Meu
amigo e informante almoça comigo aos domingos em minha casa. Ele é
desquitado, não tem filhos, eu, um solteirão. Ele vive de rendas,
poucas, eu sou tradutor, tenho algumas economias além da casa
própria. Nada nos aflige em particular; nem a velhice um dia — já
passamos os quarenta, somos contemporâneos, a data exata de nosso
nascimento vai mais por conta da imaginação do que dos fatos; com
isso mostro-me francamente otimista, não acho que estamos nos saindo
assim tão mal; fazemos o nosso cooper na pista do parque Ibirapuera
nas manhãs de domingo e depois do chuveiro nos premiamos com um bom
almoço comprado no restaurante da rua de trás; a que sai da avenida
larga, aquela avenida extensa onde um dia existiu apenas o leito para
as águas sujas do córrego do Sapateiro. Digo que meu amigo além de
amigo é informante porque é ele que aos domingos reapresenta o
mundo e as coisas para mim. Não que eu não tenha ideias. Como não?
E muitas! Mas ele, por assim dizer, é quem anuncia primeiro, ele que
primeiro assinala, descreve, interpreta. Eu me resguardo. Quase
sempre me calo. Mas quando a discordância é muita, respondo. Em
suma: ele que me informa verdadeiramente sobre as coisas, eu
simplesmente reajo. O que tenho e o que sei são em princípio para o
meu uso. Deixo que as impressões se acumulem, deixo que desçam
fundo e formem um depósito. É o meu amigo que faz nascer, por
oposição, o meu mundo desse depósito, tudo: uma espécie de
vórtice ao contrário que se pusesse em movimento por efeito de
alguma palavra sua e, em margens circulares cada vez mais amplas,
fosse largando sucessivamente: minha casa, o bairro, suas ruas, enfim
as ideias, as cidades, fortificações concêntricas, perfeitamente
estruturadas que ninguém diria pudessem brotar da natureza até
certo ponto amorfa como vem a ser a dos depósitos. Sendo esse o
caso, eu dependendo da sua informação para colocar a minha,
tenho-me na conta e acertadamente, de seu contra-informante. Não
deve causar espécie a ideia de eu procurar definir nossas
manifestações recíprocas de amizade como atos de informação e
contra-informação. Afinal somos, como todos em quem esbarramos
andando por aí mais ou menos de pé, os transeuntes da
contra-revolução de 64 (que meu amigo insiste em chamar de
revolução).
Veios
desgarrados e insubmissos do córrego do Sapateiro ou de algum outro
que eu nunca soube, fizeram — ajudados pelos aguaceiros de verão —
o seu trabalho de sapa no subsolo do meu terreno. Metade do muro da
frente desabou. Contratei dois pedreiros que amanhã tornam a
erguê-lo, talvez mova um processo contra a Prefeitura por perdas e
danos, mas hoje: Uma paisagem nova abre-se para mim e meu amigo.
Defronte, a casa do tintureiro torna-se próxima e animada. O
tintureiro, coisa que nunca me ocorreu, também não trabalha ao
domingos. Anda de lá para cá na sua propriedade, ergue-se,
senta-se, almoça, cuida da sua cerca-viva de azaleias. Sorri,
cumprimenta:
— Meu
amigo, duríssimo e preciso, informa-me no ato: — Dissimulado como
todos os japoneses. Reparou no sorriso?
Calo-me
como é de meu feitio.
— Reparou
no sorriso?
De
início acho mais prudente responder-lhe com outra pergunta para ver
se o distraio das vertentes sem volta onde usualmente sua retórica
imbatível o lança. Arrisco:
— Que
sorriso?
— Pergunta
estapafúrdia! E grosseira se me permite a franqueza! De quem havia
de ser o sorriso? O seu? Não gastaria um perdigoto para descrevê-lo!
O do muro caído? Sorriem os muros por acaso? E ainda que assim
fosse, teria esse muro em especial, razões particulares para sorrir?
Permaneço
razoavelmente calmo. Mastigo minha lasanha, bebo um gole do tinto,
brinco com o guardanapo. Ouso mesmo a barbaridade do lugar-comum:
— Parece
que vai chover.
