Meia-noite
o rio dorme
Mais
ou menos dois minutos
Pra
nós é um tempo curto
Pra
Uiara é um tempo enorme
[Uiara,
Paulo César Pinheiro]
Contam
os canoeiros do São Francisco que o rio, na hora grande da
meia-noite, dorme durante dois minutos. É a hora em que a vida
vadeia e o mundo se recolhe: as cachoeiras interrompem a queda, a
correnteza cessa e até Paulo Afonso silencia. Os ribeirinhos
aprendem desde cedo que não se deve acordar o rio durante o seu
sono.Nos dois minutos de sono do rio, os peixes se aquietam, as
cobras perdem a peçonha e a mãe d’água se levanta para pentear
os cabelos nas canoas. Os que morreram afogados saem do fundo das
águas em direção às estrelas. Esse sono do rio não deve ser, de
maneira alguma, interrompido, sob pena de endoidecer quem despertou
as águas.
Ando
matutando – como sujeito alumbrado que sou pelas brasilidades
caboclas – a respeito do que os ribeirinhos ensinam sobre o
descanso do rio e concluo que, vez por outra, é mesmo necessário
adormecer no tempo e sossegar como as águas.
O
ritmo da nossa sociedade – marcado pelo fascínio das máquinas, o
ruído dos motores, a precisão dos relógios, a velocidade das
informações simultâneas e a procura feérica da felicidade –
acelera a vida e nos desacostuma dos homens. Tem lá seus benefícios
– não sou, definitivamente, um saudosista –, mas anda perto das
desumanidades.
Por
isso é preciso, vez por outra, adormecer feito o rio ao abandono das
horas, se aluar em águas paradas e abandonar os desatinos da
felicidade (o brinquedo que não tem).O sono do São Francisco, o
desapego dos peixes e o silêncio das cachoeiras me fazem crer que a
expectativa da felicidade, da forma como a sociedade de consumo lida
com ela, é das coisas mais brutais que existem. O sujeito acha que
tem que ser bem-sucedido no amor, no trabalho e nas relações
pessoais. Precisa viajar pelo menos duas vezes por ano, trocar de
carro de quando em vez, não pode ficar doente e não pode conceber a
morte. Acontece que não é assim que o rio segue seu curso e
descansa no fim do dia.
Como
ninguém é capaz de atingir essa tal felicidade de shopping center
que é vendida por aí, formamos aos montes um bando de depressivos,
uns sujeitos infantilizados que não conseguem lidar com o fracasso e
se entopem de remédios para dormir, acordar, trabalhar, trepar...
Parece paradoxal, mas é isso mesmo: a expectativa da felicidade é
uma fonte poderosa de angústias e depressões.
Que
os caboclos do Brasil, portanto, me iluminem para que eu respeite o
sono do rio, o repouso dos peixes e o voo dos afogados. Que o país
imaginado, e em mim recolhido, me ensine a viver na síncopa, no
drible, na dobra do tambor, na oração dos romeiros, na dança lenta
de Oxalufã, nas delicadezas do Reisado, nas rodas de cirandas, nas
oferendas do Divino, na suavidade dos sons bonitos e na imponência
calada das gameleiras.
Esse
nosso mundo, de tão virtual, anda meio desvirtuado – e eu quero
cada vez mais ter o tempo de adormecer o rio, aquietar os peixes,
sossegar as cachoeiras, louvar meus ancestrais e me encantar com a
Uiara a envaidecer canoas.
Luiz Antonio Simas, in Pedrinhas miudinhas, Ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros
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