Ilustração: Rodrigo Rosa
[…]
Sobrevinha
o tropel grande de cavaleiros. Aos quais! era Joca Ramiro, com sua
gente total. Subiu pó e pó, por ouros, poeira de entupir o nariz e
os olhos. Agarrei de mim, sentado lá, no mesmo meu lugar, atrás do
pedação de pedra. O que eu estava era envergonhado. O fezuê se fez
um enorme. Sendo que chegavam também os outros grupos nossos,
escutei os brados de Sô Candelário. A roda de cavaleiros tantos, no
raso, sempre maior. Algum soprou o buzo de corno de boi. Tocavam para
o acampamento. Mas Diadorim estava me caçando, e mais João Curiol,
pelos mortos e feridos que também tínhamos, e também ali ele devia
de ter perdido algum trem seu, objeto. ― Homem danado... ― ouvi o
que um dizia. Meus olhos firmavam no chão, agora eu via que tremia.
― Ipa! Zé Bebelo, oxém, ganhou patente. E estragador! Eu falei: ―
E? ― e neste entretanto. Ao menos Diadorim raiava, o todo alegre,
às quase dansas: ― Vencemos, Riobaldo! Acabou-se a guerra. A mais,
Joca Ramiro apreciou bem que a gente tivesse pegado o homem vivo...
Aquilo me rendia pouco sossego. E depois? ― Para que, Diadorim?
Agora matam? Vão matar? Mal perguntei. Mas o João Curiol virou e
disse: ― Matar não. Vão dar julgamento...
― Julgamento?
― não ri, não entendi.
― Aposto
que sei. Aí foi ele mesmo quem quis. O homem estúrdio! Foi
defrontar com Joca Ramiro, e, assim agarrado preso, do jeito como
desgraçado estava, brabo gritou: ― Assaca! Ou me matam logo,
aqui, ou então eu exijo julgamento correto legal!... e foi. Aí
Joca Ramiro consentiu, o praz-me, prometeu julgamento já... ― isto
o que falou João Curiol, para me dar a explicação.
Agradeci
mesmo isso, a cisma não era para pór peso em meus peitos. Saímos
ainda com João Concliz, a ir em longe arredor, prevenir os que
faltavam. A vinda geral. A gente de Titão Passos e do Hermógenes
mandava aviso de estarem em caminho. Os do Ricardão já aos tantos
chegavam. Saí, com esses de João Concliz. Fui. Fiz questão. Eu não
queria retornar logo, com os outros, não enxergar Zé Bebelo eu
achava melhor. Montamos e sumimos por aqueles campos, essa estrada,
esses pequizeiros. ― Homem engraçado, homem dóido! ― Diadorim
ainda achava. ― Sabe o que ele falou, como foi? E me deu notícia.
Tinha
sido aquilo: Joca Ramiro chegando, real, em seu alto cavalo branco, e
defrontando Zé Bebelo a pé, rasgado e sujo, sem chapéu nenhum, com
as mãos amarradas atrás, e seguro por dois homens. Mas, mesmo
assim, Zé Bebelo empinou o queixo, inteirou de olhar aquele, cima a
baixo. Daí disse!
― Dê
respeito, chefe. O senhor está diante de mim, o grande cavaleiro,
mas eu sou seu igual. Dê respeito!
― O
senhor se acalme. O senhor está preso... ― Joca Ramiro respondeu,
sem levantar a voz.
Mas,
com surpresa de todos, Zé Bebelo também mudou de toada, para
debicar, com um engraçado atrevimento!
― Preso?
Ah, preso... Estou, pois sei que estou. Mas, então, o que o senhor
vê não é o que o senhor vê, compadre! é o que o senhor vai
ver...
― Vejo
um homem valente, preso... ― aí o que disse Joca Ramiro, disse com
consideração.
― Isso.
Certo. Se estou preso... é outra coisa...
― O
que, mano velho?
― ...E,
é o mundo à revelia!... ― isso foi o fecho do que Zé Bebelo
falou. E todos que ouviram deram risadas.
Assim
isso. Tolêimas todas? Não por não. Também o que eu não entendia
possível era Zé Bebelo preso. Ele não era criatura que se prende,
pessoa coisa de se haver às mãos. Azougue vapor...
