Laroiê,
Agô.
Elegbara
– o dono do corpo – é o senhor da irreverência, capitão das
artimanhas e encantador das serpentes do tempo; o que bate suas asas
e produz o desassombro do acaso. Elegbara é o meu amigo Exu, aquele
que um verso de Ifá define como o menino querido de Olodumare.
Quando
a razão observa a natureza, surge a ciência. Quando é a poesia que
olha o que nos cerca, surge o orixá, o encantado, o caboclo de pena
e o catiço da rua. Os dois olhares não se excluem, antes se
complementam. Exu é, por isso, o olhar da poesia sobre o princípio
ativo que gera o movimento e permite a vida. É o que rompe, com a
velocidade do dínamo, o estado de letargia das coisas e pessoas e
confere vivacidade ao que estava morto ou não nasceu. Elegbara se
torna, desta maneira, o axé que possibilita que as coisas aconteçam;
ele só não é a própria realidade porque precede a ela.
Meu
compadre é o que transita serelepe entre o ayê e o orum – o
visível e o invisível –, é o senhor de tudo que se transmite,
relata ou malandramente se insinua. É a possibilidade de dizer e o
silêncio do não dito – feito o ponta esquerda que pode driblar
buscando a linha de fundo ou cortar pra dentro e bater com a perna
trocada. Vais apostar em que, meu lateral?
Exu
é palavra áspera, poema amoroso, grito de denúncia e canto doce
que rompe de beleza as manhãs do tempo. Exu está no ato de escrever
e no ato da leitura; é o signo e o significado de todas as formas de
comunicação estabelecidas entre os homens.
Ele
é, também, o pânico dos medíocres, a ameaça fatal aos que se
acomodam em uma existência mesquinha e limitadora. Exu não gosta
dos que buscam o conforto sem sobressaltos, dos que veem na segurança
acumulativa e nas conquistas individuais o destino último do ser
humano. Exu ameaça tudo isso, já que inaugura nas nossas vidas o
acaso que rompe planos minuciosamente elaborados. É ele que canta
seu fundamento na caída dos búzios e dos dados e, quando cisma,
desarticula tudo para que nos confrontemos com a necessidade de
fundar a existência em bases diferentes: “Recrie a vida!”; é o
recado de sua flauta em nossos ouvidos.
Os
que demonizam meu compadre acertam, porém, em um detalhe: o homem é
perigoso. Perigoso porque escapa das limitações do raciocínio
cartesiano – que tem pânico do inesperado – e não compactua com
fórmulas que reduzem a vida a um jogo de cartas marcadas, com
desfecho previsível.
Como
poderemos, na limitação de nossa tosca e arrogante visão
racionalista, entender Exu, o menino que colheu o mel dos gafanhotos,
mamou o leite das donzelas e acertou o pássaro ontem com a pedra que
atirou hoje? Como lidar com aquele que sentado bate com a cabeça no
teto e em pé não atinge nem mesmo a altura do fogareiro?
Exu
é Pastinha na ginga, Garrincha no drible, Dino no sete cordas,
Grande Otelo na tela, o jagunço na travessia, o sincopado do
escurinho com fama de brigão, a pimenta no caruru de Dona Flor, Tia
Eulália no miudinho, a rima de Aniceto na roda de partido alto, o
mote de Zé Limeira, o trenzinho de seu Heitor Villa-Lobos, o manto
do Bispo do Rosário, a vida severina, o infinito enquanto dure do
poeta e o provisório que se perpetua na poesia.
Posso
até imaginar a cena de um verdadeiro encontro de civilizações no
mais improvável dos filmes: o filósofo Heráclito diz que viver é
a arte de esperar o inesperado. Um moleque, preto retinto, filá na
cabeça, pés ligeiros e pau duro, solta uma gargalhada alegre e
responde ao grego, entre um gole e outro de marafo, enquanto descarna
um bode, prepara o couro e dança no aço da navalha:
– Só
percebeu isso agora, meu bom?
Luiz Antonio Simas, in Pedrinhas miudinhas – Ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros
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