quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Parte Um | Trêmulo e casto


[…]
Meu cigarro se apaga enquanto fumo e levo-o até o ícone para acendê-lo na chama da vela, que está dentro de um copo – Ouço Tristessa dizer algo que interpreto como “Droga, esse idiota está usando nosso altar como isqueiro” – para mim nada há de estranho ou incomum nisso, só quero fogo – mas percebendo a observação, ou mesmo ainda acreditando na observação mesmo sem saber o que foi, eu engulo em seco e me detenho e em vez disso arranjo fogo com El Indio, que depois me mostra como, com uma precezita devota e um pedaço de jornal, arranja fogo de maneira indireta, com um toque e uma oração – Ao perceber o ritual, também o faço para conseguir meu fogo alguns minutos mais tarde – Faço uma pequena oração francesa: “Excuse moá ma Dame” – com ênfase no Dame por causa de Damema, a Mãe dos Budas.
Assim sinto-me menos culpado em relação a meu cigarro e de súbito sei que todos vamos para o Céu direto de onde estamos, como espíritos dourados de Anjos com Auréolas de Ouro vamos pegando carona no Deus Ex Machina até as alturas do Apocalíptico, Eucalíptico, Aristofanesco e Divino – Eu suponho e me pergunto o que o gato pode achar – Digo para Cruz “Sua gata está tendo pensamentos dourados (su gata tienes pensas de or)” mas ela não entende por mil e um bilhão de razões complexas que nadam na multidão fervilhante de seus pensamentos leitosos enterrados em Buda no estresse de sua doença permanente – “What’s pensas?” grita ela para os outros, ela não sabe que o gato está tendo pensamentos dourados – Mas o gato a ama tanto, e fica ali, bem perto de seu queixo, ronronando, satisfeito, olhos bem fechados e tampados, uma gatinha pequena igual a Pinky que perdi em Nova York atropelada na Atlantic Avenue pelos sombrios motoristas alucinados do Brooklyn e do Queens, os autômatos sentados ao volante que vão matando gatos automaticamente todo dia, uns cinco ou seis diariamente na mesma rua. “Mas este gato vai morrer a morte mexicana normal – de velhice ou doença – e será um veterano sábio dos becos da área, e você irá vê-la (sujo como trapos) remexendo o lixo como se fosse um rato, então o gato fica ali perto do queixo dela como um pequeno sinal de suas boas intenções.”
Ei Indio vai na rua e traz sanduíches de carne e agora a gata fica enlouquecida, mia e grita querendo um pouco e El Indio a joga para fora da cama – Mas Gata finalmente consegue um pedaço de carne e se atira sobre ele como um Tigre louco e eu penso “Se ela fosse tão grande quanto aquele do zoológico, iria olhar para mim com grandes olhos verdes antes de me devorar”. Estou vivendo o conto de fadas de sábado à noite, na verdade estou me divertindo por causa da birita e a alegria e as pessoas despreocupadas – curtindo os bichinhos – percebendo a filhotinha de chihuahua que agora espera humildemente por um pedaço de carne ou de pão, aflita, com o rabo entre as pernas, se ela um dia herdar a terra será por causa da humildade – Com as orelhas abaixadas para trás, chega até a chorar o lamento de medo do pequeno chihuahua – Ainda assim ela se alternava entre nos observar e dormir a noite inteira, e suas próprias reflexões sobre o tema do Nirvana e da morte e os mortais que tentam ganhar tempo até a morte são de uma alta frequência lamurienta de variedade doce e apavorada – e do tipo que diz “Deixe-me em paz, sou delicada demais” e você a deixa em paz em sua conchinha frágil como o casco de canoas acima das profundezas do oceano – gostaria de poder comunicar a todas as criaturas e pessoas, no resplendor de meus bons tempos enluarados, o mistério enevoado do leite mágico visto na Fantasia Profunda da Mente onde aprendemos que tudo é nada – no caso, eles não iriam se preocupar mais, exceto após o instante em que pensam em se preocupar novamente – Todos nós trêmulos em nossas botas de mortalidade, nascidos para morrer, NASCIDOS PARA MORRER eu poderia escrever isso no muro e sobre Muros por todos os Estados Unidos Pomba em asas de paz, com seus olhos de Coleção de Bichos de Noé ao Luar; cão com garras afiadas negras e reluzentes, morrer é nascer, treme em seus olhos púrpuros, seus vasos sanguíneos frágeis descendo pelas costelas; é, as costelas da chihuahua, e as costelas de Tristessa também, lindas costelas, as delas com suas tias em chiahuahua também nascidas para morrer, – lindas para serem feias, rápidas para estarem mortas, gratas por estarem tristes, loucas para serem tomadas – e a morte de El Indio, nascido para morrer, o homem, então ele aplica a agulha de Sábado à Noite e toda noite é sábado à noite e ele fica louco de esperar, o que mais ele pode fazer – A morte de Cruz, as gotas de religião se derramando sobre seus cemitérios, a boca repugnante plantada no cetim do caixão da terra... Gemo tentando recuperar toda aquela magia, recordo de minha própria morte iminente, “Se apenas eu tivesse o eu mágico da primeira infância quando me lembrei como era antes de eu nascer, não me preocuparia mais com a morte agora que sei que as duas são o mesmo sonho vazio” – Mas o que o Galo vai dizer quando morrer, e alguém enfiar uma faca em seu pescoço frágil – E a doce Galinha, aquela que come um glóbulo de cerveja dos pés de Tristessa, seu bico fechando-se como lábios humanos sorvem o leite da cerveja – quando ela morrer, doce galinha, Tristessa que a ama vai salvar seu osso da sorte e embrulhá-lo em pano vermelho e vai guardá-lo entre seus pertences, não obstante a doce Mãe Galinha de nossa Noite de Arca de Noé, ela a provedora dourada que remonta tão longe que você não consegue encontrar o ovo que a impulsionou para fora rompendo a primeira casca original, eles vão abrir caminho no rabo dela com serras tico-tico e fazer carne moída dela, que você passa por um moedor de metal de manivela, e você iria se perguntar por que ela também treme de medo do castigo? E a morte do gato, o ratinho morto na sarjeta com o rosto retorcido – Eu gostaria de poder comunicar a todos os seus medos da morte combinados o Ensinamento de Séculos de Idade que escutei, que redime toda a dor com uma recompensa suave de amor perfeito silencioso que permanece pra cima e para baixo e para dentro e para fora de todos os lugares passados, presentes e futuros no Vazio desconhecido onde nada acontece e tudo é simplesmente o que é. Mas eles mesmos sabem disso, besta e chacal e mulher amor, e meu Ensinamento de Séculos na verdade é tão velho que eles já o ouviram há muito tempo antes de minha época.
Fico deprimido e preciso ir para casa. Todos nós, nascidos para morrer.

Jack Kerouac, in Tristessa

Nenhum comentário:

Postar um comentário