Sereis
como Deuses!…
Princípio
de conversa da Serpente com Eva
Com
o verão cresce o gasto de energia e aumenta a necessidade de comer.
Os frutos do mamoeiro, da goiabeira, do sapotizeiro amadurecem e
caem, espapaçados, na areia mole. Ficam com uma pequenina nuvem de
mosquitos festejadores, moscas diligentes e insetos mais graúdos que
sabem morder e sugar, excelentemente. Os pássaros participam do cibo
farto e delicioso e aproveitam a presença copiosa dos demais
fregueses para incluí-los nos cardápios. Não há nada mais
estimulante que um besouro ácido depois da polpa doce de um mamão
rubro e macio, com a multidão das sementes vestidas de seda
assimilável e saborosa, prontas para as certeiras bicadas do
bem-te-vi e dos canários de ouro.
Por
este processo aglutinativo de frutas justificando uma afluência
desusada de insetos e pássaros, o canto de muro vive vida nova de
agitação e interesse acima da rotina, do triste habitual que a
todos monotoniza.
Os
povos de Blata, Vênia, Musi acorrem ao festim farto e gratuito e de
mais a mais próximo e sem perigos maiores. Raca, Titius, Licosa não
comparecem. Gô faz ato de presença mas há coisas novas vindas de
longe, espalhadas nas casas distantes porque se aproxima a época do
Natal. Sofia desdenha esses banquetes e Niti igualmente. Não há
convidado nem intrusos e a recepção decorre no ambiente onde as
figuras são conhecidas e toleradamente estimadas. O mandarim Fu,
solene, vem sempre apreciar os besouros e as ondas ciciantes de
mosquitos e moscas, inesgotáveis e circulantes, agitando o ar na
palpitação miraculosa das asas invisíveis.
São
grandes horas de fartação sem ginástica e abundância sem
acrobacia. Os dias e as noites têm suas faunas rigorosas e clássicas
mas sempre há uma exceção imprevista, desnorteando observadores e
pondo notas e avisos nos livros de técnica. Há quem saia mais cedo
e também quem prolongue o trabalho, sabidamente diurno.
Já
escuro-escuro, o bem-te-vi esvoaça na sobremesa e o casal de
canários morigerados e sérios estão beliscando sem obediência aos
horários rituais. Que diriam os mestres da Ornitologia vendo esta
indisciplina espantosa? O mesmo que resmungaria um astrônomo
deparando de dia uma estrela retardatária…
Mas,
durante o dia radiante, embriagador de luz quase palpável, as aves
obrigam nossos olhos a olhá-las mais tempo, tornadas para a primeira
fila da representação tumultuosa. Passam de coristas aos lugares de
tenores e prima-donas, na boca de cena, monopolizando os aplausos.
É
possível namorá-los demoradamente vendo-os bicar, saltar, pular,
executando as várias formas de erguer o voo e o desenho alado e
gracioso descrito no ar com as asas frementes ou imóveis,
dominadoras.
Todas
as velhas notícias aprendidas outrora e semiesquecidas reaparecem
nítidas. Ossos com cavidades internas, pneumáticos, sacos aéreos
pela dilatação das membranas internas dos brônquios, comunicando
com os ossos, levando ar aos pulmões porque no voo o tórax, tornado
rígido, não permite a respiração normal, unicamente ocupado com a
ação dos músculos motores; diminuição de peso, as penas tetrizes
cobrindo-lhe o corpo sem oferecer resistência ao impulso aéreo, as
retrizes da cauda, em leme, e as rêmiges, potentes nas asas
miraculosas, os músculos peitorais mais fortes que os do Homem, toda
conformação aerodinâmica, feita para atravessar as camadas, furar,
projetar-se, sob o ímpeto propulsor de uma aceleração de ritmo
admirável, não me contentam nem satisfazem. Parece-me sacrilégio a
explicação simplista e fácil para compreender a maravilha que
volteia ao sol num ambiente natural, insubstituível, lógico.
