Freedom from want (1943), de Norman Rockwell
O
nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai
acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a
felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes,
nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem
crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas.
Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser
desprovido de qualquer lirismo, duma exemplaridade incapaz,
acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da
vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma
estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai
fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos
desmancha-prazeres. Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando
chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais
pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter
sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em
cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a
ideia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas.
Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo
cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas
regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por
espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.
Foi
decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a ideia de
fazer uma das minhas chamadas “loucuras”. Essa fora aliás, e
desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente
familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que
arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo
às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha,
uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou
recebi, não sei, duma criada de parentes: eu consegui no
reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de
“louco”. “É doido, coitado!” falavam. Meus pais falavam com
certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo
para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que convencem de
alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o
que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu
ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer
tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência
sem complexos, de que não posso me queixar um nada.
Era
costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se
imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa
do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os
três manos por causa dos quebra-nozes...), empanturrados de
castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi
lembrando isso que arrebentei com uma das minhas “loucuras — Bom,
no Natal, quero comer peru”.
Houve
um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia
solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos
convidar ninguém por causa do luto.
— Mas
quem falou de convidar ninguém! Essa mania... Quando é que a gente
já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa,
vem toda essa parentada do diabo...
— Meu
filho, não fale assim...
— Pois
falo, pronto!
E
descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem
infinita, diz-que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era
mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não
perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e
titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que
sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário
de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de
festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição,
invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas
três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão
trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem
feitos, a parentagem devorava tudo e inda levava embrulhinhos pros
que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de
exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que
mamãe com titia inda provavam um naco de perna, vago, escuro,
perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava
tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que
era peru em nossa casa, peru resto de festa.
Não,
não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E
havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca,
douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a
farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um
cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha
companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas
todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado,
se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E
cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. é certo que com meus
“gostos”, já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num
vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o
doido, mamãe adorava cerveja.
Quando
acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num
desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que
sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho
é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de
empurrarem pra cima de mim a... culpa de seus desejos enormes.
Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que
minha irmã resolveu o consentimento geral: — É louco mesmo!...
Comprou-se
o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal
rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado: assim
que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não
fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por
ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no
mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova
que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda
disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse
todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um
dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia
que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem — Não
senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso!
Era
mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim,
que até era capaz de comer pouco, só pra que os outros quatro
comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru
comido a sós, redescobria em cada um o que a cotidianidade abafara
por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me
perdoe mas estou pensando em Jesus... Naquela casa de burgueses bem
modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus.
O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas. — Eu
que sirvo!
“É
louco, mesmo!”, pois por que havia de servir, se sempre mamãe
servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram
passados pra mim e principiei uma distribuição heroica, enquanto
mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo dum pedaço
admirável da “casca”, cheio de gordura e pus no prato. E depois
vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço
angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru: — Se
lembre de seus manos, Juca!
Quando
que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da
Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus
crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O
prato ficou sublime. — Mamãe, este é o da senhora! Não! não
passe não!
Foi
quando ela não pôde mais com tanta comoção e principiou chorando.
Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o
dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu
lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro.
Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também,
tinha dezenove anos... Diabo de família besta que via peru e
chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é
que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por
associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua
figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal. Fiquei
danado.
Bom,
principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava
perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira
entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida,
inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa
preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado
ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma
incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo
que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido.
Principiou
uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o
peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara
decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios
visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru a
imagem de papai cresceu vitoriosa, Insuportavelmente obstruidora. —
Só falta seu pai...
Eu
nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me
interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai.
E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e
político. Naquele Instante que hoje me parece decisivo da nossa
família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:
— É
mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto
trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente...
(hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós
todos reunidos em família.
E
todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi
diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu.
Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito
bom, sempre se sacrificara por nós, fora um santo que “vocês,
meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai”, um santo.
Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável
estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de
contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador,
completamente vitorioso.
Minha
mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever
“felicidade gustativa”, mas não era só isso não. Era uma
felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros
parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi
aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um
amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais
complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade
familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim
grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.
Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe
fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas
pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!
A
tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor...
Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra
levam o nome de “bem-casados”. Mas nem mesmo este nome perigoso
se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em
dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação.
Levantamos.
Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de
cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa,
porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica
antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder
sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e
pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu
bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!...
— Villa
Rica Editoras Reunidas LTDA.
Mário de Andrade, in Contos novos
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