Meu
informante lambe o dedo indicador e o espeta para fora da janela na
mornidão do dia para ver de que lado vem o vento; não vem de
nenhum. Na casa defronte observa-o o vizinho tintureiro, o sorriso
aumenta, quase um riso. Meu amigo recolhe o dedo sobressaltado; volta
à carga:
— Você
tem ainda o desplante de me perguntar que sorriso?
Faz
calor na sala, acho-me antecipadamente cansado e concedo: — Suponho
que queira se referir ao tintureiro meu vizinho, não? — Japonês!
Sinto-me
no direito de manifestar meu espanto jogando o guardanapo com força
sobre a mesa. Meu amigo o ignora e volta à carga: — Reparou no
sorriso? Se não reparou há pouco tem oportunidade agora pois o
dissimulado continua de boca aberta!
Apesar
de ser impossível ao vizinho pegar o conteúdo das palavras de meu
informante, eu, como forma de compensação, cumprimento-o várias
vezes, aceno-lhe, agito aflitivamente o guardanapo como se fosse uma
bandeirinha de sinaleiro.
— Vai
em frente, vai em frente — provoca meu amigo. — Só falta você
se jogar pela janela e ir lhe lamber os pés! Inocente útil! E se
fosse um espião?
— Um
espião!? — Confundo-me, interrompo-me, vejo que me deixei apanhar
numa armadilha. É preciso voltar atrás. Retomar o fio. Afasto o
copo de vinho, procuro ficar lúcido como um filamento aceso, falo
escandindo as sílabas:
— Meu
caro, o que o leva a supor que estamos diante de um tintureiro
japonês?
Meu
amigo e informante responde limpidament , os olhos postos no outro
lado da rua: — Reparou na natureza do sorriso?
— Muito
franco, muito aberto, se quer saber. Particularmente amigável. —
Perfeitamente, aí reside a completa dissimulação; aí também
começa a pista. Meu Deus, meu Deus! Você é mesmo um simples de
coração! Um sorriso dissimulado que se mostrasse francamente
dissimulado, o seria? hein? Sua lógica perfeita mantém minha boca
fechada.
— Um
sorriso dissimuladamente franco, por sua vez, teria alguma coisa a
ver com esse caso? Não, claro, porque um sorriso dessa espécie nada
mais é que o de um caráter franco que por pudor se oculta, disfarça
por timidez suas manifestações mais sinceras, está me seguindo?
Aprovo com a cabeça e tomo mais vinho.
— Agora,
o que me diz de um sorriso francamente franco? Hum? Aliso a toalha da
mesa e me permito regurgitar de forma audível para mostrar que não
apenas estou na minha casa como estou muito à vontade na minha casa.
Mas meu amigo encontra-se surdo para tudo que não diga respeito à
sua cerrada argumentação; continua:
— É
na manifestação absoluta de franqueza, no sorriso inteiramente
aberto sem qualquer hesitação que igualmente se manifesta a máxima
dissimulação é lógico!
Sendo
assim, irritado no limite da cólera eu o interrompo:
— Muito
bem! E aonde está querendo chegar?
Meu
amigo pede calma; repete a lasanha, está seguro como em raros
domingos eu o vi e particularmente satisfeito:
— Meu
caro, não estou querendo chegar porque já cheguei. O sorriso
perfeitamente franco desse seu vizinho tintureiro naturalmente não
faz mais do que exprimir a capacidade para a perfeita dissimulação,
própria da raça!
— Que
raça?
— Recomeçamos
como no caso do sorriso? Que raça, que raça!
— Amarela,
amarela! Japonesa, japonesa! Preciso ficar aqui repetindo como um
disco quebrado? Amarela! Amarela! Japonesa! Japonesa!
Respiro
fundo, enxugo o suor da testa com a ponta do guardanapo, um gesto que
reconheço desagradável e que nunca pensei fazer diante de
terceiros. Meu amigo desvia os olhos de mim com uma ponta de
repugnância em uma dessas manifestações espontâneas de rejeição
pelo outro que mesmo a maior amizade não consegue sempre ocultar.
Pergunto, novamente destacando as sílabas:
— O
que o leva a supor que tenha diante dos olhos, ali defronte, um
cidadão japonês?
— Ora,
ora! Não bastasse o sorriso, a profissão!
— E
por que os tintureiros teriam que ser necessariamente japoneses? —
Meu caro, não necessariamente. Mas veja, sem querer chamá-lo de
ignorante, suponho que você conheça algo sobre imigração
japonesa, as diversas profissões ocupadas no Estado de S. Paulo no
meio urbano depois que os descendentes dos primeiros japoneses,
deixando a lavoura...
