segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Hollywood | 34



O filme estava sendo rodado em três locações. Diferentes quartos, diferentes ruas e becos, diferentes bares que se intercambiavam.
Uma cena noturna envolvia um roubo de milho de um terreno baldio e uma correria com a polícia.
O milho fora plantado e estava pronto para o roubo.
O uso da locação custara ao orçamento cinco mil dólares. O terreno baldio pertencia agora a um Centro de Reabilitação de Alcoólatras. Pinchot procurara por toda parte uma locação mais barata, mas finalmente tivera de conformar-se com aquela, que na verdade era o mesmo terreno baldio de onde minha dona roubara o milho havia mais de três décadas. O novo milho fora plantado no mesmo lugar do antigo. Outras coisas não eram tão exatas. O apartamento próximo onde a dona morava, e para o qual eu me mudei, fora transformado num Asilo de Velhos.
O grande prédio junto ao terreno baldio, agora usado como Centro de Reabilitação, naquele tempo era um salão de baile muito popular. Vivia sempre cheio, especialmente nas noites de sábado. Todo o andar de baixo era um salão de baile, gigantesco, com grandes globos de luz girando lentamente no teto, enquanto a orquestra ao vivo tocava música de dança até de madrugada, e muitos carros extravagantes, alguns com choferes, esperavam do lado de fora.
Nós odiávamos aquele salão de baile e aquelas pessoas, enquanto morríamos de fome e brigávamos uns com os outros e a polícia e o senhorio, quando éramos levados à cadeia de Lincoln Heights e depois saíamos sob fiança.
Agora o prédio estava cheio de bêbados reformados, que liam a Bíblia, fumavam cigarros demais e jogavam bingo na sala que era antes o grande salão de baile.
O terreno baldio era a única coisa que não mudara. Em todas aquelas décadas, ninguém construíra nada de qualquer espécie ali.
Francine e Jack já haviam feito alguns ensaios e desaparecido dentro de seus reboques, onde esperavam a ação. Eu entornava uma cerveja quando senti alguém me tocar o ombro. Era um cara muito simpático, de barba bem aparada, bonitos olhos, bonito sorriso. Eu já o vira por ali, mas não o conhecia, não sabia qual era sua posição e não perguntei. Na verdade, achava que sua verdadeira função era espionar para a Firepower.
Por favor – ele disse –, não se pode beber aqui no set.
Por que não?
No contrato que assinamos com o pessoal daqui consta que podemos filmar nas instalações, mas não se permite nenhuma bebida.
E água?
Você sabe o que eu quero dizer.
É, aqueles ex-bêbados não podem ver ninguém tomar um trago.
Não acreditam em bebida.
Mas todo o filme é sobre bebida.
Tivemos muita dificuldade pra conseguir essas instalações. Por favor, não estrague tudo.
Tudo bem, chapa. Mas faço isso por Pinchot, não por você...
Ele se afastou com sua prancheta, rebolando o pequeno rabo que não recebera todos os chutes que merecia.
Dei as costas ao prédio, tomei outra golada e guardei a garrafa no bolso do paletó.
Eles podem ver você – disse Sarah.
Você quer dizer que todos aqueles ex-bêbados estão pendurados nas janelas me olhando beber esta cerveja?
Não, mas tem gente por aí.
Tudo bem, eu me escondo quando quiser dar uma golada em minha cerveja.
Sarah estava certa. Eu não tinha direito de ser caprichoso. O ator principal ganhava 750 vezes mais que eu.
Então Jon Pinchot nos achou.
Oi, Sarah... Oi, Hank...
Disse-me que Friedman mandara mesmo os cheques, que o meu fora feito diretamente para mim e estava no correio. Nosso plano dera certo.
Preciso ir – disse Jon. – Vamos rodar a cena da plantação de milho. Veja e me diga o que acha...
Finalmente entraram em ação, e Francine subiu o morro correndo até os pés de milho.
Quero um pouco de milho! – gritava.
Eu me lembrava de Jane subindo aquele mesmo morro, eu atrás carregando um grande saco de garrafas. Só que quando ela gritara “Eu quero um pouco de milho!” fora como se quisesse de volta o mundo todo, o mundo que de alguma forma perdera, ou o mundo que de algum modo a deixara de lado. O milho seria a sua vitória, sua recompensa, sua vingança, sua canção.
Mas quando Francine gritara “Eu quero um pouco de milho!” o grito soara petulante, tinha um tom de queixa na voz, e não era a voz desesperada do bêbado. Estava bem, estava bom, mas não estava exatamente correto.
E quando ela começou a arrancar as espigas, eu soube que não era a mesma coisa, que jamais poderia ser a mesma coisa. Francine era uma atriz. Jane fora uma bêbada louca. Correta e terminantemente louca. Mas ninguém espera perfeição de uma atuação. Uma boa imitação já serve.
