quarta-feira, 6 de março de 2024

Tristessa | Parte Um

 


Trêmulo e casto

[…]

Chego na maravilhosa Orizaba Street (depois de cruzar grandes parques enlameados perto do Cine México e a rua de bondes lúgubre nomeada em homenagem ao lúgubre general Obregon na noite chuvosa, com rosas no cabelos de sua mãe) – A Orizaba Street tem uma fonte e um lago magníficos em um parque verdejante. A rua faz um círculo em torno deles na forma residencial esplêndida de pedra e vidro e grades antigas e volutas intrincadas de uma majestade adorável que quando são olhadas pela lua se misturam com os mágicos jardins espanhóis interiores de uma arquitetura (se é arquitetura o que deseja) projetada para noites adoráveis em casa. Andaluza na intenção.
A fonte não está jorrando água às duas horas da manhã, como se devesse fazê-la, embaixo de chuva, e eu andando por ali, sentado em um carrinho sobre trilhos, e passando sobre desvios cor-de-rosa nos subterrâneos da terra como os tiras na ruazinha de putas a 35 quadras atrás e lá perto do centro –
É a noite chuvosa lúgubre que me alcançou – a água escorre de meus cabelos, meus sapatos estão encharcados – mas estou com meu blusão, e ele está empapado pelo lado de fora – mas ele é repelente de chuva – “Por que eu o comprei em Richmond Bank” mais tarde conto extravagâncias sobre ele, em um sonho de criança pequena. – Corro para casa, passo pela padaria onde, às duas da manhã, eles já não fazem mais donuts da madrugada, tranças tiradas de fornos e meladas de xarope e vendidas a você através de uma janela por dois centavos cada, e eu costumava comprar cestos delas em meus dias mais jovens – agora está fechada, a noite chuvosa da Cidade do México do presente não contém rosas e nem donuts quentinhos e frescos e ela é triste e fria. Atravesso a última rua, reduzo o ritmo e relaxo, expirando e tropeçando em meus músculos, agora entro, morte ou não morte, e durmo o sono doce dos anjos brancos.
Mas minha porta está trancada, a minha porta da rua, não tenho a chave dela, todas as luzes estão apagadas, fico ali de pé pingando na chuva sem lugar para me secar e durmo – Vejo uma luz na janela do Velho Bull Gaines e vou até lá e olho surpreso para dentro, vejo só sua cortina dourada, e me dou conta “Se não posso entrar na minha própria casa então vou bater na janela de Bull e dormir na poltrona dele”. O que faço. Bato e ele surge de dentro daquele estabelecimento escuro de cerca de vinte pessoas em seu roupão de banho e anda pelo pedacinho de chuva entre o prédio e a porta – chega e abre a porta de ferro. Entro atrás dele – “Não posso ir para minha casa” digo – Ele quer saber o que Tristessa disse sobre amanhã, quando eles conseguirem mais drogas no Mercado negro, o Mercado Vermelho, o Mercado índio – Então está tudo certo com Old Bull e eu durmo e fico no quarto dele – “Até abrirem a porta da rua às oito horas da manhã”, acrescento, e de repente resolvo me enroscar no chão com uma coberta fina, que, assim que me cubro parece um leito macio de lã e fico ali deitado divino, as pernas muito cansadas e as roupas parcialmente molhadas (estou enrolado no grande roupão atoalhado de Old Bull como um fantasma em um banho turco) e toda a jornada na chuva está terminada, tudo o que tenho a fazer é ficar ali deitado no chão sonhando. Eu me enrosco e começo a dormir. No meio da noite, agora, com a lampadazinha amarela acesa, e a chuva caindo com força lá fora, Old Bull Gaines está com as persianas fechadas e fuma um cigarro atrás do outro e não consigo respirar no quarto e ele está tossindo. “Hã-hã!” a tosse seca de viciado, como um protesto, de nariz comprido, de uma beleza estranha e cabelos grisalhos e magro e elegante no seu jeito negligente de pedir uma dose (“estudante de almas e cidades” ele chama a si mesmo) decapitado e bombardeado pela força da morfina – Mas ainda assim com toda a coragem do mundo. Ele começa a