Wang
Fígado mandou um menino nos entregar os DVDs da série Personagens
singulares do Nordeste de Gaomi. O menino vestia uma bermuda
jardineira que deixava de fora umas pernas compridas de Pinóquio,
calçava botas de cano longo pelo jeito bem pesadas. Tinha cabelos
cor de linho, sobrancelhas e cílios quase brancos, e olhos de um
cinza-azulado, percebia-se logo que era mestiço. Leoazinha lhe
ofereceu algumas balinhas, mas o menino, com as mãos atrás das
costas, disse em sotaque local bem carregado: “Me disseram que
vocês me pagariam pelo menos dez iuanes”.
Nós
lhe demos vinte iuanes. Ele se curvou em sinal de gratidão e desceu
a escada assobiando. Do parapeito da janela, vimos o menino caminhar
a passos largos como uma personagem de desenho animado, rumo ao
parque de diversões em frente ao nosso condomínio. Ali, entrevia-se
uma montanha-russa.
Dias
depois, quando passeávamos à beira do rio, encontramos o menino de
novo. Junto com ele estava uma mulher branca bem alta, empurrando um
carrinho de bebê. O menino e uma menina, obviamente sua irmã,
estavam de patins, usavam capacete colorido de plástico rígido,
joelheiras e cotoveleiras. Deslizavam cuidadosamente. Um homem de
meia-idade, de feições delicadas, seguia a mulher branca. Falava ao
telefone, um mandarim com agradável sotaque da região de Jiangsu e
Zhejiang. Atrás dele vinha um corpulento cachorro de pelo dourado.
Logo reconheci que se tratava de um professor famoso de uma
universidade em Pequim, uma celebridade que sempre aparecia na TV.
Leoazinha, mais uma vez, colocou seu rosto gordo sobre o bebê
mestiço de olhos azuis no carrinho. A mãe, sorridente, mostrava
excelentes maneiras, enquanto o professor deixou transparecer um
óbvio desdém. Mais que depressa puxei o braço de Leoazinha para
afastá-la do carrinho. Ela, de olhos fixos no bebê, não percebeu a
expressão do professor. Acenei-lhe pedindo desculpas e ele assentiu
ligeiramente. Lembrei a minha esposa que ela não podia agir como
avó-loba ao ver bebês encantadores. “As crianças de hoje são
tesouros de seus pais”, eu disse, “você ficou olhando para o
bebê e nem percebeu a cara feia do pai.” Leoazinha se sentiu
injustiçada, começou a xingar os ricos que tinham filhos sem querer
saber das cotas de natalidade, e os homens e mulheres casados com
estrangeiros que produziam filhos numa corrida contra o tempo. Em
seguida, teve pena de si mesma, arrependeu-se por trabalhar com minha
tia na rígida e até mesmo cruel execução da política de
planejamento familiar, fez tantos abortos, violou os princípios
celestiais, e agora o céu a punia impedindo-a de ter um filho. Por
fim, desejou que eu me casasse com uma mulher estrangeira e tivesse
um monte de filhos mestiços. “Corre Corre”, disse ela, “não
vou ficar com ciúmes, nem um pingo de ciúmes, se você se casar com
uma estrangeira. Tenham filhos à vontade, quantos conseguirem.
Depois que nascerem me deem para eu cuidar.” Nesse momento seus
olhos se encheram de lágrimas, sua respiração ficou mais rápida,
seus peitos redondos começaram a arfar, mal se contendo de tanto
amor maternal. Se lhe desse um bebê, eu não duvido nada que
jorraria leite.
Foi
nessas circunstâncias que inseri no aparelho o DVD enviado por Wang
Fígado.
A
vida da minha tia com o artesão Hao Mão Grande se desenrolou diante
de nós em meio à melodia de uma peça de ópera local, que alfineta
os ouvidos forasteiros, mas enche de lágrimas nossos olhos.
Para
ser franco, devo confessar que, embora jamais tenha me pronunciado
sobre o assunto, no fundo me oponho ao casamento deles. Meu pai, meus
irmãos e cunhadas compartilham a mesma opinião. Achamos que Hao Mão
Grande não tem nada a ver com a minha tia. Desde muito pequenos
esperávamos que ela um dia se casasse com alguém. O relacionamento
com Wang Xiaoti foi motivo de orgulho para nós e, no entanto,
terminou da maneira mais triste. Depois, teve o Yang Lin, que não
correspondia ao nosso ideal tanto quanto o anterior, mas, como se
tratava de um alto funcionário, era passável. Ela até podia se
casar com Qin He, seu admirador obcecado, mesmo ele, comparado a Hao
Mão Grande… Já estávamos preparados para a possibilidade de ela
ficar para sempre solteira, chegamos a conversar sobre quem cuidaria
dela no fim da vida. De repente, ela se casou com aquele homem.
