”
Então acredito que o senhor não sabe mesmo. Já que não é um forasteiro, vou contar um pouco da história, para o senhor se distrair.”
Pode contar.”
A criação de rãs é só fachada, o negócio do tio Yuan, na verdade, é criar bebês para as pessoas.”
Fiquei chocado, mas tentei manter a calma.
Falando bonito, eu chamaria de Centro de Gestação por Substituição, falando de jeito mais tosco, é um grupo de mulheres prontas para engravidar e dar uma criança para quem quer ter filho.”
Existe um negócio desses? Não viola o controle de natalidade?”
Nossa, tio Xiao, em que ano estamos? Ainda fala em controle de natalidade? Quem tem dinheiro paga a multa para ter mais filhos, como o Velho He, o ‘rei da reciclagem’: a mulher dele já teve quatro, a multa foi de seiscentos mil iuanes. Quando chegou o boleto da multa, ele no dia seguinte levou um saco de dinheiro para a Comissão de Planejamento Familiar. Quem não tem dinheiro, tem os filhos na surdina. Na época da Comuna Popular, os camponeses viviam debaixo de um controle ferrenho, precisavam pedir licença até para ir à feira e autorização escrita para viajar. Agora, você pode ir ao fim do mundo, ninguém está nem aí. Pode ir a outras cidades afofar algodão, consertar guarda-chuva, consertar sapato, vender legume, é só alugar um porão ou montar um galpão embaixo de um viaduto, pode ter filhos à vontade, quantos quiser. Os funcionários públicos têm filhos com as amantes, isso nem precisa explicar, só os servidores públicos sem dinheiro nem coragem é que não se atrevem a ter mais filhos.”
Então você quer dizer que, na prática, a política nacional de planejamento familiar está morta?”
Não! A política está bem viva, senão com base em que iam cobrar multa?”
Se for assim, as pessoas podem ter filhos à vontade, para que procurar os serviços de Yuan Bochecha?”
Tio, o senhor talvez ande tão mergulhado no seu trabalho que não percebe o que se passa aqui fora. Os ricos podem ter muito dinheiro”, continuou ele sorrindo, “mas raramente são generosos como o Velho He, o rei da reciclagem. A maioria, quanto mais enriquece, mais pão-duro fica. Querem ter um filho homem para herdar o patrimônio milionário, mas não querem pagar multa. Uma barriga de aluguel cria justificativas para poder evitar a multa. Além disso, os milionários e poderosos, no mais das vezes, já têm a mesma idade do senhor, o homem até pode estar todo empolgado, mas a mulher, no mais das vezes, já não dá pra usar.”
Nesse caso pode manter uma amante.”
Claro que pode, tem gente com três, quatro amantes. Mas também existe muita gente que tem medo da esposa e não quer dor de cabeça, daí vai ser cliente do tio Yuan.”
Meu olhar ultrapassou a margem e alcançou o pequeno prédio cor-de-rosa do ranário e o telhado dourado do templo. Fui tomado por uma sensação sinistra. Lembrei-me daquela madrugada pouco tempo antes, quando, depois de me levantar para ir ao banheiro, vivi uma inédita cena na cama com Leoazinha.
Tio, o senhor não tem filho homem, não é?”, me perguntou o filho do Cabeça Chata.
Não respondi.
Tio”, ele continuou, “não acho certo pessoas ilustres como o senhor não terem filho homem, isso é um crime, sabe? Como disse Confúcio: ‘Há três condutas não filiais, a pior delas é não gerar descendentes…’.”

Depois de esvaziar a urina que segurei a noite toda, sentia um alívio enorme e só queria voltar a dormir. Mas Leoazinha começou a me acariciar, e isso era algo que não acontecia havia muito tempo…

* * *

Tio, de todo modo, o senhor precisa ter um filho homem. Isso não é um assunto só seu, mas de todo o Nordeste de Gaomi. O tio Yuan oferece opções diversas. O mais sofisticado é a barriga de aluguel com sexo: são todas moças bonitas, solteiras, saudáveis, com genes excelentes e diploma universitário. O senhor pode morar com a moça por algum tempo até ela engravidar. O custo, bem, o custo é relativamente alto, pelo menos duzentos mil iuanes. Se quiser que o filho nasça com a melhor das melhores qualidades, pode oferecer à moça um subsídio de nutrição, ou lhe dar um bônus. O maior risco seria, nisso de morar juntos, os dois lados começarem a ter sentimentos, aí o faz de conta vira verdade e pode prejudicar o casamento. Por isso, acredito que a tia não iria concordar…”

Ela parecia excitada, mas o corpo continuava impassível. Além disso, muito estranhamente, ela não estava agindo da maneira que costumava agir esses anos todos. Como você quer? Vi os olhos dela faiscarem entre os primeiros raios do alvorecer. Ela sorriu, misteriosa: “Quero abusar de você”. Vendou meus olhos com um pano preto. “O que você quer?” “Não pode tirar! Você me maltratou metade da vida, agora é hora de me vingar.” “Você vai fazer uma vasectomia em mim?” Ela riu: “E eu lá teria coragem de fazer isso? Quero ver você desfrutar plenamente…”.

Não faz muito tempo, veio uma mulher criar confusão, até quebrou o carro do tio Yuan”, o Cabecinha Chata continuou. “O marido dela se apaixonou pela moça da barriga de aluguel, no final teve um filho homem e largou a esposa. Por isso, acho que a tia não vai aceitar isso de jeito nenhum…”

Ela continuou me acariciando, me deixou excitado, enlouquecido. Tive a sensação de que colocava uma camisinha ou algo assim. “O que é isso? Acha necessário?” Ela não respondeu…

Tio, se quiser apenas um filho homem e não estiver interessado em experimentar o gosto da flor do campo, vou te contar uma maneira mais econômica. Mas isso é segredo. O tio Yuan tem umas barrigas de aluguel bem baratas. Elas têm uma aparência assustadora, mas não nasceram assim. Eram moças bem lindas, ou seja, possuem genes excelentes. Tio, deve ter ouvido falar do incêndio na Fábrica Dong Li, que fazia brinquedos de pelúcia. O fogo matou cinco moças da nossa aldeia, três sobreviveram mas ficaram gravemente feridas e completamente desfiguradas. A vida delas virou uma angústia só. O tio Yuan acolheu-as gentilmente, dá a elas comida e bebida e um meio de ganharem algum dinheiro. Claro, é barriga de aluguel sem sexo, ou seja, seus girinos serão extraídos e injetados no útero delas. Quando chega o momento, só precisa vir buscar o bebê. Elas saem mais em conta, cinquenta mil iuanes para filho homem, trinta mil para filha mulher.”

Ela me fez rugir. Senti meu corpo afundar num abismo. Ela me cobriu e saiu silenciosamente…

Tio, eu recomendo que…”
Você está alcovitando para Yuan Bochecha, não está?”
Tio, como o senhor pode usar ainda um termo tão antiquado?”, disse ele rindo. “Faço prospecção de negócios para o tio Yuan. Quero agradecer a você, tio Xiao, por me dar esta oportunidade de ganhar dinheiro. Então vou ligar para o tio Yuan agora.” Parou a jangada e tirou o celular. “Sinto muito”, respondi, “não sou seu tio Xiao nem tenho essa necessidade.”

Mo Yan, em As rãs

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