Trêmulo
e casto
[…]
Chego
na maravilhosa Orizaba Street (depois de cruzar grandes parques
enlameados perto do Cine México e a rua de bondes lúgubre nomeada
em homenagem ao lúgubre general Obregon na noite chuvosa, com rosas
no cabelos de sua mãe) – A Orizaba Street tem uma fonte e um lago
magníficos em um parque verdejante. A rua faz um círculo em torno
deles na forma residencial esplêndida de pedra e vidro e grades
antigas e volutas intrincadas de uma majestade adorável que quando
são olhadas pela lua se misturam com os mágicos jardins espanhóis
interiores de uma arquitetura (se é arquitetura o que deseja)
projetada para noites adoráveis em casa. Andaluza na intenção.
A
fonte não está jorrando água às duas horas da manhã, como se
devesse fazê-la, embaixo de chuva, e eu andando por ali, sentado em
um carrinho sobre trilhos, e passando sobre desvios cor-de-rosa nos
subterrâneos da terra como os tiras na ruazinha de putas a 35
quadras atrás e lá perto do centro –
É
a noite chuvosa lúgubre que me alcançou – a água escorre de meus
cabelos, meus sapatos estão encharcados – mas estou com meu
blusão, e ele está empapado pelo lado de fora – mas ele é
repelente de chuva – “Por que eu o comprei em Richmond Bank”
mais tarde conto extravagâncias sobre ele, em um sonho de criança
pequena. – Corro para casa, passo pela padaria onde, às duas da
manhã, eles já não fazem mais donuts da madrugada, tranças
tiradas de fornos e meladas de xarope e vendidas a você através de
uma janela por dois centavos cada, e eu costumava comprar cestos
delas em meus dias mais jovens – agora está fechada, a noite
chuvosa da Cidade do México do presente não contém rosas e nem
donuts quentinhos e frescos e ela é triste e fria. Atravesso a
última rua, reduzo o ritmo e relaxo, expirando e tropeçando em meus
músculos, agora entro, morte ou não morte, e durmo o sono doce dos
anjos brancos.
Mas
minha porta está trancada, a minha porta da rua, não tenho a chave
dela, todas as luzes estão apagadas, fico ali de pé pingando na
chuva sem lugar para me secar e durmo – Vejo uma luz na janela do
Velho Bull Gaines e vou até lá e olho surpreso para dentro, vejo só
sua cortina dourada, e me dou conta “Se não posso entrar na minha
própria casa então vou bater na janela de Bull e dormir na poltrona
dele”. O que faço. Bato e ele surge de dentro daquele
estabelecimento escuro de cerca de vinte pessoas em seu roupão de
banho e anda pelo pedacinho de chuva entre o prédio e a porta –
chega e abre a porta de ferro. Entro atrás dele – “Não posso ir
para minha casa” digo – Ele quer saber o que Tristessa disse
sobre amanhã, quando eles conseguirem mais drogas no Mercado negro,
o Mercado Vermelho, o Mercado índio – Então está tudo certo com
Old Bull e eu durmo e fico no quarto dele – “Até abrirem a porta
da rua às oito horas da manhã”, acrescento, e de repente resolvo
me enroscar no chão com uma coberta fina, que, assim que me cubro
parece um leito macio de lã e fico ali deitado divino, as pernas
muito cansadas e as roupas parcialmente molhadas (estou enrolado no
grande roupão atoalhado de Old Bull como um fantasma em um banho
turco) e toda a jornada na chuva está terminada, tudo o que tenho a
fazer é ficar ali deitado no chão sonhando. Eu me enrosco e começo
a dormir. No meio da noite, agora, com a lampadazinha amarela acesa,
e a chuva caindo com força lá fora, Old Bull Gaines está com as
persianas fechadas e fuma um cigarro atrás do outro e não consigo
respirar no quarto e ele está tossindo. “Hã-hã!” a tosse seca
de viciado, como um protesto, de nariz comprido, de uma beleza
estranha e cabelos grisalhos e magro e elegante no seu jeito
negligente de pedir uma dose (“estudante de almas e cidades” ele
chama a si mesmo) decapitado e bombardeado pela força da morfina –
Mas ainda assim com toda a coragem do mundo. Ele começa a comer um
doce. Fico ali acordando e percebendo que Old Bull está comendo doce
ruidosamente à noite Todos os lados de seu sonho – Incomodado,
olho ansiosamente ao redor e o vejo cumendu e mastigandu doci atrás
de doci, que coisa absurda de se fazer às quatro da manhã na cama –
Então, às quatro e meia, ele está de pé e ferve umas cápsulas de
morfina em uma colher – você o vê, depois que a droga é sugada
para dentro e empurrada para fora da seringa, com uma língua grande
e satisfeita lambendo para que ele consiga cuspir no fundo enegrecido
da colher e ele a esfrega com um pedaço de papel até limpar e
deixa-la prateada, usando, para polir de verdade a colher, um
pouquinho de cinza – E ele se recosta, começando a sentir, leva
dez minutos, um estrondo muscular – por cerca de uns vinte minutos
ele pode se sentir muito bem – se não, lá está ele remexendo em
sua gaveta e me acordando de novo, está procurando suas bolas –
“para ele conseguir dormir”.
