sexta-feira, 24 de maio de 2024

Antes do nascer do sol




Ó céu acima de mim, céu puro, profundo! Ó abismo de luz! Olhando-te, estremeço de divinos desejos.
Lançar-me à tua altura — eis a minha profundeza! Ocultar-me em tua pureza — eis a minha inocência!
O deus é encoberto por sua beleza: assim escondes tuas estrelas. Não falas: assim me proclamas tua sabedoria.
Mudo sobre o mar estrondeante surgiste hoje para mim, teu amor e teu pudor trazem revelação à minha alma estrondeante.
Que tenhas chegado a mim lindamente, encoberto em tua beleza, que me fales mudamente, manifesto em tua sabedoria:
Oh, como não adivinharia eu as vergonhas de tua alma? Antes do sol vieste a mim, o mais solitário.
Somos amigos desde o começo: tristeza, horror e profundeza temos em comum; também o sol temos em comum.
Não falamos um ao outro, porque sabemos coisas demais —: silenciamo-nos, sorrimos um para o outro o que sabemos.
Não és a luz para meu fogo? Não tens a alma irmã do meu entendimento?103
Juntos aprendemos tudo; juntos aprendemos a subir acima de nós, até nós mesmos, e a sorrir desanuviados:—
sorrir desanuviados para baixo, de olhos luminosos e de imensa distância, quando abaixo de nós coação, finalidade e culpa embaciam como chuva.
E, caminhando eu sozinho: de quem tinha fome a minha alma, à noite e por sendas erradas? E, subindo eu montanhas, quem buscava eu, senão a ti, pelas montanhas?
E todo o meu caminhar e subir montanhas: apenas necessidade, recurso de um canhestro: — somente voar deseja a minha vontade, voar para dentro de ti!
E quem mais odiei do que as nuvens passageiras e tudo que te mancha? E meu próprio ódio também odiei, pois te manchava!
Tenho aversão às nuvens passageiras, sorrateiros felinos rapaces: elas tiram de ti e de mim o que nos é comum — o imenso, ilimitado dizer Sim e Amém.
Temos aversão a esses mediadores e intromissores, as nuvens passageiras: esses meio-isso, meio-aquilo, que não aprenderam a abençoar, nem a amaldiçoar a fundo.
Eu preferiria estar num barril sob o céu fechado, estar num abismo sem céu, a ver-te maculado de nuvens que passam, ó céu de luz!
E muitas vezes desejei atá-las com os arames de ouro dos raios e, como o trovão, bater o tambor sobre as caldeiras de seus ventres: —
um timbaleiro irritado, porque elas me roubam teu Sim e Amém, ó céu sobre mim, puro, luminoso! Abismo de luz! — porque elas te roubam meu Sim e Amém.
Pois ainda prefiro barulho, trovão e maldições do tempo a essa ponderada, vacilante quietude felina; e entre os homens também odeio mais que tudo os pisa-mansinho, meio-isso, meio-aquilo e duvidosas, vacilantes nuvens que passam.
E “quem não pode abençoar, deve aprender a amaldiçoar” — esse claro ensinamento me veio de um claro céu, mesmo em noites escuras essa estrela se acha em meu céu.
Mas eu sou alguém que abençoa e diz Sim quando estás ao meu redor, ó céu puro, ó luminoso! Abismo de luz! — a todos os abismos levo o meu Sim abençoador.
Tornei-me alguém que abençoa e diz Sim: para isso pelejei muito tempo e fui um lutador, de modo a um dia ter as mãos livres para abençoar.
Mas eis minha bênção: estar sobre cada coisa como seu próprio céu, seu teto abobadado, sua redoma de cor anil, sua perene certeza: e bem-aventurado é quem assim abençoa!
Pois todas as coisas são batizadas na fonte da eternidade e além do bem e do mal; mas os próprios bem e mal são apenas sombras intermédias, abafadas aflições e nuvens que passam.
Em verdade, trata-se de uma bênção e não de uma blasfêmia, quando ensino que “sobre todas as coisas está o céu Acaso, o céu Inocência, o céu Contingência, o céu Exuberância”.
Lady Contingência” — eis a mais velha aristocracia do mundo, que devolvi a todas as coisas, ao redimi-las da servidão à finalidade.
Essa liberdade e serenidade celeste eu pus como redoma cor de anil sobre todas as coisas, ao ensinar que acima e por meio delas não existe uma “vontade eterna” a querer.
Essa exuberância e essa tolice eu pus no lugar dessa vontade, ao ensinar que “em tudo, uma coisa é impossível — racionalidade!”.
Um pouco de razão, é verdade, uma semente de sabedoria espalhada de estrela em estrela — esse fermento se acha misturado a todas as coisas: por causa da tolice,104 a sabedoria se acha misturada a todas as coisas!
Um pouco de sabedoria é possível; mas esta bem-aventurada certeza encontrei em todas as coisas: elas ainda preferem — dançar com os pés do acaso.
Ó céu acima de mim, céu puro, elevado! Esta é para mim a tua pureza, não haver eterna aranha e teias de aranha da razão: —
seres para mim um local de dança para divinos acasos, seres uma mesa divina para divinos dados e jogadores de dados! —
Mas enrubesces? Disse eu algo indizível? Blasfemei, ao querer te abençoar?
Ou é a vergonha por estarmos a sós que te fez enrubescer? — Mandas-me silenciar e partir porque agora — o dia chega?
O mundo é fundo —: mais fundo do que jamais pensou o dia. Nem tudo pode se expressar diante do dia. Mas o dia chega: separemo-nos, então!
Ó céu acima de mim, envergonhado e ardente! Ó felicidade minha, antes do nascer do sol! O dia chega: separemo-nos, então! —

Assim falou Zaratustra.

Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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