Naquela altura, Leoazinha e eu ainda morávamos em Pequim. Quando
ouvimos a notícia, a primeira sensação foi de surpresa, depois
perplexidade, e então tristeza.
O
episódio “Filhos do luar” era sobre o artesão Hao Mão Grande,
mas a verdadeira protagonista foi minha tia. Ela ocupou o centro das
imagens em todos os instantes, do momento em que os jornalistas foram
recebidos no pátio até a excursão pelo ateliê e pelo depósito
dos bonecos de barro. Falava, gesticulava, fazia caras e bocas,
enquanto Mão Grande permanecia sentado com grande serenidade atrás
da bancada de trabalho, com um olhar vago e o rosto sem expressão,
parecia um cavalo velho e sonolento. Será que, ao chegar ao ápice
de sua criação artística, todos os mestres oleiros se tornam
cavalos velhos e sonolentos? Ouvi tanto o nome desse grande mestre,
mas, quando paro para fazer as contas, vejo que nos encontramos
poucas vezes. Desde que cruzei com ele no escuro, na noite do
banquete para festejar a entrada do meu sobrinho na Aeronáutica,
esta era a primeira vez que o via, depois de tantos anos, ainda assim
pela tela da TV. O cabelo e a barba estavam inteiramente brancos, mas
seu rosto continuava corado e brilhante, mantinha uma postura muito
serena, assumia o ar distraído de uma divindade taoista. Foi nesse
programa que ficamos sabendo, de modo inesperado, o motivo do
casamento de minha tia com esse homem.
Ela
acende um cigarro, traga profundamente e fala num tom quase desolado:
“Casamento é uma coisa predeterminada. Digo isso a vocês, jovens,
não com intenção de pregar idealismo — já fui uma completa
materialista —, mas, quando o assunto é casamento, não tem como
não acreditar no destino. Perguntem a ele”, aponta para Hao Mão
Grande, imóvel como uma estátua, “se alguma vez sonhou se casar
comigo”.
“Em
1997, quando completei sessenta anos”, continuou minha tia, “meus
superiores falaram para eu me aposentar. Claro que eu não queria
fazer isso, mas já não tinha como argumentar, visto que deveria ter
me aposentado cinco anos antes. O diretor do Posto de Saúde, vocês
todos conhecem, era o filho do Huang Pele, da aldeia Hexi, o Huang
Jun, aquele ingrato, que tinha o apelido de Pepino. Também fui eu
que puxei esse bastardo do ventre de sua mãe. Dizem que fez
medicina, mas não era capaz nem de achar um coração ou um pulmão
com o estetoscópio, nem de achar uma veia para aplicar uma injeção,
e muito menos de tomar o pulso, como ele podia ser diretor de um
posto de saúde? Para enfiá-lo na escola de saúde, eu falei muito
bem dele para o secretário Shen da Saúde Pública, mas depois, com
o poder na mão, ele não reconhecia mais ninguém. Esse homem não
sabia nada além de suas duas especialidades: primeira, puxar saco
para obter favores e, segunda, deflorar as moças.”
Nesse
ponto, ela batia no peito com a mão, sapateava no chão. “Boba que
eu era, coloquei a raposa no galinheiro, ajudei o malfeitor em seu
malfeito! Ele abusou de quase todas as moças do hospital. Wang
Xiaomei, da aldeia Wang, tinha dezessete anos, tranças grossas,
rosto oval e pele de porcelana. Quando piscava, seus longos cílios
se moviam como asas de borboleta, os olhos grandes pareciam saber
falar. Todo mundo que a conhecia dizia que, se fosse descoberta por
Zhang Yimou, aquela moça seria muito mais famosa que Gong Li ou
Zhang Ziyi. Mas, em vez do renomado diretor de cinema, quem a
descobriu primeiro foi Pepino, aquele pervertido. Foi até a aldeia
Wang e, com uma lábia capaz de fazer morto levantar do túmulo, ele
conseguiu convencer os pais da moça a deixá-la estudar ginecologia
comigo no posto de saúde. Isso foi o que ele prometeu, mas Wang
Xiaomei não apareceu um dia sequer na minha seção. O safado do
Pepino dominou-a completamente. Mantinha a moça sempre a seu lado,
não bastava fazer aquilo à noite, também faziam em plena luz do
dia, muitos já tinham visto. Quando se fartava daquilo, ele ia para
a cidade gastar o dinheiro público em banquetes para quem estivesse
no poder, mexer os pauzinhos para ver se o transferiam para o governo
distrital. Já viram a cara daquele sem-vergonha? Meio metro de cara
de asno, lábios roxos, sangue brotando entre os dentes e um bafo
podre, mas tão podre que quando abria a boca era capaz de fazer
cavalo desmaiar. E uma pessoa assim ainda queria virar secretário
adjunto distrital da Saúde Pública? Ele levava Wang Xiaomei de
acompanhante, chegava a dar a moça de presente para os convidados.