comer um doce. Fico ali acordando e percebendo que Old Bull está comendo doce ruidosamente à noite Todos os lados de seu sonho – Incomodado, olho ansiosamente ao redor e o vejo cumendu e mastigandu doci atrás de doci, que coisa absurda de se fazer às quatro da manhã na cama – Então, às quatro e meia, ele está de pé e ferve umas cápsulas de morfina em uma colher – você o vê, depois que a droga é sugada para dentro e empurrada para fora da seringa, com uma língua grande e satisfeita lambendo para que ele consiga cuspir no fundo enegrecido da colher e ele a esfrega com um pedaço de papel até limpar e deixa-la prateada, usando, para polir de verdade a colher, um pouquinho de cinza – E ele se recosta, começando a sentir, leva dez minutos, um estrondo muscular – por cerca de uns vinte minutos ele pode se sentir muito bem – se não, lá está ele remexendo em sua gaveta e me acordando de novo, está procurando suas bolas – “para ele conseguir dormir”.
Para eu conseguir dormir. Mas não. Imediatamente ele quer outra dose de alguma coisa, ele levanta e abre sua gaveta e tira um vidro de pílulas de codeína e conta dez delas e as toma, empurradas com um gole de café frio de sua xícara velha que está em cima da cadeira ao lado da cama – e ele resiste à noite, com a luz acesa, e acende mais cigarros – Em algum momento perto do amanhecer ele pega no sono Eu me levanto após algumas reflexões às 9h ou 8h ou 7h e logo visto minhas roupas molhadas para correr lá para cima para minha cama quente e roupas secas – Old Bull está dormindo, ele finalmente conseguiu, Nirvana, está roncando e está apagado, odeio acordá-lo mas ele terá de se trancar por dentro, com a tranca e a fechadura – está nublado lá fora, a chuva finalmente parou depois de uma pancada mais pesada ao amanhecer. 40.000 famílias ficaram desabrigadas com a enchente na parte noroeste da cidade do México por causa daquela tempestade. Old Bull, longe das enchentes e tempestades com suas agulhas e seus pós ao lado da cama e algodões e seringas e toda a parafernália – “Quando você tem morfina, você não precisa de mais nada, meu caro”, ele me diz durante o dia, todo penteado e doidão, sentado em sua poltrona com alguns papéis, o retrato do contentamento saudável – “Eu a chamo de Madame Papoula. Quando você tem ópio, você tem tudo do que precisa. – Todo aquele O delicioso corre por suas veias e você tem vontade de cantar Aleluia!” E ele ri. “Se eu tiver que escolher entre a Grace Kelly e a morfina, fico com a morfina.”
‘‘A Ava Gardner também?”
‘‘A Ava Gvavna e todas as gostosas em todos os países até agora – se eu puder ter minha M da manhã e minha M da tarde e minha M da noite antes de ir para a cama, não preciso nem saber que horas são no Relógio da Prefeitura...” Ele me conta tudo isso e ainda mais, balançando a cabeça com vigor e sinceridade. Seu queixo estremece de emoção. Porque, pelamordedeus, se eu não tivesse droga eu ia me entediar até a morte, ia morrer de tédio”, reclama ele, quase chorando – “Leio Rimbaud e Verlaine, sei do que estou falando – A droga é a única coisa que quero – Você nunca sentiu a dor de sua falta, não sabe como é – Cara, quando você acorda de manhã passando mal e toma uma boa dose, cara, isso é gostoso. Posso ver a mim e a Tristessa acordando em nosso louco leito nupcial de cobertores e cães e gatos e canários e manchas de porra no lençol e pelados de corpos colados (sob os olhos gentis da Pomba) ela me aplica ou eu me aplico em uma grande dose de veneno colorido direto na carne de seu braço e para dentro de seu sistema que instantaneamente proclama ser seu na solução você sente a fraqueza cair sobre o seu corpo, se sente doente – mas nunca senti a dor da falta da droga, não conheço o horror dessa doença – Uma história que Old Bull poderia contar muito melhor do que eu –
[...]

Jack Kerouac, in Tristessa

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