E
ia ter o julgamento.
Tanto
que voltamos, manhã cedinho estávamos lá, no acampo, debaixo de
forma. Arte, o julgamento? O que isso tinha de ser, achei logo que
ninguém ao certo não sabia. O Hermógenes me ouviu, e gostou! ― E
e é. Vamos ver, vamos ver, o que não sendo dos usos... ― foi o
que ele citou. ― Ei, agora é julgamento! ― os muitos caçoavam,
em festa fona. Cacei de escutar os outros. ― Está certo, está
direito. Joca Ramiro sabe o que faz... ― foi o que disse Titão
Passos. ― Melhor, mesmo. Carece de se terminar o mais definitivo
com essa cambada! ― falou Ricardão. E Só Candelário, que agora
não se apeava, vinha exclamando: ― Julgamento! E isto! Têm de
saber quem é que manda, quem é que pode! ― Ao espraia as margens.
Agora
estavam todos mais todos reunidos, estávamos no acampamento do E-Já,
onde ali mal tanto povo cabia, e lotes e pontas de burros, a
cavalhada pastando, jagunços de toda raça e qualidade, que iam e
vinham, comiam, bebiam, bafafavam. Só Candelário tinha remetido
dois homens, longe, no São José Preto, só para comprarem foguetes,
que no fim teriam de pipocar. E onde estava Zé Bebelo? Apartado,
recolhido de toda vista, numa tenda de lona ― essa única que se
tinha, porque Joca Ramiro mesmo se desacostumava de dormir em
barraca, por o abafo do calor. Não se podia ver o prisioneiro, que
ficava lá dentro, feito guardado. Contaram que ele aceitava comida e
água, e estivesse deitado num couro de vaca, pitando e pensando.
Gostei. O de que eu carecia era de que ele não botasse olhos em mim.
Eu apreciava tanto aquele homem, e agora ele não havia de ser meu
pesadêlo. ― Aonde é que vamos? Onde é que esse julgamento vai
ser? ― perguntei a Diadorim, quando surpreendi os suspensos de se
ter saída. ― Homem, não sei... ―; Diadorim disso não sabia. Só
depois se espalhou voz. Ao que se ia para a Fazenda Sempre-Verde,
depois da Fazendo Brejinho-do-Brejo, aquela a do doutor Mirabó de
Melo.
Mas,
por que causa iam dar com aquele homem tamanha passeata? Carecia
algum? Diadorim não me respondeu. Mas, pelo que não disse e disse,
tirei por tino. Assim que Joca Ramiro fazia questã de navegar três
léguas a longe com acompanhamento de todos os jagunços e capatazes
e chefes, e o prisioneiro levado em riba dum cavalo preto, e todas as
tropas, com munição, coisas tomadas, e mantimentos de comida, rumo
do Norte ― tudo por glória. O julgamento, também. Estava certo?
Saímos, de trabuz. No naquele, a gente podia ver resenho de toda
geração de montadas. Zé Bebelo lá ia, rodeado por cavaleiros de
guarda, pessoal de Titão Passos, logo na cabeça do cortejo. Ia com
as mãos amarradas, como de uso? Amarrar as mãos não adiantava. Eu
não quis ver. Me dava travo, me ensombrecia. Fui ficando para trás.
Zé Bebelo, lá preso demais, em conduzido. Aquilo com aquilo ― aí
a minha ideia diminuia. Tanto o antes, que fiz a viagem toda na
rabeira, ladeando o bando bonzinho de jegues orelhudos, que fechavam
a marcha. A pobreza primeira deles me consolava ― os jumentinhos,
feito meninos. Mas ainda pensei! ele bom ou ele ruim, podiam acabar
com Zé Bebelo? Quem tinha capacidade de pôr Zé Bebelo em
julgamento?! Então, ressenti um fundo desânimo. Sem mais Zé
Bebelo, então, o restado consolo só mesmo podia ser aqueles jericos
baianos, que de nascença sabiam todas as estradas.