Ainda
recordo a crítica fisiologista à impossibilidade dos anjos voarem
porque os peitorais e o esterno não eram suficientemente
desenvolvidos. O sábio é obrigado a suicidar o poeta lírico que
deve espernear dentro dele. Os anjos e deuses olímpicos elevam-se no
espaço em virtude de sua própria natureza etérea, recebendo da
essência interior, divina, o movimento na força única da vontade.
Vera incessu patuit dea – conhecia-se a deusa pelo andar.
Independeria dos atributos exteriores de sua divindade. Esta gente
erudita não lê Homero. Aprenderia como os deuses voam sem asas.
Num
avião nós somos hóspedes. Criadores, inventores, fabricantes de
motores e da aparelhagem surpreendente, pilotos, vamos olhando o
caminho sem rastros através das nuvens, milhares de metros acima de
um oceano sem segredos, de ondas banais, incessantes e humilhadas
pelo pássaro sonoro que parece independer de todos os regimes dos
ventos.
Mas
uma ave é a criatura que voa, íntegra, completa, total. Ela é a
mesma sensação indescritível, independência, arbítrio das
curvas, das descidas, das retas harmoniosas. Ela tem a potência nos
limites de sua anatomia funcional. É o próprio voo. Nós somos
passageiros num objeto que voa. Levados por ele embora sob a direção
das mãos, dos olhos, da experiência humana. Entre nós e o voo está
o avião, rumor, hélices, jato, gasolina, energia atômica. No meio,
o Homem, orgulhoso que foi ao céu escondido no bojo de sua invenção,
do seu atrevimento, como o jabuti participou da festa altíssima
oculto na viola do urubu. Ai de nós, não voamos. Somos
transportados.
Quanto
à origem, creio que a melhor fórmula ainda é o 1º livro do
Gênesis, versículos 20 e 21, especialmente o Creavitque Deus...
omne volatile secundum genus suum.
Vamos
crer num réptil que se lançou de um galho para o chão, já
possuindo órgão antes da função, saliências, abas,
excrescências, de cada lado do tronco, tornadas asas de pele,
paraquedas amortecedores do salto. Ninguém jamais saberá se este
animal, nas alturas do Jurássico, pretendia realmente caçar ou
suicidar-se. É o Archaeopteryx deixando nas ardósias de Selenhofen
a impressão horrenda do corpo onde se estendem asas com penas. Este
lagarto, que salta longamente com o auxílio de membranas orladas de
penas, abre a série aos graciosos monstros de nomes amáveis,
Pteranodontes, Rhamphorhynchus, Dimorphodontes, Pterodactylus,
répteis de voos pesados, lentos, tenebrosos, como se víssemos um
jacaré de Marajó passando por cima de uma palmeira.
Quando
vai passando o Cretáceo há aves de penas mas como surgiram elas e
por que a diferenciação tornou-se especificamente total? E por que
os répteis iniciantes desapareceram, anulados na seleção,
empurrados para a morte? É preciso o depoimento dos fósseis
intermediários para a revelação assombrosa. As asas, as penas, o
impulso ascensional são mistérios. Mistérios a independência dos
membros posteriores, a projeção da carena, a autonomia, a
disposição para o voo.
Como
estes membros anteriores se reduziram, se a identidade ecológica não
obrigaria diversificação tamanha, ganhando a maravilha das rêmiges?
E a ciência do equilíbrio e da direção nas retrizes, o leque da
cauda? Razões para sempre obscuras determinaram que este lagarto
abrisse o rudimento das asas, opondo ao vento uma superfície
sensível e vibrátil. Mas não foram estes os sobreviventes que
projetaram a espécie para a perpetuidade, mas outras ainda
escondidas nas fases evolutivas sem a visão do conjunto e do
testemunho fóssil.
O
pterossauro já possuía bico córneo, ausência de dentes, ossos sem
medula além das asas de pele, pegajosas e molengas, quando
desapareceu. Desapareceu sem deixar sucessores para o recebimento da
espantosa herança que era o Reino do Ar. Não teve a honra de ser o
antepassado do bem-te-vi que dá piruetas ou do xexéu que
reviravolteia no canto de muro.
