sexta-feira, 12 de abril de 2024

As rãs | 8.


A chuva continuou por dias a fio, bloqueou as estradas, encheu o rio, nenhum caminhão conseguia chegar a nossa aldeia para comprar a safra de pêssegos.
Todas as famílias tinham pêssegos colhidos. Alguns foram colocados em cestos, empilhados como pequenas colinas, cobertos com uma lona plástica para protegê-los da chuva. Outros ficaram amontoados desordenadamente no chão do pátio, à mercê da chuva que surrava e encharcava. Essa variedade de pêssego, doce e suculenta, é muito sensível ao armazenamento. Nos anos anteriores, os caminhões paravam ao lado do pomar. As frutas iam da árvore para a balança e dali para a caçamba. Sem descansar, os caminhoneiros corriam a noite toda para, na madrugada seguinte, entregar os pêssegos em cidades a mais de quinhentos quilômetros dali. Mas nesse ano parece que o céu quis punir a sorte que as pessoas tiveram nas últimas safras. Desde que os pêssegos amadureceram, praticamente não houve um único dia de tempo bom, as chuvas se sucediam, fortes, médias ou miúdas. Se não fossem colhidos, os frutos apodreceriam no pé. Colhidos, talvez ainda restasse uma chance: assim que o tempo melhorasse, os caminhões viriam para levar a produção. Mas até então não havia sinal de que o tempo iria melhorar.
Em casa só plantávamos trinta pés de pêssego, porque meu pai já estava velho e não dava conta de muita coisa, a produção era pequena, mas ainda assim chegava a quase três mil quilos. Tínhamos poucos cestos para frutas, dezesseis cestos cheios foram guardados no cômodo lateral, os pêssegos restantes ficaram empilhados no pátio, cobertos com um plástico. Meu pai às vezes saía na chuva, levantava a lona e pegava frutos para dar uma olhada. Cada vez que ele levantava aquele plástico, sentíamos o cheiro de pêssego podre.
Como Leoazinha e eu éramos recém-casados, meu pai ficou cuidando de minha filha. Quando meu pai saía para o pátio sob a chuva, minha filha o seguia. Ela carregava um pequeno guarda-chuva com figuras de animais.
Minha filha nos tratava com frieza, mas mantinha um grau suficiente de educação. Leoazinha lhe deu um doce, ela pôs as mãos para trás e recusou, dizendo: “Obrigada, tia”.
Chame-a de mamãe”, eu disse.
Minha filha arregalou os olhos e me olhou assustada.
Não precisa, não precisa chamar de coisa nenhuma”, disse Leoazinha. “Todo mundo me chama de Leoazinha”, ela apontou para o leãozinho do guarda-chuva, “então você me chama de Leoazona.”
Você come criança?”, perguntou minha filha.
Eu não como crianças”, respondeu Leoazinha, “minha especialidade é proteger as crianças.”
Meu pai voltou carregando um monte de pêssegos meio podres dentro de um chapéu de bambu e pôs-se a cortar as frutas com uma faca enferrujada, enquanto cortava, suspirava.
Se for comer, coma as frutas boas”, eu disse.
Isso é tudo dinheiro!”, disse meu pai. “Este céu não tem dó dos pobres.”
Pai”, Leoazinha agora o chamava assim, falava de um jeito estranho, e ouvi-la era estranho também, “o governo não vai ficar sem fazer nada, com certeza estão buscando uma solução.”
O governo só quer saber de planejamento familiar, não estão nem aí para outras coisas!”, disse meu pai com algum ressentimento.
Nesse exato momento, o alto-falante do Comitê do Partido na aldeia começou a falar. Meu pai, com medo de não escutar direito, correu para o pátio e aguçou o ouvido.
Pelo alto-falante avisaram que a comuna havia contatado Qingdao, Yantai e outras cidades. Um comboio de caminhões tinha sido enviado e estava reunido no cais de Wujiaqiao, a mais de vinte e cinco quilômetros da aldeia, onde montaram barracas para comprar nossos pêssegos. A comuna pedia à população que levasse a produção até lá, por terra ou pelo rio. O preço cairia pela metade em relação ao ano anterior, mas era melhor do que deixar as frutas se perderem.
Mal terminou o anúncio, a aldeia começou a fervilhar. E eu sabia que não estávamos sozinhos nisso, todas as aldeias da região fervilhavam junto.
Embora a gente tenha um grande rio por aqui, o número de barcos é bem pequeno. Antes, cada equipe de produção contava com alguns botes de madeira, mas ninguém sabe onde foram parar depois da descoletivização agrária.
