quinta-feira, 7 de março de 2024

Dos poetas


Desde que conheço melhor o corpo” — disse Zaratustra a um de seus discípulos —, “o espírito é, para mim, apenas espírito por assim dizer; e todo o ‘intransitório’ — é também apenas símile.”
Assim já te ouvi falar uma vez”, respondeu o discípulo; e então acrescentaste: ‘mas os poetas mentem demais’. Por que disseste que os poetas mentem demais?”
Por quê?”, disse Zaratustra. “Perguntas por quê? Não sou daqueles a quem se pode perguntar por seu porquê.
Então minha vivência é de ontem? Faz muito tempo que vivi as razões de minhas opiniões.
Não deveria eu ser um tonel de memória, se quisesse ter comigo também minhas razões?
Já é muito, para mim, conservar minhas opiniões; e mais de um pássaro vai-se embora.
E vez por outra acho também alguma ave que chegou a meu pombal e não conheço, e ela treme quando lhe pouso a mão.
Mas que te disse uma vez Zaratustra? Que os poetas mentem demais? — Mas também Zaratustra é um poeta.
Acreditas que ele aqui falou a verdade? Por que o acreditas?”
O discípulo respondeu: “Eu acredito em Zaratustra”. Mas Zaratustra balançou a cabeça e sorriu.
A fé não me torna bem-aventurado, disse ele, menos ainda a fé em mim.
Mas, dado que alguém tenha dito, com toda a seriedade, que os poetas mentem demais: ele tem razão — nós mentimos demais.
Nós também sabemos muito pouco e somos maus aprendizes: então temos de mentir.
E qual de nós, poetas, já não adulterou seu vinho? Muita mistura venenosa aconteceu em nossas adegas, muita coisa indescritível foi feita ali.
E, porque sabemos pouco, agradam-nos muito os pobres de espírito, em especial quando são mulheres jovens!
E desejamos até as coisas que as velhas mulheres contam umas às outras ao anoitecer. É o que nós mesmos chamamos o eterno-feminino em nós.
E, como se houvesse um especial acesso secreto ao saber, que fosse bloqueado para aqueles que aprendem algo: assim cremos nós no povo e em sua “sabedoria”.
Mas isto creem todos os poetas: que quem aguça os ouvidos, deitado na relva ou em declives solitários, aprende algo das coisas que estão entre o céu e a terra.
E, se lhes vêm ternas emoções, os poetas sempre acham que a própria natureza por eles se apaixonou:
E que ela chega de mansinho até seus ouvidos, para lhes sussurrar segredos e lisonjas de amor: de que eles se gabam e se pavoneiam diante de todos os mortais!
Ah, existem tantas coisas entre o céu e a terra com que somente os poetas sonharam!
E sobretudo acima do céu: pois todos os deuses são símiles de poeta, artimanhas de poeta!
Em verdade, sempre somos levados para cima — para o reino das nuvens: nelas botamos nossos coloridos bonecos e os chamamos deuses e super-homens. —
Pois eles são leves o bastante para essas cadeiras! — todos esses deuses e super-homens.
Ah, como estou cansado de todo o insuficiente, que deve a todo custo ser evento! Como estou cansado dos poetas!
Quando Zaratustra assim falou, seu discípulo irritou-se, mas guardou silêncio. Também Zaratustra silenciou; e seus olhos se tinham voltado para dentro, como se olhassem na distância. Por fim, ele suspirou e respirou fundo.
Eu sou de hoje e outrora, disse então; mas algo em mim é de amanhã e depois de amanhã e algum dia.
Cansei-me dos poetas, dos antigos e dos novos: são todos superficiais para mim, e mares pouco profundos.
Eles não pensaram bastante a fundo: por isso seu sentimento não desceu até os motivos no fundo.
Um tanto de volúpia e um tanto de tédio: esta foi até agora sua melhor reflexão.
Todos os seus toques de harpas são respirar e deslizar de fantasmas para mim; que souberam eles até hoje do fervor dos sons? —
Tampouco são limpos o bastante para mim: todos eles turvam suas águas, para que pareçam profundas.
E com isso gostam de passar por conciliadores: mas para mim continuam sendo mediadores e intromissores, e meio-isso, meio-aquilo, e gente pouco limpa! —
Ah, lancei minha rede em seus mares e pretendia pescar bons peixes; mas sempre tirei fora a cabeça de um velho deus.
Assim, o mar deu ao faminto uma pedra. E talvez eles próprios venham do mar.
Em dúvida, neles encontramos pérolas: mais ainda se assemelham eles próprios a duros crustáceos. E, em vez de alma, neles achei frequentemente mucosa salgada.
E do mar também aprenderam a vaidade: não é o mar o pavão entre os pavões?
Mesmo ante o mais feio dos búfalos ele abre sua cauda, jamais se cansa do seu rendado leque de prata e seda.
O búfalo olha, carrancudo, próximo da areia em sua alma, ainda mais próximo da selva, mais próximo que tudo do pântano, porém.
Que são, para ele, beleza, mar e adorno de pavão! Este símile eu falo para os poetas.
Em verdade, seu próprio espírito é o pavão entre os pavões e um mar de vaidade!
Espectadores quer o espírito do poeta: ainda que sejam búfalos! —
Mas desse espírito me cansei: e vejo chegar o dia em que ele cansará de si próprio.
Transformados já vi os poetas, e com o olhar voltado para si mesmos.
Penitentes do espírito vi chegar: formaram-se a partir deles.

Assim falou Zaratustra.

Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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