— Basta!
— Pois
bem, basta. Não pensei em ofendê-lo. Mas quando se junta a essa
característica ocupacional típica, outra característica também
típica, étnica ou cultural, como queira, o sorriso dissimulado, o
que mais precisa para formar um juízo?
Sinto
que a minha jugular lateja. Nunca pensei até o dia de hoje na minha
jugular, nunca pensei em nomeá-la, tenho até dúvidas se é a
jugular mesmo, mas algo no meu pescoço pula de forma insistente como
se fosse a qualquer momento escapar do estojo da pele, minhas
palavras se atropelam, afasto o copo de vinho, digo respirando fundo:
— Se
outros sinais não lhe foram suficientes, tenho o prazer aqui agora
de lhe afirmar que ali defronte acha-se um tintureiro brasileiro! Um
tintureiro brasileiro, nem mais nem menos!
— Um
nisei, quer você dizer?
— Não,
não é um nisei o que eu quero dizer. Trata-se de um tintureiro
brasileiro, brasileiro! Cujo pai porém, além de não ter sido um
japonês, também não foi um português! Ou africano, ou italiano!
— Ah,
ah, e como então se chama esse senhor “brasileiro”? — Meu
amigo aspeia a palavra no ar com grande habilidade cênica.
— Marcus
Czestochowska! não sei se pronuncio certo, o que não vem ao caso.
— E
como vem! Divina Providência! Czestochowska, Kurosawa! O que quer
mais?
— Como
o que quero?
— Então,
não conhece o diretor japonês de cinema, Akira Kurosawa? Não
percebe que se trata de nomes gêmeos, com o mesmo peso sonoro,
provindos do mesmo chão?
Estou
farto e não o escondo:
— Não
seja imbecil, é um nome polonês, aliás o nome de uma cidade da
Polônia. Nunca ouviu falar de Matka Boska Czestochowska, analfabeto?
É a Virgem Maria, é uma imagem da Virgem Maria que existe pendurada
numa igreja em Czestochowska! Provavelmente a ideia de adotar o nome
da cidade como nome de família vem de algum ascendente mais remoto
que simples pais ou avós, arrastado, quem sabe, por irresistível
surto de nacionalismo exaltado ou catolicismo triunfalista, que sei
eu?
Meu
amigo balança a cabeça penalizado por mim e por meu empenho. Não
serão questiúnculas, ciscos como esses que o irão demover quando
algo verdadeiramente grande se acha à sua frente. Não ele! Enumera
em voz alta contando nos dedos:
— O
sorriso, a profissão, a geminação sonora, três dados. Como não
bastassem, o quarto e que arrasta e confirma os outros três: a
ocultação da nacionalidade (com ou sem adulteração de documentos
o que aqui é irrelevante). Oh, meu Deus, se fosse no tempo da guerra
quando o Brasil declarou guerra ao Eixo eu simplesmente denunciaria e
mandaria prender esse japonês!
Mas
as suponho coloridas, são varejeiras, mil, as asas irisadas, batem
na parte interna do crânio, as asas como mica ao sol, cintilam,
fracionam-se em mil outras, enchem-se a cabeça de som, cascalho e
loucura. Agarro-me aos fiapos de razão que sobram, procuro manter-me
à tona, contra-argumento: — Espere que o homem se vire para nós,
olhe, vem vindo para mexer de novo na cerca, aproveite agora que está
bem de frente; observe: que cor tem o seu rost? é amarelo? pálido?
negro? Meu informante retruca sem medo: — Rosado, não o nego. E
não teria por quê. Ganho forças paulatinamente, continuo:
— Bem,
agora preste muita atenção. E os seus olhos, serão oblíquos?
amendoados? puxados? entrefechados?
Meu
amigo dá um pequeno salto e sufoca um grito que me parece de
exultação e que talvez pela proximidade do assunto me lembra muito
o sinal de luta dos samurais como sempre vejo no cinema. Ele investe:
— Era por aqui que você queria me pegar? Oh, meu Deus mas a que
primarismo chegamos! Para você então o real é o imediatamente
dado, suponho? Na sua idade! Não quero saber de conversa fiada;
insisto: — Seus olhos, seus olhos, responda-me! — Com prazer, com
muito prazer! Redondos, REDONDOS!
