quarta-feira, 13 de março de 2024

O assassino nem sempre foi o assassino

 

Sim, Clay saiu e não voltou, mas quem era o homem a que ele se dirigia naquela tarde agonizante? Quem era ele de verdade, de onde viera e quais teriam sido as decisões e as indecisões que fizeram dele o homem que era e que não era? Se imaginarmos que o passado de Clay avança junto com a maré, podemos dizer que o Assassino embarcou nela, partindo de uma terra firme, distante e seca, e que jamais foi um bom nadador.

Talvez seja melhor resumir assim:

No presente, havia um garoto caminhando em direção àquilo que, até então, não passava de uma incrível ponte imaginária.

No passado, houve outro garoto que cruzou outro caminho, muito mais longo e demorado, mas que também terminava ali, em meio às árvores, com esse garoto já adulto.

Às vezes preciso me esforçar para lembrar.

O Assassino nem sempre foi o Assassino.

 

***

 

Assim como Penélope, ele também veio de longe, mas de um lugar neste lugar, onde as ruas eram largas e quentes, e a terra, amarelada e seca. Uma cidade cercada por eucaliptos e por uma vegetação rasteira selvagem, e as pessoas ali viviam cabisbaixas, encurvadas, em um estado permanente de sudorese.

De cada coisa naquele lugar, havia apenas um exemplar:

Um ensino fundamental, um ensino médio.

Um rio, um médico.

Um restaurante chinês, um supermercado.

Quatro bares.

Na parte mais distante da cidade, uma igreja perfurava o céu, e as pessoas fervilhavam lá dentro: homens de terno, mulheres de vestidos floridos, crianças de camisa, bermuda e botões, todos doidos para jogar os sapatos longe.

Quanto ao Assassino, na infância, queria ser datilógrafo feito a mãe. Ela trabalhava para o único médico da cidade e passava os dias no consultório, com o velho tec-tec-tec das teclas de sua velha Remington cinza-chumbo. Às vezes ela levava a máquina para casa, para escrever cartas, e pedia ao filho que a carregasse.

— Vem cá, deixa eu ver esse muque! — dizia ela. — Pode me ajudar com a velha Tec-tec?

Sorridente, o menino carregava a máquina.

Os óculos eram vermelho-secretária.

O corpo atrás da escrivaninha era rechonchudo.

Falava de modo afetado e andava sempre com o colarinho engomado. Ao redor dela, os pacientes aguardavam com suor e chapéus, com suor e estampas floridas, com suor e crianças fungando; aguardavam com o suor no colo. Ficavam ouvindo Adelle Dunbar encurralar a máquina de escrever num canto e esmurrar as teclas sem piedade. Paciente por paciente, o velho dr. Weinrauch surgia, como o fazendeiro com o forcado na pintura American Gothic, sempre recebendo todos com um grande sorriso.

— Adelle, quem é o próximo a entrar na faca?

Por força do hábito, ela olhava a prancheta.

— É a sra. Elder.

E quem quer que fosse o paciente — uma mulher manca com problemas de tireoide, um velho beberrão com o fígado detonado ou uma criancinha com brotoeja e joelhos ralados —, todos se levantavam e se encaminhavam ao consultório suando em bicas, faziam suas queixas... e sentado entre todos eles, no chão, ficava o filhinho da secretária. No carpete puído, ele construía torres e devorava trilhões de revistas em quadrinhos explosivas, cheias de mistérios e caos. Ele ignorava os olhares intimidadores de cada garoto sardento da escola que adorava arrumar briga e controlava o voo de suas espaçonaves pela sala de espera: um gigantesco sistema solar em miniatura em uma gigantesca cidade em miniatura.

 

***

 

A cidade se chamava Featherton — e, apesar de trazer no nome a palavra “pena” em inglês, não era nem mais nem menos passarinheira do que qualquer outra. É claro que, como Michael morava na rua Miller, perto do rio, seu quarto vivia inundado — ao menos nas épocas chuvosas — pelos sons dos pássaros, os gritos e as risadas deles. Ao meio-dia, os corvos almoçavam carcaças de animais na estrada, volta e meia fugindo dos caminhões que passavam. Já no fim da tarde, as cacatuas guinchavam — olhos pretos, crista amarela embranquecida pelo céu ofuscante.