As massas populares guardam uma criatividade infinita, essa frase não podia ser mais verdadeira. Meu pai correu até o cômodo lateral e tirou quatro cabaças que estavam penduradas na viga, carregou para o pátio mais quatro pedaços de madeira e uma corda e começou a fazer uma jangada. Tirei o casaco e, vestindo só calção e camiseta, fui ajudar meu pai no trabalho. Leoazinha segurava o guarda-chuva para mim. Minha filha corria para lá e para cá no pátio com seu pequeno guarda-chuva na mão. Fiz um sinal para Leoazinha segurar o guarda-chuva para meu pai, mas ele disse que não precisava. Meu pai tinha um pedaço de lona plástica sobre os ombros, a cabeça descoberta. A água da chuva escorria pelo seu rosto, misturada ao suor. Na hora da labuta, os velhos camponeses como meu pai voltam sua concentração integralmente ao que estão fazendo, trabalham com precisão e força, não há um só movimento supérfluo. A jangada ficou pronta num instante.
Quando saímos carregando nossa embarcação, um burburinho incomum já se formara na beira do rio. Os botes de madeira desaparecidos tinham reaparecido de repente. Junto com eles, também foram à água dezenas de jangadas. Amarradas a estas, havia cabaças, câmaras de ar e isopor. Não sei quem pegou até uma tina de madeira. Barcos e jangadas estavam amarrados aos salgueiros da margem. De cada viela vinha gente apressada carregando cestos de pêssego.
Quem criava burros ou mulas já tinha abarrotado os cestos no lombo dos animais. Dezenas deles se enfileiravam na beira do rio.
Um funcionário da comuna, que tinha vindo andando pela água com uma capa de chuva, as pernas da calça arregaçadas e as sandálias na mão, gritava de pé na margem.
Vi, à frente da nossa, uma jangada que se aproximava da perfeição… Quatro grossos troncos de cedro cruzados em jogo da velha, atados com cordas de couro. O espaço central era preenchido com bastões de madeira da grossura de um cabo de foice. Embaixo da jangada foram amarradas quatro câmaras de ar de charrete, vermelhas, bem infladas. Apesar de estar carregada com mais de uma dezena de cestos de pêssego, a jangada parecia leve, bem se via que aquelas quatro câmaras de ar eram flutuadores potentes. A jangada contava ainda com cinco paus verticais, amarrados em cada canto e no centro. Sustentavam um plástico azul-claro que servia para abrigar do sol e, naturalmente, também da chuva. Uma jangada dessas com certeza não era obra de poucas horas.
Wang Pé estava agachado na proa, com uma capa de palha sobre os ombros, um chapéu de bambu na cabeça, parecia um pescador à espera da fisgada.
Com apenas seis cestos de pêssego, nossa jangada já estava bem pesada. Meu pai insistiu em colocar mais dois cestos. Eu disse: “Pode colocar mais dois cestos, mas o senhor não vai, eu vou sozinho”.
Talvez considerando que era o segundo dia de meu casamento com Leoazinha, meu pai fez questão de ir no meu lugar. Eu disse: “Pai, não discuta, olhe para toda essa gente na margem, será que tem alguém que, na sua idade, ainda enfrenta o rio numa jangada?”.
Então tome cuidado”, disse ele.
Não se preocupe, posso não prestar para outras coisas, mas pelo menos sei nadar.”
E se o rio encrespar muito, jogue os pêssegos na água”, recomendou.
Não se preocupe.”
Acenei para Leoazinha, que segurava minha filha pela mão.
Leoazinha acenou para mim também.
Meu pai desatou a corda amarrada na árvore e jogou para mim.
Agarrei a corda e enrolei bem, peguei a vara e apoiei no barranco, empurrei com força e a jangada começou a se mover, pesada e lentamente.
Vá com cuidado!”
Vá com muito cuidado!”
Manobrei de forma a acompanhar a margem, sem me afastar muito dela, e a jangada foi descendo o rio sem pressa.
Os animais de carga seguiam em paralelo pela orla. Caminhavam devagar sob o peso dos cestos. Alguns donos mais caprichosos penduraram sinos de cobre no pescoço das bestas, que tilintavam. Velhos e crianças acompanhavam a caravana de mulas por uma parte do caminho, mas se detiveram no final da aldeia.