Um pecado, um pecado mesmo!
“Um
dia, o sujeito de repente me chamou para a sala dele”, continuou
minha tia, “a mulherada do hospital tinha medo de entrar na sala
dele, mas eu, naturalmente, não tinha medo nenhum. Levei um bisturi
no bolso, pronta para castrar aquele filho da puta. Serviu chá para
mim, todo sorrisos, me cobriu de elogios. ‘Diretor Huang’,
interrompi, ‘se tiver algo a dizer, diga logo, não precisa fazer
rodeios.’ Ele deu um sorriso amarelo e disse: ‘Tia!’, agora se
atrevia a me chamar de tia! ‘Vim ao mundo por suas mãos, tia, a
senhora me viu crescer. Sou praticamente carne da sua carne, não
sou?…’ ‘Quem sou eu’, respondi, ‘o senhor é um ilustre
diretor de hospital e eu, uma simples ginecologista, eu não
suportaria a honra de tê-lo como filho, não é? Pode ir direto ao
assunto.’ Ele deu outro sorriso amarelo, e sem vergonha nenhuma,
continuou: ‘Cometi um erro comum dos quadros dirigentes — não me
contive e engravidei Wang Xiaomei’. ‘Meus parabéns! Wang Xiaomei
está com seu nobre descendente, a diretoria do nosso hospital terá
um sucessor!’ ‘Tia, pare de brincadeira, há dias não consigo
comer nem dormir de tanta preocupação.’ — Até aquela besta
tinha momentos em que não conseguia comer nem dormir! — ‘Ela
está me pressionando para que eu me divorcie, senão vai me
denunciar ao Comitê Disciplinar Distrital.’ ‘Mas para quê?’,
eu disse, ‘não é comum vocês, altos funcionários, terem amante?
Compre uma casa para ela, pague uma pensão para sustentá-la e
pronto!’ ‘Tia, isso é hora de rir de mim? Ter uma ou mais
amantes não é algo que se admita à luz do dia. Ainda por cima,
onde vou arrumar dinheiro para comprar uma casa para ela?’ ‘Então
peça o divórcio.’ Ele fechou aquela cara de jumento: ‘Tia, a
senhora sabe muito bem, meu sogro e meus cunhados carniceiros são
todos uns facínoras, quando ficarem sabendo, vão acabar comigo’.
‘Mas o senhor é diretor de hospital, alto funcionário!’ ‘Pare,
tia! Sou apenas o humilde chefe de um posto de saúde de aldeia, para
a senhora isso não é nada. Chega de me ironizar, me ajude a achar
uma saída, por favor.’ ‘Que saída eu tenho?’ ‘Wang Xiaomei
idolatra a senhora’, continuou, ‘ela me disse isso inúmeras
vezes. Ela pode não dar ouvidos a ninguém, mas a senhora ela
escuta.’ ‘O que quer que eu faça?’ ‘Podia conversar com ela
para convencê-la a tirar o bebê?’ ‘Pepino’, eu disse com
ódio, ‘jamais voltarei a fazer essas coisas contra o céu e a
razão! Ao longo da minha vida, abortei com minhas mãos nada menos
de dois mil bebês! Não quero mais fazer isso. Pode contar que vai
ser pai de novo! E digo mais: Wang Xiaomei é uma moça bonita, com
certeza vai ter um bebê lindo, isso não é maravilhoso? Vá dizer a
ela que, quando chegar a hora, eu faço o parto!’