Assim, Francine arrancava o milho, enfiava-o na bolsa, e Jack dizia:
Você está bêbada... Esse milho está verde...
Aí surgia o carro dos tiras, lampejando sua luz vermelha e o forte holofote sobre eles, e Francine e Jack corriam para a casa, como Jane e eu tínhamos feito, e já chegavam ao elevador quando os tiras gritaram pelo alto-falante:
PAREM OU NÓS ATIRAMOS!
Mas em vez de saltarem do carro e correrem atrás deles, aqueles tiras simplesmente ficaram lá sentados. A tomada acabara.
Sarah e eu levamos alguns minutos para encontrar Jon Pinchot.
Ele estava lá parado, calado.
Jon, cara, os tiras deviam saltar e perseguir os dois!
Eu sei. As portas do carro emperraram. Eles não conseguiram sair.
Quê?
Eu sei. É incrível. Vamos mandar consertar as portas do carro e filmar tudo de novo.
Sentimos muito – disse Sarah.
Jon estava deprimido. Geralmente ria quando as coisas saíam errado.
Volto a ver vocês depois de refilmarmos.
Nós saímos, atravessamos a rua. Eu detestava ver Jon abatido daquele jeito. Ele tinha raça. Algumas pessoas não gostavam dele porque parecia ter muita empáfia. Mas a maior parte era verdadeira. Nós todos bancávamos os valentes. Mas eu não gostava de vê-lo perder sua empáfia.
Francine, Jack e muitos dos outros voltaram aos seus reboques. Eu detestava as longas demoras entre tomadas. Os filmes custam muito dinheiro porque a maior parte do tempo ninguém faz nada além de esperar e esperar e esperar. Até que isso e aquilo fiquem prontos, e a iluminação esteja pronta, e a câmera, e o cabeleireiro tenha acabado de fazer xixi e o consultor tenha sido consultado, não acontece nada. Era uma punheta deliberada, um salário para isso, um salário para aquilo, e só um homem podia ligar a tomada na parede, e o técnico de som estava puto com o assistente de diretor, e aí os atores não estavam se sentindo bem porque é assim que os atores devem se sentir, e por aí vai. Tudo desperdício desperdício desperdício. Mesmo naquele filme de orçamento extremamente baixo, eu tinha vontade de berrar: “TUDO BEM, CORTA ESSA MERDA! NÃO TEM NADA AQUI QUE NÃO SE POSSA FAZER EM 10 MINUTOS, E VOCÊS ESTÃO HÁ HORAS ENROLANDO!”.
Mas não tinha raça para dizer isso. Era apenas um escritor. Uma despesa menor.
Aí aconteceu algo que me estufou o ego. Chegaram equipes de televisão da Itália e da Alemanha. Ambas queriam entrevistas comigo. As duas eram dirigidas por mulheres.
Ele nos prometeu primeiro – disse a italiana.
Mas você vai extrair todo o sumo dele – disse a alemã.
Espero – disse a italiana.
Sentei-me diante das luzes italianas. Estávamos em ação.
Que acha do cinema?
Filmes?
É.
Mantenho distância.
Que faz quando não está escrevendo?
Cavalos. Aposto neles.
Eles te ajudam a escrever?
Ajudam. Ajudam a esquecer a literatura.
Você está bêbado neste filme?
Estou.
Acha que beber é coragem?
Não, mas também nada mais é.
Que significa seu filme?
Nada.
Nada?
Nada. Talvez dar uma olhada no rabo da morte.
Talvez?
Talvez quer dizer que não tenho certeza.
Que vê você quando dá uma olhada no “rabo da morte”?
O mesmo que você.
Qual é sua filosofia de vida?
Pense o mínimo possível.
Mais alguma coisa?
Quando não conseguir pensar em mais nada pra fazer, seja bondoso.
Isso é bonito.
Bonito não é necessariamente bondoso.
Tudo bem, Sr. Chinaski. Que palavras tem para o povo italiano?
Não gritem tanto. E leiam Celine.
Com esta, as luzes se apagaram.
A entrevista alemã foi ainda menos interessante.
A dona queria o tempo todo saber o quanto eu bebia.
Ele bebe, mas não tanto quanto antes – disse-lhe Sarah.
Preciso de outro trago agora mesmo, senão não falo mais.
A bebida veio imediatamente. Vinha num grande copo de papel e a bebi de vez. Ah, era boa. De repente me pareceu idiotice alguém querer saber o que eu pensava. A melhor parte de um escritor está no papel. A outra é geralmente bobagem.
A dona alemã tinha razão. A dona italiana consumira todo o meu sumo.
Eu era agora um astro mimado. E estava preocupado com a filmagem do campo de milho.
Precisava falar com Jon, dizer a ele para deixar Francine mais bêbada, mais louca, com um pé no inferno, uma mão arrancando milho dos talos e a morte aproximando-se, os prédios vizinhos exibindo rostos de sonho, olhando aqui embaixo a tristeza da existência para todos nós: os ricos, os pobres, os belos e os feios, os talentosos e os inúteis.
Não gosta de cinema? – perguntou a alemã.
Não.
As luzes se apagaram. A entrevista acabara.
E a cena do campo de milho foi refeita. Talvez não exatamente como devia ser, mas quase.

Charles Bukowski, in Hollywood

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