As
moscas varejeiras retornam pelos ouvidos nas palavras de meu amigo,
entram e dançam dentro da cabeça. Mas eu quase mecanicamente vou em
frente: — A cor?
Meu
amigo informa-me com a segurança e a alegria de um colorista nato:
— Azuis,
azuis! Você duvida? Olhe lá em frente!
Do
outro lado da rua, no jardim da casa oposta, os olhos de meu querido
vizinho Marcus Czestochowska reluzem como dois faroletes celestes,
cintilam em nossa direção curiosos. Já perceberam uma movimentação
ativa demais para uma simples mesa de almoço. Meu amigo agora fará
sua preleção final:
— Você
talvez veja pouco televisão, talvez a julgue um divertimento menor,
um veículo plebeu. É pena. Se a visse com regularidade como eu,
talvez soubesse que durante muito tempo teve enorme sucesso aqui no
país um seriado japonês, um desenho animado em episódios chamado
“Taro Kid”. Pois bem, o herói desse seriado japonês tinha que
tipo de olhos? Puxados, por acaso? Redondos, absolutamente redondos!
Mesmo hoje se você ligar a televisão para ver desenho japonês não
vai ver coisa diferente. Mas o “Taro Kid” é que chamou primeiro
atenção para o fato, por isso eu cito. Se você além disso
deixasse essa inércia, descolasse o traseiro aí de Vila Nova e
fosse dar uma volta pela Liberdade, veria muitos outros desenhos
japoneses onde os heróis sempre, com raríssimas exceções, têm os
olhos? — Absolutamente redondos — respondo com um fio de voz.
— Você
em sua cegueira dirá que isso acontece por motivos de aculturação,
exportação, etc. etc. Invocará (pois passei a conhecê-lo bem de
64 para cá) mil fatores heterogêneos, indústria, capital,
alteridade, interculturalidade, com a maior sem-cerimônia. E botará
esse equipamento todo em cena, para quê? Para complicá-la. E tudo
isso com que finalidade? Recusar mais uma vez teimosamente.
— A
perfeita dissimulação!
— Própria
da raça!
— Amarela!
Mas meu amigo ainda não terminou:
— E
a coisa não fica só ao nível da imagem cinematográfica, não
senhor, irradia-se para o humano, lá chega, penetra a carne, o
conteúdo mesmo dessa imagem de cinema! Você naturalmente (ou pelo
menos assim espero) já leu alguma coisa sobre imigração japonesa
nos Estados Unidos? — Não tive a oportunidade.
— É
pena, é pena. Pois bem, informo-lhe; não irá perder a informação,
não por mim. A coisa é a seguinte: mesmo sem nenhum casamento
misto, sem nenhum fator de miscigenação, alguns traços físicos
desses imigrantes começam a mudar, inicialmente constatou-se a
alteração na altura média, devida provavelmente à alimentação
diversa, ao clima etc. Agora ouça. Acho-me imóvel com a cabeça
ligeiramente estendida para meu amigo de forma que o sol quente da
tarde se abate sobre minhas orelhas, elas ardem fundo como duas
línguas de fogo, duas labaredas apertando-me o crânio, para todos
os efeitos sou mesmo “todo ouvidos”.
— Ouça
—, insiste mais uma vez meu amigo, não satisfeito com minha
docilidade acesa e visível. — Ouça, ouça que tudo é ganho. Você
(e não se é cientista, mesmo de domingo aqui como eu, se não se
tem muito de imaginação criadora, se não se lança um grão de
audácia dentro do rigor lógico!), você já pensou a que níveis
extensos de dissimulação, a apropriação e controle dessa
possibilidade de modificação dos caracteres físicos pode chegar? A
miscigenação, e que seria à primeira vista a dissimulação mais
evidente, fácil e completa, é bem outra coisa, na verdade a nega e
por isso deve ser posta de lado nessa ordem de raciocínio. Pois no
caso da miscigenação, a desaparição de características raciais
se irá dar não por sua ocultação — o que aqui nos interessa —
mas pela sua “confusão”, pela sua “imersão” ou
“solubilidade” em contato com outros genes, seria portanto na
verdade a extinção da própria dissimulação, marca distintiva do
biótipo em pauta (-e nessa altura meu informante faz uma pequena
pausa, dá uma piscadela e aponta de forma significativa com o
queixo, a casa defronte -). Já pensou como o controle e
desenvolvimento dessa possibilidade de alteração física sem
cruzamento vem a ser tão mais grave exatamente na medida em que
ocorre por assim dizer, na superfície, permanece externa, manipula o
fisionômico para fazê-lo funcionar como cortina de fumaça?