Lêmures,
esquilos, rãs, lagartos e mais paraquedistas continuam alistados
permanentemente nesta arma imutável. Jamais obtiveram os benefícios
da promoção. O avô do canário da goiabeira seria um ur-typus
que ainda não permitiu reportagem reveladora. Continua em segredo.
Sabe-se, timidamente, que nos frios dos finais do Cretáceo os
répteis voadores desistiram da competição e os que usavam penas
avançaram para a contemporaneidade do século XX.
Et
vidit Deus quod esset bonum. E viu Deus que era bom o voo dos
pássaros deixando na graça airosa e frágil de sua mecânica o
problema para atrapalhar os sábios dos tempos passados e das eras
presentes.
O
vértice do ângulo comum entre religiosos e céticos, os devotos de
Deus e da Ciência, é justamente a Fé. Os primeiros acreditam que o
Ser Supremo criou uma espécie por um ato livre de sua vontade. Os
segundos creem que um animal, num dado momento, tomou determinada
atitude e esta, repetindo-se no tempo, originou espécie ou
modificações essenciais à sua existência no espaço. O bem-te-vi
está saltando no canto de muro porque Deus o fez ou um réptil o
gerou no período jurássico, pulando duma saliência de pedra e daí
em diante a função fez o órgão.
E
Deus viu que era bom…
Pouco
se me dá que a lagartixa esteja concordando comigo ou Fu discorde,
num bufo de ironia piedosa. A maior alegria humana é o encontro de
sua própria explicação para o fenômeno, da sua e não da
explicação oficial, possivelmente certa, verificada, inabalável.
Não posso recordar nenhum ornitologista famoso, mas Pascal que não
o era.
On
se persuade mieux, pour l’ordinaire, par les raisons qu’on a
trouvées soi-même, que par celles que sont venues dans l’esprit
des autres.
Todas
estas conclusões por causa de um bem-te-vi maluco e de um xexéu
deseducado…
Posso
afirmar que os pássaros possuem muitos cantos e cada um destes tem
inflexões diversas, especialmente na parte final. Em voo, no
trabalho da nidificação, pousados, alimentando-se, em pleno jogo
lúdico, chamando a companheira, isolados, como informando do seu
paradeiro ou situação tranquila, são diferentes, típicos,
característicos. O bem-te-vi foi tomar banho no tanque e molhou-se
demais. Tanto esvoaçou, abrindo as asas, borrifando-se, dando saltos
e voejos circulares, que acabou dentro da água, como um banhista.
Saiu pingando água, trôpego, com um andar de urubu malandro,
canhestro. Pude facilmente deixar o esconderijo e apanhá-lo,
segurando-o na mão. Não esqueci os olhos abertos, o bico fendido
num apelo desesperado em que se via a garganta nacarada e palpitante
e sobretudo o grito, o grito que lançou, tão diverso de quantos
ouvira no dia luminoso e vadio de observação encantada. Uma série
de gritos roucos, como dificilmente partidos da garganta, ásperos,
inacabáveis, numa entonação aflita, persistente, significando
menos uma súplica de impossível auxílio do que um aviso heroico
para que a companheira se afastasse da mesma desgraça. Semelhava
antes um coaxo de sapo do que uma nota musical de pássaro. Buffon,
há dois séculos, já registrara o mesmo canto, lembrando o dos
batráquios e que ouvira a um dos soberanos tenores, o rouxinol.
Renúncia de luta, resignação, aceitamento da morte inapelável.
Restitui-o à beira do tanque e voltei ao ponto escondido. O
bem-te-vi, depois de algumas tentativas, pôde voar. Pousou num galho
da mangueira e de lá soltou outro grito, noutro tom, noutro timbre.
Uma só nota, alta, límpida, triunfal. Todos os bem-te-vis deviam
ter compreendido que o companheiro regressara ao sol, às alegrias da
vida anterior.