Para
eu conseguir dormir. Mas não. Imediatamente ele quer outra dose de
alguma coisa, ele levanta e abre sua gaveta e tira um vidro de
pílulas de codeína e conta dez delas e as toma, empurradas com um
gole de café frio de sua xícara velha que está em cima da cadeira
ao lado da cama – e ele resiste à noite, com a luz acesa, e acende
mais cigarros – Em algum momento perto do amanhecer ele pega no
sono Eu me levanto após algumas reflexões às 9h ou 8h ou 7h e logo
visto minhas roupas molhadas para correr lá para cima para minha
cama quente e roupas secas – Old Bull está dormindo, ele
finalmente conseguiu, Nirvana, está roncando e está apagado, odeio
acordá-lo mas ele terá de se trancar por dentro, com a tranca e a
fechadura – está nublado lá fora, a chuva finalmente parou depois
de uma pancada mais pesada ao amanhecer. 40.000 famílias ficaram
desabrigadas com a enchente na parte noroeste da cidade do México
por causa daquela tempestade. Old Bull, longe das enchentes e
tempestades com suas agulhas e seus pós ao lado da cama e algodões
e seringas e toda a parafernália – “Quando você tem morfina,
você não precisa de mais nada, meu caro”, ele me diz durante o
dia, todo penteado e doidão, sentado em sua poltrona com alguns
papéis, o retrato do contentamento saudável – “Eu a chamo de
Madame Papoula. Quando você tem ópio, você tem tudo do que
precisa. – Todo aquele O delicioso corre por suas veias e você tem
vontade de cantar Aleluia!” E ele ri. “Se eu tiver que escolher
entre a Grace Kelly e a morfina, fico com a morfina.”
‘‘A
Ava Gardner também?”
‘‘A
Ava Gvavna e todas as gostosas em todos os países até agora – se
eu puder ter minha M da manhã e minha M da tarde e minha M da noite
antes de ir para a cama, não preciso nem saber que horas são no
Relógio da Prefeitura...” Ele me conta tudo isso e ainda mais,
balançando a cabeça com vigor e sinceridade. Seu queixo estremece
de emoção. Porque, pelamordedeus, se eu não tivesse droga eu ia me
entediar até a morte, ia morrer de tédio”, reclama ele, quase
chorando – “Leio Rimbaud e Verlaine, sei do que estou falando –
A droga é a única coisa que quero – Você nunca sentiu a dor de
sua falta, não sabe como é – Cara, quando você acorda de manhã
passando mal e toma uma boa dose, cara, isso é gostoso. Posso ver a
mim e a Tristessa acordando em nosso louco leito nupcial de
cobertores e cães e gatos e canários e manchas de porra no lençol
e pelados de corpos colados (sob os olhos gentis da Pomba) ela me
aplica ou eu me aplico em uma grande dose de veneno colorido direto
na carne de seu braço e para dentro de seu sistema que
instantaneamente proclama ser seu na solução você sente a fraqueza
cair sobre o seu corpo, se sente doente – mas nunca senti a dor da
falta da droga, não conheço o horror dessa doença – Uma história
que Old Bull poderia contar muito melhor do que eu –
[...]
Jack Kerouac, in Tristessa
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