“Deixei
ele falando sozinho”, disse minha tia, “saí feliz, mas, assim
que cheguei a minha sala e tomei um copo d’água, veio uma
tristeza. O canalha do Pepino bem que merecia ficar sem descendentes
e Wang Xiaomei, com aquele corpo, grávida de um canalha desses, é
uma pena. Se tem uma coisa que aprendi com todos os partos que eu
fiz”, minha tia continuou, “é o seguinte: a índole de uma
pessoa depende menos da educação e mais da genética. Podem
criticar minha teoria de classes por consanguinidade, mas foi o que a
prática me ensinou. O descendente de uma pessoa má como Pepino pode
até crescer num templo, mas vai ser um monge tarado. Por mais que eu
sinta pena de Wang Xiaomei, não vou tentar convencê-la, não posso
deixar Pepino se safar tão fácil, mesmo que acrescente a este mundo
um monge tarado. No fim, ainda acabei fazendo o aborto de Wang
Xiaomei.
“Foi
Wang Xiaomei que me pediu”, explicou a tia. “Ela se ajoelhou na
minha frente, abraçou minhas pernas, sujou minha calça com lágrimas
e meleca de nariz. Chorava muito. ‘Tia, por favor, tia. Fui eu que
caí nessa, ele me enganou. Agora, mesmo que me fizesse uma bela
proposta de casamento, não me casaria com aquele monstro. Tia, por
favor, faça o aborto para mim, não quero esse maldito bebê…’
“E
foi por isso”, minha tia acendeu outro cigarro e deu uma tragada
violenta, uma fumaça espessa cobria seu rosto, “que eu fiz. Wang
Xiaomei era uma rosa prestes a desabrochar e ele a deflorou, jogou-a
na desonra.” Ergueu o braço para enxugar as lágrimas. “Jurei
que nunca mais faria uma cirurgia dessas. Não aguento mais. A mulher
pode estar com um macaco peludo na barriga que não faço mais nada.
Quando ouvi o barulho da bomba a vácuo, senti uma mão gigante
agarrar meu coração e apertar cada vez mais forte. Doía tanto que
fiquei coberta de suor, vi estrelas. Quando a cirurgia terminou, caí
no chão esgotada…
“Pois
é, na minha idade a gente muitas vezes se perde na própria fala.
Estou falando há tanto tempo e ainda não contei por que me casei
com Hao Mão Grande. Anunciaram minha aposentadoria no dia 15 do
sétimo mês do calendário lunar. O canalha do Pepino ainda queria
me segurar mais, queria que eu me aposentasse sem deixar as funções.
Disse que me daria oitocentos iuanes por mês. Bah! Cuspi na cara
dele. ‘Seu pilantra, já me esfalfei de trabalhar, agora chega,
nesses anos todos, de cada dez iuanes do faturamento deste posto de
saúde, ganhei oito. Mulheres e crianças de todas as aldeias da
região vinham fazer consulta neste posto por minha causa. Se eu
quisesse ficar rica, poderia ganhar oitocentos ou mil por dia! Agora
você quer me comprar com oitocentos por mês? Até um trabalhador
braçal cobra mais do que isso! Trabalhei duro a vida inteira, não
quero mais, quero descansar, quero passar a minha velhice no Nordeste
de Gaomi.’ Foi assim que ofendi o canalha de Pepino, nos últimos
anos, ele procurou me ferrar de todas as maneiras. Quer ferrar
comigo? ‘Já passei por muita coisa nessa vida! Não tremi diante
dos malditos japoneses quando moça, vou lá ter medo agora de você,
seu moleque, depois dos setenta anos?’… Ah sim, deixe-me voltar
ao tema principal.
“Se
quiserem saber por que me casei com o Velho Hao, preciso começar
pela história com a rã. Na noite em que anunciaram minha
aposentadoria, alguns velhos colegas de trabalho me convidaram para
jantar num restaurante. Fiquei bêbada naquela noite — na verdade
não bebi muito, o problema foi a qualidade da bebida. O dono daquele
restaurante, Xie Passarinho, filho do Xie Cem Patas, um daqueles
bebês-batata-doce nascidos em 1963, ofereceu uma garrafa da mais
fina aguardente de cereais para me homenagear. Mas aquela droga de
bebida era falsificada. Bastou meio cálice para eu ficar tonta, tudo
girava. Meus companheiros de mesa foram caindo um para cada lado, o
próprio Xie Passarinho ficou de boca espumando e olhos revirados.”