Certamente
o ecúmeno dos pássaros é proporcional à sua amplidão de voo. A
sua “liberdade” é bem mais limitada que a nossa poética
compreensão da autonomia das aves. Deverá estar circunscrita não
somente às fronteiras das utilidades mas também ao possível
conhecimento habitual das áreas percorridas. Na época do ninho, com
a esposa e filhos, é natural que não se afaste muito da zona
doméstica. Noto, porém, que bem depois, com os filhos independentes
e dispersos, os voos têm os mesmos horizontes e podem ser medidos
por determinados pontos de referência. Podia ir muito além mas não
vai. O meu casal de canários vive dentro de um possível quilômetro
quadrado em tempo normal. O bem-te-vi é mais viajante mas,
regressando ao pouso antes do anoitecer, não deve ter percorrido
distância respeitável. Minha impressão humana é que o uso das
asas desse um sentido de deslocação eterna, de jornada
ininterrupta, de viagem sem fim, uma espécie de marinheiro-fantasma
na avifauna, atravessando os espaços com o destino de uma evasão
contínua. Mas, ao que deduzo, as aves do canto de muro estão presas
ao limite da vida como eu, preso às fronteiras do meu trabalho,
batendo insensivelmente nas grades da gaiola citadina onde vivo sem
cantar.
Buffon
ensinava uma hierarquia relativamente ao predomínio dos sentidos.
Para o homem a seriação era: – Tato, paladar, vista, audição,
olfato. Para os quadrúpedes: – Olfato, paladar (quase o mesmo
sentido determinador dos movimentos), vista, audição, tato. Para as
aves: – Visão, audição, tato, paladar, olfato. Ponho, com a
maior sem-cerimônia, o ouvido como órgão precípuo nos meus amigos
de pena e bico.
Fui
caçador, caçador criminoso e de crimes laboriosamente premeditados
porque caçava com alçapões, armadilhas, visgo, laços, com iscas
de melão-de-são-caetano e – horror! – levando uma outra ave
para “chama”, pulando dentro do alçapão. Vi, tantíssimas
vezes, a ave aproximar-se, realizar o seu longo processo de
acomodação, conservando a área prudente para a fuga. Nunca há
silêncio nos recantos onde exerci minha reprovável atividade. Havia
rumores de vento nas galhadas, quedas de folha, pios, sussurros,
gravetos despencados, sons confusos, dispersos, longínquos, trazidos
pelas aragens e espalhados na mata. Vezes os arbustos atritavam. Uma
vaca atravessava com seu chocalho avisador. A ave, seduzida pela
visão do companheiro ou engodo da fruta apetecida e aparentemente
fácil, esvoaçava por perto, um círculo maior ou menor, zona
intransponível onde sua curiosidade, amor ou gula faziam-na
semiprisioneira. Podia mesmo avistar-me, deitado, imóvel, disfarçado
covardemente, olhando-a. Ia-se lentamente habituando e o complexo da
fuga diluía-se no atrito de outros interesses materiais e notórios.
Bastava, entretanto, um estalido, quebra de raminho seco, um pé que
se espreguiçava inconsciente e mexera na moita de folhas secas, numa
bulha de cascavel agitada e a ave voava, de vez, num voo diagonal,
liberta de todas as seduções e restituída ao seu arbítrio
crítico. Só o rumor pudera dar ao seu instinto a totalidade da
impressão suspeitosa. A visão do objeto suspeito é de menor
eficácia que a audição de um rumor suspeito.
É
o cúmulo que neguem a vista maravilhosa das aves. De certas aves,
pelo menos. Sofia – dou depoimento pessoal – ouve melhor do que
vê e mesmo nas horas de penumbra. Falta-me apenas saber o limite da
distância em que uma ave tem a percepção da figura. Como raros
teimosos ainda leem Buffon, gosto de citá-lo porque é uma
observação numa lonjura de dois séculos para confrontar-se com as
observações americanas. Buffon afirmava que um objeto iluminado
pela luz solar desaparece aos nossos olhos na distância de 3.436
vezes o seu diâmetro. Um homem desapareceria aos olhos de um pássaro
que voasse a 4 mil metros de altura. Certo? Nunca pude verificar mas
deve haver bibliografia respondendo a confessada ignorância. Difícil
acomodar-se esta visão espantosa com observações de parentes meus,
caçadores veteranos e mentirosos relativamente sem imaginação. Sei
muito bem da imaginação do caçador, do pescador de alto mar e do
antigo e saudoso caixeiro-viajante, substituído, com vantagem, pelas
recordações confidenciais de alguns turistas, com ou sem livros de
viagens.