Com ou sem pássaros, Featherton era famosa por outra coisa.

Era um lugar de fazendas e gado.

De minas com túneis profundos.

Mais do que qualquer outra coisa, contudo, era um lugar de fogo.

Uma cidade onde as sirenes uivavam e os homens dos mais variados feitios, e também algumas mulheres, vestiam macacões laranja e adentravam as chamas. Na maioria das vezes retornavam, deixando para trás a paisagem destruída e esturricada, mas de vez em quando o fogo estendia as garras um pouco mais além e, das trinta pessoas que entravam, voltavam apenas vinte e oito ou vinte e nove, trôpegas, lúgubres, silenciosas. Era então que meninos e meninas magricelas de rostos cansados ouviam: “Sinto muito, filho”, “Sinto muito, querida”.

Antes de ser o Assassino, ele era Michael Dunbar.

Ele só tinha a mãe, e a mãe só tinha ele.

 

***

 

Como você já deve ter percebido, sob vários aspectos, ele era quase a outra metade de Penélope; eram idênticos e opostos, uma simetria projetada ou predestinada. Ela vinha de um lugar longínquo e úmido; ele, de um lugar remoto e seco. Ele era a única família de uma mulher solitária; ela era a filha solitária de um homem sem família. E, por fim, como veremos em breve — e esta era a maior equivalência, o paralelo mais definitivo do destino —, enquanto ela praticava Bach, Mozart e Chopin, ele tinha a própria obsessão artística.

 

***

 

Era uma manhã de primavera, durante as férias. Michael, com uns oito anos, estava sentado na sala de espera; segundo o termômetro no batente da porta, fazia trinta e nove graus.

Ali perto, o sr. Franks cheirava a torrada.

O bigode ainda sujo de geleia.

Ao lado de Michael estava uma menina da escola chamada Abbey Hanley:

Tinha cabelo preto escorrido e braços poderosos.

O garoto havia acabado de consertar uma nave espacial.

O carteiro, sr. Harty, tentava sem sucesso abrir a porta, e Michael largou seu brinquedinho cinza aos pés da menina para ajudar o entregador aflito, que mais parecia um messias azarado parado ali, com aquela claridade infernal às costas.

— Ei, Mikey!

Por algum motivo, o jovem futuro-assassino odiava o apelido, mas mesmo assim se lançou até a porta e o deixou entrar. Virou o rosto bem a tempo de testemunhar Abbey Hanley levantando-se para sua consulta e pisoteando a espaçonave. Seus chinelos eram como um trator.

— Ah-bey! — A mãe riu, e então, um tanto constrangida: — Isso não foi legal!

O menino, assistindo ao infeliz incidente, fechou os olhos. Tinha apenas oito anos, mas entendia o significado de filha de uma puta e nem teve medo de pensar na expressão. Por outro lado, pensar aquilo não levava a nada, e ele também entendia o que aquilo significava. A menina abriu um sorriso, fez um pedido bem sem-vergonha de desculpas e saiu pisando forte para a sala do bom e velho Weinrauch.

A poucos passos, o carteiro deu de ombros. A camisa dele estava com um botão faltando no ponto onde sua pança se projetava para a frente com grande determinação.

— Tão novinho e já está tendo problema com as mulheres, é?

Nossa, muito engraçado.

Michael sorriu, respondendo, baixinho:

— Não, acho que ela não fez de propósito.

Aquela filha de uma puta.

Harty ainda insistiu:

— Ah, fez, sim.

Franks, o homem da torrada com geleia, concordou com um risinho tossido, e Michael tentou mudar de assunto.

— O que é que tem aí nessa caixa?

— Eu só faço a entrega, garoto. Vou botar aqui e você mesmo pode fazer as honras. É pra sua mãe e está com o endereço da sua casa, mas achei melhor trazer pra cá. Mete bronca.

 

***

 

Quando a porta se fechou, Michael olhou com mais atenção.

Circundou a caixa, ressabiado, pois havia acabado de compreender o que era — já tinha visto outras parecidas.

No primeiro ano, fora entregue em mãos, acompanhada de condolências e doces murchos.

No segundo, largaram na varanda da casa.

Naquele ano, só meteram no correio e pronto.

 

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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