Permita-me a veleidade agora de passar de cientista a poeta! Pense,
ao pensar nessa espécie de disfarce, na natureza dissimulada dos
biombos, dos gestos rituais para o preparo de um cachimbo de ópio
(resvalei para os chineses, não importa), nas engenhosas silenciosas
portas (ou paredes!) corrediças de papel de arroz (volto aos
japoneses com sua arquitetura escancaradamente dissimulada) , em
suma: pense em tudo isso e pense mais; pense em como irão funcionar
essas possibilidades ainda em aberto: como uma máscara de infinitos
recursos onde por trás se há de esconder sempre, em quaisquer
circunstâncias... Completo porque não há mesmo outra coisa a
fazer: — O japonês, o amarelo, o oriental.
— Isso
— reforça satisfeito meu informante e encerra a preleção com uma
exortação carinhosa:
— Assim,
não se deixe perturbar pelo fato dos olhinhos de seu vizinho serem
azuis, muito menos se abale com o fato de serem redondos! Indo por
essa ordem de raciocínio, por que haveria de espantá-lo a
circunstância de estarem tais olhos embutidos numa face rosada e
provavelmente (daqui de longe não posso afirmar com segurança)
pintalgada de sardas? e (veja que a nada temo, que nada evito em
minha descrição), circundada por cabelos vermelhos encaracolados e,
vou mais longe, vou mais longe, tudo isso sustentado por uma coluna
vertebral e mais duas pernas que, somadas, totalizam um conjunto de
pelo menos metro e noventa e lá vai pedrada? E se eu nada temo, por
que iria você se perturbar? Siga o meu exemplo, olhe em frente, no
sentido literal e figurado do termo porque ambos se ajustam à
situação. Olhe em frente e fique alerta: alerta sim, mas para o
significado oculto de tudo isso, a significação subjacente. Em
suma, analise com isenção e livre de paixões esse curioso espaço
que proveitosamente se abre à nossa frente para o nosso mútuo
regozijo intelectual. Observe nele a rigorosa não-coincidência
entre a imagem média do japonês comum e a rica e complicada
configuração de variegadas cores que se movimenta para lá da
cerca-viva de azaleias! E garanto que se você estiver descansado e
livre de preconceito, se o tinto não lhe tiver subido à cabeça,
saberá sem dúvida chegar à conclusão correta.
Uma
pausa se dependura no ar parado como bicho preguiça. Migalhas de pão
e salpicos de molho e vinho sujaram a toalha. Meu amigo e informante
não teme a interrupção de nossa amizade. É antiga como o bairro,
tem seus hábitos, seus desacordos que sempre voltam, alguns mais
profundos e definitivos do que esse, como a estória da
contra-revolução à qual meu parceiro de mesa sempre tira o aposto
com a teatralidade de quem desembainha a espada e separa de golpe uma
cabeça do tronco. Ele sem dúvida foi talhado para as situações
absolutas e o que irá permanecer é a sua lógica de ferro, sua
lógica fechada de algemas, perfeita como a circunferência do olho
azul que distingo entre uma azaleia e outra, saltando espantado no
puro amarelo do verão.
Disse
que minha qualidade de contra-informante nascia e se desenvolvia a
partir da informação, prestada pelo meu companheiro de almoço de
domingo. Isso é verdade. Todavia não disse que ultrapassada a
primeira fase, do diálogo audível, a outra desenvolve-se sempre
resistente mas invisível. Minha contra-informação como o subsolo
de meu terreno tem um tipo de porosidade que a permite se mover
perpetuamente e mover aquilo que sustenta. O bairro, o município e o
mundo, as fortificações em que me apóio vogam docemente, talvez
não resistam, mas disso eu gosto. Isso é a razão. Isso é comigo.
Me abro reflexivamente sem forças, cedo porque minha formação é
como essa terra preta do bairro, não presta, não edificará cidades
ou códigos. Não ficará.
Zulmira Ribeiro Tavares, in Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século
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