O rio fazia uma curva fechada ao sair da aldeia. Aqui os barcos e as jangadas entravam na correnteza rápida. Wang Pé, que conduzia sua jangada sempre à minha frente, não seguiu o fluxo. Em vez disso, levou sua jangada para as águas calmas na curva do rio. Ali, no barranco, crescia uma moita bem fechada, uma profusão de cigarras cantava entre os galhos. Desde o instante em que vi a maravilhosa jangada de Wang Pé, pressenti que algo estava para acontecer. De fato, Wang Pé jogou os cestos na água. Boiaram. Obviamente não tinha pêssego ali dentro. Aproximou-se da folhagem e vi Chen Nariz, alto e corpulento, pular para a jangada carregando Wang Vesícula e seu barrigão. Atrás dele, Wang Fígado também pulou com a sobrinha nos braços.
Imediatamente baixaram a cobertura de plástico, que formou uma cortina. Wang Pé, com a vara na mão, retomou a antiga postura de quando conduzia a carroça empunhando o chicote, parecia rejuvenescido. Sua cintura estava reta, por aí se via que minha tia estava certa ao dizer que aquela corcunda, aquele andar encurvado eram puro fingimento dele. E o tal “rompimento das relações entre pai e filho” era coisa dita no calor da hora. No momento da necessidade, pai e filho vão lutar ombro a ombro na linha de frente. De qualquer forma, do fundo do coração, desejei a eles boa sorte, desejei que conseguissem chegar com Wang Vesícula ao lugar que queriam. Claro que, pensando em toda a inteligência que minha tia havia investido nisso, senti uma ponta de tristeza.
A jangada de Wang Pé tinha boa flutuação e ainda levava pouco peso, ultrapassou-nos com rapidez.
Jangadas e botes desciam de todas as aldeias nas duas margens. Na altura de Dongfeng, aquele lugar onde minha tia feriu a cabeça e sangrou, centenas de jangadas e dezenas de barcos de madeira se juntavam no meio do rio para formar um longo dragão que descia a correnteza.
Eu não tirava os olhos da jangada dos Wang. Ela podia ter nos ultrapassado, mas não saía do meu campo de visão.
A jangada dos Wang era sem nenhuma dúvida a mais altiva daquele dia, parecia um “Hummer” misturado a um comboio de carros medíocres.
Não só altiva mas também misteriosa. Quem viu aquela cena na curva do rio naturalmente sabia que segredo se escondia sob a cortina plástica, quem não viu, não podia deixar de lançar um olhar atravessado, desconfiava. Porque, fosse qual fosse o ponto de vista, o que aquela jangada levava não era pêssego.
Lembro-me agora que, quando o barco do planejamento familiar usado por minha tia passou por nós a todo o vapor, fui tomado por uma inquietação indefinível. O barco não era mais aquele improvisado nos anos 1970, agora era uma lancha aerodinâmica, de um branco leitoso. A frente da cabine semifechada era de acrílico transparente, o piloto era o mesmo Qin He de sempre, agora grisalho. Minha tia e minha nova esposa estavam em pé, segurando o corrimão atrás da cabine, o vento jogava suas roupas para trás. Olhei para os peitos de Leoazinha, redondos como bolas, e logo me vi numa confusão de sentimentos. Atrás delas, quatro homens estavam sentados cara a cara nos assentos laterais. A lancha produziu ondas que respingaram em nossas jangadas e redemoinhos que nos sacudiram para cima e para baixo. Acredito que Leoazinha me viu quando passou rente a mim, mas nem acenou, a Leoazinha com quem eu acabara de me casar parecia outra pessoa. Tive a sensação de estar sonhando, quase tudo até aquele instante havia sido sonho. A indiferença de Leoazinha fez meu coração pender rapidamente em favor dos fugitivos — rápido, Wang Vesícula, fuja! Depressa, Wang Pé!
A lancha da minha tia cruzou a fileira de embarcações e se lançou em direção à jangada dos Wang, que flutuava isolada na frente, à direita.
A lancha da minha tia não ultrapassou os Wang. Em vez disso, emparelhou-se com eles e reduziu a velocidade, o motor quase não se ouvia. A lancha estava a dois ou três metros da jangada e continuava se aproximando. Obviamente queriam, com essa manobra, forçar a jangada para a margem. Wang Pé agarrou a vara e apoiou no costado da lancha, provavelmente queria afastar o perigo, mas, em reação oposta, a jangada foi aos poucos levada para fora da correnteza.
Um homem que estava na lancha pegou um bastão com um gancho de ferro na ponta e puxou a lona plástica da jangada. O plástico se rasgou. Deu mais alguns puxões e tudo o que estava na jangada veio à luz.