O
gavião faminto, não tendo disponíveis os pintos de galinheiros,
persegue pássaros com a desenvoltura natural de quem sabe o bico e
as garras que possui. Os caçadores sertanejos não perdoam o
corsário. Numa destas feitas notaram que um gavião possante estava
pousado a uns vinte metros da árvore onde canários, rolinhas,
papa-capins vadiavam despreocupados como numa praia de Copacabana. Só
fugiram quando o gavião levantou voo. Estavam todos perfeitamente
vendo o pirata. Audácia destemorosa ou falta de visão no plano da
prudência?…
Noto
também que os pássaros pousados no alto cantam mais forte que os
encontrados ocasionalmente em pontos baixos, mesmo no solo.
O
contato humano influirá decisivamente na variedade melódica das
aves cantadoras? Afirmam que as aves dos países bárbaros são
ásperas e roucas e as “civilizadas” lépidas e claras. Certo que
apenas determinadas espécies aperfeiçoam o canto quando
prisioneiras. As melhores são os filhos, netos, bisnetos de aves
presas, aves que dificilmente recobrarão as técnicas da nidificação
e o esforço pelo cibo diário, livremente, habituadas à gaiola
farta, como os canários belgas. Há inicialmente modificação no
canto e todas as aves famosas como tenoras são nascidas no
cativeiro. As capturadas e postas nos aviários não recobram
plenitude do canto que lhes custou a liberdade. Naturalmente xexéus,
bem-te-vis e outras aves que costumam imitar outras, e outros sons,
ganham variações novas nas proximidades das residências humanas
porque dali recebem as excitações de motivos sonoros não possíveis
no campo ou na mata. As aves em liberdade têm modulações que
jamais repetem no âmbito das gaiolas. Em compensação aprendem,
seus descendentes, gorjeios e trinados que não conheciam antes, ou
melhor, desenvolvem na gaiola certas melodias apenas iniciadas quando
em liberdade. Outros diminuem em proporção lamentável e ficam
unicamente dando ao senhor a visão das penas bonitas. Ou da fama que
não desejam corresponder. Os amadores de aves canoras sabem que os
melhores espécimes são “criados”, isto é, feitos, educados, na
prisão, filhos de pais prisioneiros e eles próprios, naturalmente,
nascidos entre grades. A graúna, o canário, o xexéu de canto
atordoador pela variedade perdem muito e muito quando presos. Os
filhos recobram as excelências tradicionais. Com um tanto de lirismo
dir-se-á que não conhecem as alegrias de um voo livre e
decorrentemente ignoram as seduções que a mata oferece aos seus
moradores.
Negam
que tenham o sentido do paladar na acepção do sabor. Engolindo sem
mastigar, sem glândulas salivares, a alimentação será meio
mecânico de sustentar-se. Comem o substancial e o dispensável,
passando pelo deleitável e o perigoso. Frutos e insetos terão para
as aves o mesmo sabor? Não falo das aves presas que outrora tive o
mau gosto de possuir. Falo das aves olhadas longamente em plena
liberdade. Liberdade para escolher o alimento e tempo da refeição.
Quem nunca viu um sanhaçu (tanagrídeo) almoçando numa goiabeira ou
bicando mamão maduro não terá a imagem feliz de uma degustação
saboreada. Um xexéu merendando minhoca, sabiá em laranja aberta, um
canário engolindo semente de mamão-macho, dizem de um prazer quase
consciente, expresso nos leves pipilos, o que devem significar as
alegrias de boa mesa ao ar livre, num camping inesquecível.
Estas mesmas aves na gaiola, com alpiste, pedacinhos de frutas e a
folha de alface pendurada, terão outra conduta, comportamento de
quem come salada de lagosta na cadeia ou bebe um cru de
Mezés-Malé, rayon de miel de Tokay, na hora de ir para a
cadeira elétrica.