Minha
tia voltou trocando as pernas, queria chegar ao dormitório do posto
de saúde, mas, sem saber como, acabou indo parar num brejo. Era um
atalho sinuoso por entre juncos da altura de uma pessoa. Poças
d’água brilhavam ao luar, como se fossem de vidro. Sapos e rãs
coaxavam, quando uns paravam, outros começavam, se alternavam como
numa competição de canto. A certa altura, soaram coaxos por toda
parte, coac-coac-coac, o barulho cercava, concentrava-se, subia até
o céu. De repente, tudo parou e foi silêncio por toda parte, só se
escutava o estrilar de insetos. Minha tia disse que, em décadas de
carreira médica, perdeu a conta de quantas vezes andou à noite sem
nunca sentir medo. Naquela noite, porém, ficou aterrorizada.
Normalmente, o som de uma rã é descrito como o de um tambor, mas
naquela noite, as rãs choravam, parecia o choro reunido de milhares
de recém-nascidos. Ela adorava o choro dos recém-nascidos, para uma
obstetra, o choro de um bebê é a música mais linda do mundo! No
entanto, aqueles coaxos de rã guardavam um ressentimento, uma
decepção, como uma denúncia de inúmeras almas de bebês
vitimados. Num instante o álcool que ela havia ingerido virou suor
frio na pele. “Não pensem vocês que eu estava alucinando, com a
mente embriagada. O álcool saiu com o suor, ficou só a dor de
cabeça, mas a mente estava completamente lúcida. Percorria o
caminho lamacento tentando fugir daquela emboscada de coaxos. Mas
fugir para onde? Por mais rápido que corresse, buá-buá-buá,
aqueles choros dolentes e amofinados atacavam de todos os lados.”
Ela queria correr, mas não conseguia mexer as pernas. A lama, como
um chiclete cuspido, fazia a sola de seu sapato grudar no chão.
Precisava de toda sua força para levantar um pé, fios prateados
prendiam o sapato ao chão. Ela cortava esses fios, mas outros
apareciam a cada passo. Abandonou o sapato e seguiu descalça pelo
caminho enlameado. Mas os pés descalços sentiam mais ainda a
aderência da lama, aqueles fios prateados pareciam ter ventosas que
agarravam seu pé, querendo separar a pele da carne. Minha tia contou
que se ajoelhou no chão, como se fosse uma rã gigante, e rastejou
para a frente enquanto a lama do caminho grudava nos joelhos, nas
pernas, nas palmas. Ela rastejava desesperada, a todo custo,
arrastava-se para a frente. Nesse instante, disse minha tia, das
profundezas do denso juncal, por entre as folhas cintilantes das
alfaces-d’água, pularam inúmeras rãs. Umas de pele verde, outras
douradas, umas grandes como um ferro de passar, outras pequenas como
um caroço de tâmara, umas de olhos dourados, outras de olhos
avermelhados. Vieram como ondas, sitiaram minha tia por todos os
lados, coaxando raivosas. Minha tia sentiu as bocas duras bicando sua
pele, as patas arranhando seu corpo como se tivessem garras afiadas.
Pularam sobre suas costas, no pescoço, na cabeça, e pareciam criar
um peso tão grande que a fez desmoronar no chão. Minha tia explicou
que o pavor maior não vinha dessas bicadas ou arranhões, mas sim do
asco insuportável causado pelo contato daquelas barrigas pegajosas e
frias com a sua pele. “Não paravam de mijar em mim, ou quem sabe
era o sêmen que eliminavam.” Ela de repente se lembrou de uma
lenda que minha avó contava sobre a peça que uma rã pregou num ser
humano: certa noite, uma moça foi sentar-se na beira do rio para se
refrescar e adormeceu sem perceber. Ela sonhou que fazia sexo com um
rapaz vestido de verde-esmeralda. Acordou grávida e deu à luz um
monte de rãzinhas. Minha tia diz que, quando se lembrou disso, ela
se levantou num impulso, foi o terror que lhe deu essa força
extraordinária. Ela viu os bichos que estavam parados em suas costas
caírem no chão um após outro como pedaços de barro. Mas ainda
havia muitas rãs agarradas na sua roupa e nos seus cabelos, duas até
mordiam os lóbulos das orelhas como um par de brincos horrendos.