Assim
passamos pelo Brejinho-do-Brejo, assim chegamos na Sempre-Verde. Aí
fomos chegando. Que me deu, de repente? Esporeei e galopei, para
dianteira, fomentado, repinchando dessas angústias. Vim. Eu queria
sobressalto de estar ali perto, catar tudo nos olhos, o que acontecia
maior. Nem não importei mais que Zé Bebelo me visse. Passei quase
para a frente de todos. Estavam pensando que eu viesse com um recado.
― Que foi, Riobaldo, que foi? ― gritou para mim Diadorim. Dei
nenhuma resposta. Pessoa ali não me entendia. Só mesmo Zé Bebelo
era quem pudesse me entender.
A
Fazenda Sempre-Verde era a casa enorme, viemos saindo da estrada e
entrando nas cheganças, os currais-de-ajuntamento.
Aquele
mundo de gente, que fazia vulto. Parecia um mortório. Antes passei,
afanhou a porteira, aí fomos enchendo os currais, com tantos os
nossos cavalos. A casa-de-fazenda estava fechada.
― Não
carece de se abrir... Não carece de se abrir... ― era uma ordem
que todos repetiam, de voz em voz. Ave, não arrombassem, aquilo era
de amigo, o doutor Mirabó de Melo, mesmo ausente. Esbarramos no
eirado, liso, grande, de tanto tamanho. Aí tinham apeado Zé Bebelo
do cavalo, ele estava com as mãos amarradas, sim, mas adiante do
corpo, feito algemas. ― Ata amarra os pés também! ― algum
enfezado gritou. Outro se chegou, com uma boa peia, de couro de
capivara. Que era que aquela gente pensavam? Que era que queriam?
Doideira de todos. Daí, Joca Ramiro, Só Candelário, o Hermógenes,
o Ricardão, Titão Passos, João Goanhá, eles todos reunidos no
meio do eirado, numa confa. Mas Zé Bebelo não estava aperreado.
Tomou corpo, num alteamento ― feito quando o perú estufa e estoura
― e caminhou, em direitura. Que que pequeno, era bom: homem às
graças. Caminhou, mesmo. ― Oxente! Para diante de Joca Ramiro, no
meio do eirado, tinham trazido um mocho, deixado botado lá; era um
tamborete de tripés, o assento de couro. Zé Bebelo, ligeiro, nele
se sentou. ― Oxente! ― se dizia. A jagunçama veio avançando,
feito um rodear de gado ― fecharam tudo, só deixando aquele
centro, com Zé Bebelo sentado simples e Joca Ramiro em pé, Ricardão
em pé, Só Candelário em pé, o Hermógenes, João Goanhá, Titão
Passos, todos! Aquilo, sim, que sendo um atrevimento; caso não, o
que, maluqueira só. Só ele sentado, no mocho, no meio de tudo. Ao
que, cruzou as pernas. E:
― Se
abanquem... Se abanquem, senhores! Não se vexem... ― ainda falou,
de papeata, com vênias e acionados, e aqueles gestos de cotovelo,
querendo mostrar o chão em roda, o dele.
Arte
em esturdice, nunca vista. O que vendo, os outros se franziram,
faiscando. Acho que iam matar, não podiam ser assim desfeiteados,
não iam aturar aquela zombaria. Foi um silêncio, todo. Mandaram a
gente abrir muito mais a roda, para o espaço ficar sendo todo maior.
Se fez.
Mas,
de repente, Joca Ramiro, astuto natural, aceitou o louco oferecimento
de se abancar! risonho ligeiro se sentou, no chão, defronte de Zé
Bebelo. Os dois mesmos se olharam. Aquilo tudo tinha sido tão
depressa, e correu por todos um arruído entusiasmado, dando
aprovação. Ah, Joca Ramiro para tudo tinha resposta! Joca Ramiro
era lorde, homem acreditado pelo seu valor.