Wang Pé batia no homem da lancha com a vara. O homem revidava com seu bastão. Nisso, Wang Fígado e Chen Nariz, sentados nos lados da jangada, remavam com todas as suas forças. No meio deles estava Wang Vesícula, aquela miniatura de mulher, na mão esquerda segurava Chen Orelha, que escondia o rosto em seu sovaco, a mão direita cobria o ventre bojudo. Em meio ao estalar das bordoadas, em meio ao rugir das ondas, volta e meia se ouvia sua voz estridente: “Tia, misericórdia, deixa a gente ir!”.
Quando aos poucos se afastavam do barco, Leoazinha tomou impulso, pulou em direção à jangada e — tchibum — caiu na água. Como não sabia nadar, afundou. Minha tia gritou pedindo socorro. Aproveitando a oportunidade, Chen Nariz e Wang Fígado remaram com todas as forças até colocar a jangada de volta na correnteza.
Levaram um tempo considerável para resgatar Leoazinha. Um homem a bordo da lancha estendeu-lhe um bastão, mas, quando a puxou para junto do barco, ela agarrou a perna dele e o fez cair na água. Era mais um que não sabia nadar direito. Os outros a bordo tiveram de pular na água para salvá-los e Qin He, que pilotava, parecia ter perdido sua destreza. De tanta raiva, a tia saltitava, xingava. Ninguém das jangadas ou dos barquinhos se ofereceu para ajudar. Como Leoazinha, apesar de tudo, é minha esposa, eu remava tentando me aproximar dela, mas outra jangada que vinha atrás me cortou a passagem e quase me fez virar. Vendo que Leoazinha punha cada vez menos a cabeça para fora da água, não hesitei mais, abandonei a jangada e os pêssegos e, com um salto, mergulhei na correnteza, avancei batendo os braços, fui salvar minha mulher.
No instante em que Leoazinha pulou na água, desenhou-se um grande ponto de interrogação na minha mente. Só depois Leoazinha me contaria, como quem relata uma façanha, que sentira cheiro de sangue, o sagrado cheiro de sangue que é próprio das parturientes. Ao mesmo tempo, ela viu sangue na perna de Wang Vesícula. Então caiu na água de propósito — claro que esse ato ainda poderia ter outra explicação: ganhar tempo. Ela se arriscou a morrer afogada para ganhar tempo, e rezou para os espíritos do rio: “Wang Vesícula, depressa, tenha logo seu filho, depressa, assim que sair da ‘boca da panela’ será uma vida, um cidadão da República Popular da China, receberá proteção, as crianças são as flores da pátria, o futuro da nação”. Obviamente, me contou Leoazinha, a tia não se deixaria enganar com esse truquezinho. “Sua tia me conhece bem, é só eu esticar o rabo, que ela já sabe qual é a merda que vai sair.”
Quando conseguimos colocar Leoazinha e o outro funcionário de volta na lancha, a jangada dos Wang já ganhara uma distância de pelo menos um quilômetro e meio. Justamente nesse momento, o motor morreu. Qin He, com a cabeça encharcada de suor, tentava repetidas vezes acionar a máquina. Minha tia quicava de raiva. Agarrados à amurada, Leoazinha e o funcionário punham a cabeça para fora e vomitavam água.
Depois de quicar por um momento, minha tia se acalmou. No seu rosto apareceu um sorriso meio triste. Um raio de sol penetrou as nuvens, iluminou seu rosto, iluminou também o rio de ondas turvas e a fez parecer uma heroína num beco sem saída. Ela sentou na amurada e disse a Qin He em voz baixa: “Pare de fingir, vocês parem de fingir”.
Qin He parou por um instante, e conseguiu acionar o motor de repente. A lancha, como uma flecha que deixa o arco, avançou em direção à jangada dos Wang.
Eu dava palmadinhas nas costas da Leoazinha e espiava minha tia de canto de olho. Ela ora baixava a cabeça e fitava o chão, ora sorria. Em que estaria pensando? De repente lembrei que ela contava quarenta e sete anos, sua juventude havia terminado fazia tempo, agora andava pela meia-idade, mas seu rosto, marcado pela vida, já mostrava a desolação da velhice. Me lembrei do que dizia minha mãe: “A mulher nasce para quê? A mulher, no fim das contas, nasce é para ter filho. O renome de uma mulher vem de seus filhos, a dignidade de uma mulher vem de seus filhos, a felicidade e o orgulho de uma mulher também vêm de seus filhos. Mulher sem filho é uma angústia, mulher sem filho não pode se considerar completa. Além do mais, mulher sem filho fica com o coração duro, envelhece mais rápido”. Quando dizia essas coisas, minha mãe se referia a minha tia, mas nunca falou nada na frente dela. Será que o envelhecimento da minha tia tem a ver com o fato de ela não ter filho? Ela já está com quarenta e sete anos, caso se apressasse para casar, ainda teria condições de gerar um filho? E, afinal de contas, onde está o homem que poderia ser o marido da minha tia?