Saiu correndo, sem saber por que a aderência do chão desaparecera
de repente. Enquanto corria, se sacudia e, com as duas mãos, tentava
arrancar as rãs de seu corpo. Cada vez que agarrava uma rã, gritava
e a jogava para longe com força. Quando tentou tirar as duas rãs
penduradas nos lóbulos, quase arrancou as orelhas junto. Os bichos
chupavam seus lóbulos com a firmeza de dois bebês famintos no peito
da mãe.
Corria,
gritava, mas não conseguia se livrar das rãs que a perseguiam. Em
algum momento da corrida, olhou para trás e viu uma cena
assustadora: milhares de rãs tinham formado um exército infinito,
coaxavam, pulavam, trombavam, empurravam-se numa turva enxurrada que
rolava adiante velozmente. Além disso, mais rãs surgiam à beira do
caminho, umas formavam um batalhão para impedir a saída da tia,
outras pulavam do capim à beira da trilha em ataques surpresa contra
ela. A saia folgada de seda preta que ela vestia foi rasgada em tiras
pelas rãs na emboscada. Ela via as rãs engolirem os pedaços da
saia, engasgarem, se debaterem com as patas dianteiras e rolarem pelo
chão mostrando a barriga branca.
Quando
chegou à beira do rio e viu a ponte de pedra prateada sob o luar, as
rãs já tinham rasgado toda a roupa que trazia no corpo. Ela, quase
nua, chegou à pontezinha e encontrou com Hao Mão Grande.
“Naquele
momento, não importava mais a vergonha, nem percebi que eu estava
praticamente nua”, continuou a tia, “vi uma pessoa sentada no
meio da ponte, com uma capa de palha e um chapéu de bambu na cabeça,
segurava alguma coisa com um brilho prateado — só mais tarde
fiquei sabendo que era um pedaço de barro. Para fazer um boneco de
luar, é preciso usar barro colhido ao luar. Naquele instante, nem
reconheci quem era, não importava quem era, desde que fosse um ser
humano, seria meu salvador.” Ela se lançou ao colo daquela pessoa,
tentando enfiar-se sob sua capa de palha. Sentiu no peito o calor
dele, enquanto nas costas ainda persistia o frio úmido e asqueroso
das rãs. Mal gritou “socorro” e desmaiou.
A
longa narrativa criou em nós uma empatia, a imagem da horda de rãs
gravada em nossa mente produziu um arrepio na espinha. A câmera
focou em Hao Mão Grande, ele continuava sentado ali como estátua,
depois mostrou vários bonecos em close, a vista da pontezinha sobre
o rio, e voltou a focar o rosto e a boca da tia. Ela continuou:
“Acordei
deitada no kang de Hao Mão Grande, com uma roupa de homem no
corpo. Ele me trouxe uma tigela de sopa de feijão-verde. O aroma
restaurou minha lucidez. Quando tomei aquela sopa quente, o corpo
todo ficou suado, senti dor ou ardência em vários lugares, mas ia
desaparecendo a sensação fria, pegajosa e nojenta que me fazia
gritar descontroladamente. Fiquei com herpes no corpo inteiro, aquilo
ardia, coçava, doía. Logo veio a febre e tive delírios. Só
consegui sobreviver graças à sopa de Hao Mão Grande. Minha pele
descamou, doíam até os ossos. Já tinha ouvido histórias de
descamar a pele, trocar de ossos, e sabia que estava passando por um
processo desses, como um renascimento. Depois que me curei, disse a
Hao Mão Grande: ‘Vamos nos casar?’.”
Nessa
altura, o rosto de minha tia já estava coberto de lágrimas.
O
restante do programa mostrava o casal fazendo um boneco de barro
juntos. Minha tia, de olhos fechados, fala com o marido que, também
de olhos fechados, segura um pedaço de barro na mão: “Este
bebezinho se chama Guan Xiaoxiong. Seu pai tem um metro e setenta e
nove de altura, rosto quadrado, queixo largo, pálpebras sem
dobrinha, orelhas grandes, nariz grande mas achatado; já a mãe tem
um metro e setenta e três de altura, pescoço comprido, queixo
afilado, maçãs do rosto salientes, pálpebras com dobrinhas, olhos
grandes, nariz pontiagudo e arrebitado. O menino é trinta por cento
parecido com o pai e setenta por cento com a mãe…”. Enquanto a
tia fazia sua descrição, nascia das mãos do marido o tal menino
chamado Guan Xiaoxiong. A câmera mostrou o boneco em detalhe. Quando
vi aquele rosto de traços delicados e indescritível tristeza, meus
olhos ficaram marejados…
Mo Yan, in As rãs
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