A
modo que ― Zé Bebelo ― sabe o senhor então o que ele fez? Se
levantou, jogou para um lado o tamborete, com pontapé, e a esforço
se sentou no chão também, diante de Joca Ramiro. Foi aquele
falatório geral, contente. De coisas de tarasco, assim, a gente não
gostava? E até os outros chefes, todos, um por um, mudaram de jeito!
não se sentaram também, mas foram ficando moleados ou agachados,
por nivelar e não diferir. Ao que o povaréu jagunço, com ansiedade
de ver e ouvir o que se desse, se espremendo em volta, sem remangar
das armas. Aquele povo ― rio que se enche com intervalo dos
estremecimentos, regular, como o piscar de olho dum papagaio. Vigiei
o Hermógenes. Eu sabia! dele havia de vir o pior. Com o que, todo o
mundo parado, formaram uns silêncios. Menos no mais, Joca Ramiro ia
falar as palavras consagradas?
― O
senhor pediu julgamento... ― ele perguntou, com voz cheia, em
beleza de calma.
― Toda
hora eu estou em julgamento.
Assim
Zé Bebelo respondeu. Aquilo fazia sentido? Mas ele não estava lôrpa
nem desfeliz, bom para a forca. Que até capivara se senta é para
pensar ― não é para se entristecer. E rodou aprumada a cara,
vistoriando as caras de tantos homens. Ar que inchou o peito e o
queixo levantou, valendo se valendo. Criatura assim sente tudo
adivinhado, de relâmpago, na ponta dos olhos da gente. Eu tinha
confiança nele.
― Lhe
aviso: o senhor pode ser fuzilado, duma vez. Perdeu a guerra, está
prisioneiro nosso... ― Joca Ramiro fraseou.
― Com
efeito! Se era para isso, então, para que tanto requifife? ― Zé
Bebelo repostou, com toda a ligeireza.
De
ouvir, dividi o riso do siso. A pois! Ele mesmo tinha inventado
exigido esse julgamento, e agora torcia o motivo: como se em fim de
um julgamento ninguém competisse de ser fuzilado... Saranga ele não
era. Mas estava brincando com a morte, que para cada hora livrava. Ao
que bastava Joca Ramiro perder um ponto da paciência, um pouco. Só
que, por sorte, paciência Joca Ramiro nunca perdia; motejou, não
mais:
― Adianta
querer saber muita coisa? O senhor sabia, lá para cima ― me
disseram. Mas, de repente, chegou neste sertão, viu tudo diverso
diferente, o que nunca tinha visto. Sabença aprendida não adiantou
para nada... Serviu algum?
― Sempre
serve, chefe: perdi ― conheço que perdi. Vocês ganharam. Sabem
lá? Que foi que tiveram de ganho?
O
puro lorotal. E atrevimento, muito. Os jagunços em roda não
entendiam o escutado; e uns indicavam por gestos que Zé Bebelo
estava gira da ideia, outros quadrando um calado de mau sinal. Até o
que disse: ― De lá não sai barca! Assim se diz. Joca Ramiro não
reveio logo. Mexeu com as sobrancelhas. Só, daí:
― O
senhor veio querendo desnortear, desencaminhar os sertanejos de seu
costume velho de lei...
― Velho
é, o que já está de si desencaminhado. O velho valeu enquanto foi
novo…
― O
senhor não é do sertão. Não é da terra...
― Sou
do fogo? Sou do ar? Da terra é é a minhoca ― que galinha come e
cata! esgaravata!
Que
visse o senhor os homens! o prospeito. Aqueles muitos homens,
completamente, os de cá e os de lá, cercando o oco em raia da roda,
com as coronhas no chão, e as tantas caras, como sacudiam as
cabeças, com os chapéus rebuçantes. Joca Ramiro tinha poder sobre
eles. Joca Ramiro era quem dispunha. Bastava vozear curto e mandar.
Ou fazer aquele bom sorriso, debaixo dos bigodes, e falar, como
falava constante, com um modo manso muito proveitoso! ― Meus
meninos... Meus filhos... Agora, advai que aquietavam, no estatuto.
Nanja, o senhor, nessa sossegação, que se fie! O que fosse, eles
podiam referver em imediatidade, o banguelê, num zunir! que
vespassem. Estavam escutando sem entender, estavam ouvindo missa. Um,
por si, de nada não sabia; mas a montoeira deles, exata, soubesse
tudo. Estudei foi os chefes.
[...]
Guimarães Rosa, in Grande Sertão: Veredas
Nenhum comentário:
Postar um comentário