Segunda-feira,
naturalmente, abandonarei de vez o cigarro. Envergonho-me em revelar
que deve ser a quinquagésima segunda-feira de uma série em que
sairei de casa com o peito erguido e o olhar confiante dos bravos e
fortes de vontade — eis que fumo em jejum a partir de umas cinco da
manhã e já eram quase seis sem eu ter tocado em cigarro — e,
depois de tomar um cafezinho no armazém de Inocêncio (Inocêncio
não me cobra o café; mirem-se nesse exemplo, senhores proprietários
de bares e restaurantes, notadamente os primeiros), começarei a
vagar, o olhar agora desvairado e aflito, mastigando um graveto e
parecendo personagem de filme tipo tornei-me um ébrio. Mas
resistirei, desta vez vamos. Resolvo que ir trabalhar logo é a
solução. Chego ao escritório, ligo o processador, o miserável do
monitor resolve ficar piscando como letreiro de néon outra vez. Vou
ter que abri-lo e futucar um negócio que tem dentro dele, que não
sei o que é, mas, quando recebe uns piparotes rigorosos, faz
retornar o engraçadinho ao normal. Mas ali pode dar um choque de uns
10 mil volts, mesmo com ele desligado, e aí o risco não
justificaria um cigarrinho para aplacar o natural nervosismo?
Não,
não, difícil conceber desculpa mais esmolambada (os piparotes são
dados com uma canetona de plástico e eu vou de sola de borracha, sem
tocar em nada mais). Até o Sérgio Cabral, que vai entrar no
Guinness como deixador de fumar, ficaria envergonhado dessa.
Não senhor, nada disso, o conserto vai sem anestesia mesmo.
Milagrosamente, dá certo outra vez, ele fica até parecendo monitor
de cinema americano, todo reluzente. Aí vou trabalhar.
“Quinquagésimo” tem trema? Claro que tem, mas trema, como quase
tudo mais, é meu pons asinorum e aí manda a neurose que eu
pegue o Aurélio aqui atrás. Desde o tempo em que eu trabalhava em
redação, isso significava uma pequena rotina coreográfica, cujo
primeiro passo era acender um cigarrinho. Passo a mão
automaticamente no lugar onde até ontem deixava a carteira de
cigarros, não encontro nada, perco a vontade de abrir o dicionário.
Mas
vamos em frente e de repente emperra tudo na cabeça e, sem me
lembrar como, já saí da mesa de trabalho e estou no jardinzinho ao
lado, com o mesmo ar que assumira no mercado. Que diabo estava
escrevendo, não dava nem para entender direito, quanto mais
prosseguir. Bartola, que está trabalhando lá dentro no atendimento,
guarda uma carteirinha de cigarros na gaveta. Um só, um só, para
quem fumava duas, três carteiras por dia, um cigarrinho só não tem
a mínima importância. Mas é chato, já anunciei solenemente a
Bartola que nunca mais tocaria nessa coisa imunda, vou me
desmoralizar outra vez. Dou uma espiada, Bartola não está na mesa.
Não! Furto não, não descerei a esse ponto! Repreendo-me com
energia, embora lembre que até bagana eu já peguei, só faltando
rastejar pela sarjeta. Nada disso, caráter é caráter!
Claro
que caráter é caráter. Por isso mesmo eu, que não tenho nenhum,
volto para defronte do processador outra vez e miro imbecilmente
aquele texto besta, pensando em cigarro. Quase não consigo ler. Bato
umas duas bobagens, não sei mais o que dizer e, cinco minutos mais
tarde, com a cara mais cínica que posso fazer, estou junto a
Bartola, pedindo um cigarrinho, um cigarrinho só. Algum tempo depois
acabo o trabalho, à frente de um cinzeiro cheio, devendo uma
carteira de cigarros a Bartola e com vontade de telefonar para o
Cabral e pedir uma palavra de alento, nos intervalos da tosse dele.
(Partilhamos do mesmo quarto durante a Copa do Mundo e de vez em
quando, no meio da noite, eu acordava com a tossezinha dele, pensando
que era un otro temblor de tierra, se bem que às vezes não
era bem tosse, o Cabral é um homem de metabolismo muito vigoroso.)
Mas
desta vez vai ser sério. Lembro o exemplo edificante do festejado
cineasta e meu particular amigo Arnaldo Jabor, que acordou um dia
assim meio retado, resolveu que não fumava mais e ficou com a
carteira defronte só para poder curtir com a cara dela e nunca mais
fumou e hoje está cada dia mais belo, é um atleta em todos os
campos, os olhos ficaram azul-celeste e ele acertou uma quadra na
loto. E, apesar de com essa conversa meio furada de que a vida começa
aos 40, eu só estar nos meus verdes seis aninhos, lembrei também,
não sei por que associação, da Grécia antiga.
Se
eu fosse grego antigo, que bela ruína. Isto se não tivesse morrido
de raiz de dente inflamada, difteria, saturnismo, sarampo,
gastrenterite etc. etc. etc. Míope como uma toupeira, astigmata e
com vista cansada, seria provavelmente conhecido como o Ceguinho da
Ilha, tendo que ler através dos olhos de um escravo (isso também se
eu desse sorte de não haver nascido escravo) e de noite não poderia
nem sair, mesmo com lua. Sem um dente na boca ou então com todos aos
cacos, teria deficiências nutricionais por não poder comer direito,
além de não poder sentar ou talvez andar por causa do cisto que
tirei atrás, em operação que me deixou sete dias no hospital. Não
é à toa que dizem que, quando Sócrates fez 40 anos, ficou com
vontade de morrer.
Sim,
antibióticos, dentistas, cirurgiões, óculos, vacinas, a barra
melhorou. Mas, não sei por quê, fiquei achando que eu era aquele
grego antigo, apenas recauchutado. Até algum tempo atrás, eu, como
todo jovem, era imortal, quem morria eram os outros. Agora que sou
coroa, já passei até a fase do enfarte, durante a qual sofria uns
quatro ou cinco por dia. Não, não, ainda fico cometendo esta
estupidez, enfiando como um celerado fumaça venenosa e quente por
uma traquéia que a esta altura deve parecer, porque é o que sinto,
uma espécie de lamaçal nicotinoso ulcerado? Quer dizer, quebram o
galho do grego antigo por fora, e eu trato de ficar igualzinho a ele
por dentro, com admirável tenacidade.
Não
senhor, esta segunda-feira é à vera. Tive até a felicidade de
receber estimulante amparo médico, da parte do dr. Alcy, que
encontrei no Largo da Quitanda. Ele não fuma, e quando soube da
minha decisão e do estado de minhas vias respiratórias, fez uma
pequena palestra científica.
— Melhor
isso do que o que vai acontecer com você daqui a uns dois ou três
anos, se não deixar — concluiu ele.
— O
que é que vai acontecer comigo daqui a dois ou três anos, se eu não
deixar?
— Morrer
— disse ele, batendo afavelmente no meu ombro.
Quando
cheguei em casa, chamei a mulher.
— Mulher,
segunda-feira não fumo mais! Eu posso até jogar este isqueiro fora,
porque hoje é domingo, só falta um dia e o gesto já tem lá seu
valor simbólico.
Dramaticamente,
lancei o isqueiro contra a mangueira, mas ela correu atrás dele,
pegou-o e levou-o lá para dentro, colocando-o numa gaveta.
— Não
se preocupe, querido — disse ela. — Terça-feira, quando você
procurar, já sabe onde está.
João Ubaldo Ribeiro, in O Rei da Noite
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