A lancha logo alcançou a jangada dos Wang. Ao se aproximar, Qin He reduziu a velocidade e foi chegando cuidadosamente.
Wang Pé estava na popa, segurando uma vara comprida. Com os olhos esbugalhados de raiva, parecia pronto para matar ou morrer.
Com Chen Orelha no colo, Wang Fígado estava sentado na proa.
Chen Nariz estava no meio da jangada, abraçado a Wang Vesícula, chorava, ria e gritava: “Rápido, Vesícula, tenha essa criança logo! Quando nasce é uma vida! Elas não vão se atrever a esmagar uma vida! Wan Coração, Leoazinha, vocês perderam! Haha, vocês perderam!”.
Fios de lágrimas rolavam pelo rosto do homem barbudo.
Foi aí que Wang Vesícula soltou uns gritos de arrepiar os ossos, de quem sente as entranhas se rasgarem.
Quando a lancha encostou na jangada, a tia inclinou o corpo e estendeu a mão.
Chen Nariz sacou uma faca, parecia uma fera: “Demônio, tire daqui sua garra!”.
Com toda a calma, minha tia disse: “Isto não é uma garra de demônio, é a mão de uma obstetra”.
Quando me dei conta do que acontecia, senti vontade de chorar e gritei: “Chen Nariz, deixe minha tia descer na sua jangada! Deixe que ela faça o parto!”.
Segurei um dos paus da jangada com uma vara. Movendo o corpo pesado, minha tia passou para a embarcação dos Wang.
Leoazinha pegou a maleta de medicamentos e pulou na jangada.
No momento em que abriam com uma tesoura a calça de Vesícula, ensopada de sangue, virei de costas. Mantive o braço esticado para trás, segurando firme para não deixar a jangada se separar da lancha.
Na minha mente, surgia a imagem de Vesícula, tal como entrevira por um breve instante: deitada com a parte inferior do corpo mergulhada em sangue. O corpo pequeno, a barriga bojuda, parecia um golfinho raivoso e assustado.
A corrente fluía indiferente; as nuvens se esgarçavam, trespassadas por raios de sol. A fila de jangadas com a carga de pêssegos seguia serpenteando. A minha jangada, sem condutor, foi levada pela correnteza.
Eu esperava. Esperava em meio aos choros e gritos de Vesícula. Esperava em meio ao bater das ondas. Esperava em meio aos zurros dos jumentos na margem do rio.
Subiu da jangada o choro rouco de um bebê.
Virei a cabeça imediatamente e vi minha tia segurando o bebê prematuro com as duas mãos, enquanto Leoazinha enfaixava sua barriga com gaze.
Outra menina”, disse minha tia.
Desanimado, Chen Nariz baixou a cabeça, parecia um pneu furado. Golpeava o crânio alternadamente com os dois punhos e dizia cheio de angústia: “O céu quer acabar comigo… O céu quer acabar comigo… Quem diria que, depois de cinco gerações, a linhagem da família Chen termina comigo…”.
Você é um filho da puta!”, disse minha tia.
Embora a lancha tenha voltado a toda velocidade levando a parturiente e a recém-nascida, não foi possível salvar a vida de Wang Vesícula.
Segundo Leoazinha, antes de morrer Vesícula teve um momento de lucidez. Perdeu quase todo o sangue, seu rosto tinha a cor de um papel dourado. Ela sorriu para minha tia e murmurou algo. Minha tia se aproximou, inclinou a cabeça para escutar o que dizia. Leoazinha diz que não conseguiu entender o que era, mas minha tia certamente entendeu. A cor de ouro no rosto de Vesícula deu lugar a um cinza-pálido. Seus olhos estavam arregalados, mas sem brilho. Seu corpo se encurvou como um saco amassado depois de esvaziado de seus grãos, ou um casulo vazio depois de saída a mariposa. Minha tia ficou sentada ao lado dela, de cabeça baixa. Depois de muito tempo, levantou-se e deu um longo suspiro. “Para que tudo isso?”, pareceu perguntar a Leoazinha, mas também podia ser que falasse para si mesma.
Sob os cuidados meticulosos de minha tia e de Leoazinha, Chen Sobrancelha, a filha prematura de Wang Vesícula, finalmente conseguiu vencer o período de risco e sobreviveu.

Mo Yan, in As rãs

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