Uma
revolução decisiva nos costumes e critérios de civilização seria
o homem e sua mulher terem tido as cores de sua raça de maneira
inalterável na epiderme. Couro, pelo, pena, quitina, penugens,
conforme o combinado, como possuímos idiomas e bandeiras nacionais,
assim seríamos, imutavelmente, identificáveis à primeira vista em
nossas respectivas etnias. Os processos de mestiçagem
traduzir-se-iam pelas colorações relativas.
A
ideia me veio olhando as penas dos meus amigos que terminam o jantar.
Por que usam estas cores não sei. Não há acordo, conluio, aliança
que possam disfarçar uma da outra família ornitológica. São
obrigados a defender suas cores e declarar-se solidários com a
imensa família. Foi possível a São Pedro afirmar-se alheio ao
conhecimento de Jesus Cristo mas um tiranídeo não pode dizer-se
icterídeo. As cores denunciam-no positivamente. Esta fórmula, como
valorização de solidarismo político, seria de algum alcance.
A
coloração vibrante de algumas aves parece um desafio aos inimigos.
As cores neutras, pardacentas, simulando folhas secas, pedras e
areias, troncos de árvores, já têm sua bibliografia explicativa.
Naturalmente há interpretações difíceis. Ensinam que os animais
manchados da mata apresentam manchas de cor clara, simulando as
réstias solares. Os nossos felídeos de maior força, as onças, são
animais de caça noturna. Tanto a vermelha, suçuarana, como a
pintada, preta ou canguçu, deixam durante a noite o covil para o
assalto aos currais. A imagem dos raios do sol não pode ter
influído, exceto se o mimetismo pertencer às épocas geológicas
remotas. Onça de dia é como equilíbrio orçamentário, visão
impossível de puro ineditismo.
Mas
há cores sem intenção utilitária pelo menos dentro de nossa
compreensão. Mas ninguém afirmará que a disposição destas cores
não tivesse tido em algum tempo significação essencial para o tipo
e depois para a espécie, tanto assim que se tornou comum a todos os
membros. Explicável a cor berrante, espetaculosa ou alheia às
necessidades da defesa, burla ou intimidação nas aves importadas.
As nacionais, algumas, lembram mais uma exibição permanente de
apelo às fêmeas arredias ou demonstração da variedade pictórica
do Criador, que a indumentária normal de aves que vivem em vigília
e evitação aos adversários mais fortes. Mas a região neotrópica
é justamente o palco destes desfiles suntuosos.
O
ritmo quaternário das estações na Europa e América do Norte dá a
divisão regular dos serviços e mesmo intensidade na coloração
individual. Os processos de hibernação, resguardo ao frio,
alimentação no inverno, correspondem às transformações da
Natureza ambiental com as fases típicas da vida vegetal e nesta o
cortejo dos insetos, larvas, toda espécie animal dependente. Um
outono, um inverno na Europa são pausas no compasso da existência
associativa, obrigando-as às mudanças de alimentação, horário de
caça, abrigo etc. Aqui, num verão perpétuo afora a época das
chuvas, as aves possuem a luminosidade ofuscadora, impulsiva,
vibrante dos dias tropicais. Amanhece mais cedo e o ano inteiro é
uma provocação ao movimento e ao combate. Os pinguins nos trópicos
seriam tangarás.
A
pilhéria, cediça e aposentada, lembra que no Brasil existem duas
estações: o Verão e a da Estrada de Ferro.
Mas
agora os voos vão se tornando mais raros e de âmbito mais restrito.
Já uma e outra vez as visitas verificaram nos ninhos sua ordem
normal. Do escuro da mangueira os pios vão descendo, anunciando o
repouso tranquilo. Ainda há frutas abertas no chão e nas árvores
mas a fome deste dia acabou. O chilreado se amiúda quando a noite
chega, lenta e doce. O grilo começou a cantar. A luz indecisa
transfigura o canto de muro. Aqueles que lutam nas trevas que as
estrelas interrompem vão saindo para a vida, voando, andando,
rastejando, coleando, perdendo-se na escuridão…
Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro
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