domingo, 17 de dezembro de 2023

Prestes

Nenhum dirigente comunista da América teve uma vida tão trágica e portentosa quanto Luís Carlos Prestes. Herói militar e político do Brasil, sua verdade e sua legenda ultrapassaram há muito tempo as restrições ideológicas e ele se converteu em uma encarnação viva dos heróis antigos.
Por isso, quando em Isla Negra recebi um convite para visitar o Brasil e conhecer Prestes, aceitei imediatamente. Soube, além disso, que não havia outro convidado estrangeiro e isto me lisonjeou. Senti que de alguma maneira eu tomava parte em uma ressurreição.
Depois de mais de dez anos de prisão, Prestes tinha sido posto em liberdade. Estas longas prisões não são excepcionais no “mundo livre”. Meu companheiro, o poeta Nazim Hikmet, passou treze ou quatorze anos numa prisão da Turquia. Agora mesmo, quando escrevo estas lembranças, faz já doze anos que seis ou sete comunistas do Paraguai estão enterrados em vida, sem comunicação alguma com o mundo. A mulher de Prestes, alemã de origem, foi entregue pela ditadura brasileira à Gestapo. Os nazistas a acorrentaram no navio que a levava ao martírio. Deu à luz uma menina que hoje vive com o pai, resgatada dos dentes da Gestapo pela infatigável Dona Leocádia Prestes, mãe do líder. Após ter dado à luz no pátio de um cárcere, a mulher de Luís Carlos Prestes foi decapitada pelos nazistas. Todas essas vidas martirizadas fizeram com que Prestes jamais fosse esquecido durante seus longos anos de prisão.
Eu estava no México quando morreu sua mãe, D. Leocádia Prestes. Ela tinha percorrido o mundo pedindo a libertação de seu filho. O general Lázaro Cárdenas, ex-presidente da república mexicana, telegrafou ao ditador brasileiro pedindo para Prestes alguns dias de liberdade que lhe permitissem assistir ao enterro de sua mãe. O presidente Cárdenas, em sua mensagem, responsabilizava-se pelo regresso de Prestes à prisão. A resposta de Getúlio Vargas foi negativa. Compartilhei da indignação de todo o mundo e escrevi um poema em honra de D. Leocádia, em lembrança de seu filho ausente e execrando o tirano.
Li-o junto ao túmulo da nobre senhora que em vão bateu às portas do mundo para libertar seu filho. Meu poema começava sobriamente:

Señoora, hiciste grande, más grande a nuestra América.
Le diste un rio puro de colosales aguas,
le diste un árbol grande de infinitas raíces:
un hijo tuyo digno de su patria profunda.

[“Senhora, fizeste grande, muito maior nossa América.
Deste-lhe um rio puro de águas colossais,
deste-lhe uma grande árvore de raízes infinitas
um filho teu, digno de sua pátria profunda.”] (N. da T.)

Porém, à medida que o poema continuava, fazia-se mais violento contra o déspota brasileiro.
Continuei lendo em toda parte, tendo sido reproduzido em octossílabos e em cartões-postais que percorreram o continente.
Certa vez, de passagem pelo Panamá, incluí-o em um de meus recitais, logo depois de ter lido meus poemas de amor. A sala estava repleta e o calor do istmo me fazia transpirar. Começava eu a ler minhas imprecações contra o presidente Vargas quando senti minha garganta se ressecando. Detive-me e alonguei a mão para uma jarra que estava perto de mim. Nesse instante vi que uma pessoa vestida de branco se aproximava apressada da tribuna. Pensando tratar-se de um empregado subalterno da sala, estendi-lhe a jarra para que a enchesse de água. Mas o homem vestido de branco a rechaçou indignado e dirigindo-se à assistência gritou nervosamente: “Sou o embaixador do Brasil. Protesto porque Prestes é somente um delinquente comum...”
A estas palavras, o público o interrompeu com assobios estrondosos. Um jovem estudante de cor, largo como um armário, surgiu do meio da sala e, com as mãos perigosamente dirigidas à garganta do embaixador, abriu caminho até a tribuna. Corri para proteger o diplomata e por sorte pude conseguir que saísse do recinto sem maior dano para sua investidura.
Com tais antecedentes, minha viagem de Isla Negra até o Brasil, para tomar parte no regozijo popular, pareceu natural aos brasileiros. Fiquei surpreso quando vi a multidão que enchia o estádio do Pacaembu, em São Paulo. Dizem que tinha mais de cento e trinta mil pessoas. As cabeças se divisavam pequeníssimas dentro do vasto círculo. A meu lado Prestes, diminuto de estatura, pareceu-me um Lázaro recém-saído do túmulo, elegante e correto para a ocasião. Era seco e branco até a transparência, com essa brancura estranha dos prisioneiros. O olhar intenso, as grandes olheiras arroxeadas, as delicadíssimas feições, a grave dignidade, tudo recordava o longo sacrifício de sua vida. No entanto, falou com a serenidade de um general vitorioso.
Li um poema em sua homenagem que escrevi poucas horas antes. Jorge Amado trocou somente a palavra albañiles pela portuguesa pedreiros. Apesar de meus temores, o poema lido em espanhol foi compreendido pela multidão. A cada linha de minha leitura pausada estalava o aplauso dos brasileiros. Aqueles aplausos tiveram profunda ressonância em minha poesia. Um poeta que lê seus versos diante de cento e trinta mil pessoas nunca mais será o mesmo nem pode escrever da mesma maneira depois dessa experiência.

Finalmente me encontro frente a frente com o legendário Luís Carlos Prestes. Está me esperando na casa de uns amigos seus. Todas as peculiaridades de Prestes – a pequena estatura, a magreza, a brancura de papel transparente – adquirem uma precisão de miniatura. Também suas palavras e talvez seu pensamento parecem se ajustar a esta imagem exterior.
Dentro de sua reserva, é muito cordial comigo. Creio que me dispensa esse trato carinhoso que frequentemente recebemos nós, os poetas, uma condescendência entre terna e evasiva muito parecida à que adotam os adultos ao falar com as crianças.
Prestes me convidou para almoçar num dia da semana seguinte. Sucedeu-me então uma dessas catástrofes só atribuíveis ao destino ou à minha irresponsabilidade. Acontece que o idioma português, não obstante ter seu sábado e seu domingo, não assinala os outros dias da semana como lunes, martes, miércoles, etc., mas sim com as infernais denominações de segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, saltando a primeira feira para complemento. Eu me enredo inteiramente nessas feiras sem saber de que dia se trata.
Fui passar algumas horas na praia com uma bela amiga brasileira, lembrando a mim mesmo o tempo todo que no dia seguinte eu tinha um almoço marcado com Prestes. Na quarta-feira fiquei sabendo que Prestes me esperou na terça-feira inutilmente com a mesa posta enquanto eu passava as horas na praia de Ipanema. Procurou-me por toda parte sem que ninguém soubesse meu paradeiro. O ascético capitão tinha encomendado, em homenagem às minhas predileções, vinhos excelentes que eram difíceis de ser conseguidos no Brasil. Íamos almoçar só nós dois.
Cada vez que me lembro desta história, quisera morrer de vergonha. Pude aprender tudo em minha vida menos os nomes dos dias da semana em português.

Pablo Neruda, in Confesso que Vivi

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