Quando
vou até a casa dos Conlon na manhã seguinte com papai, é verdade,
meu coração bate tão forte, ou tão grande, como disse primeiro,
que meio que me machuca.
Ele
bombeou alguma coisa na minha garganta, me fazendo salivar, cheio de
perguntas.
O
que eu ia dizer? Como ia agir quando a visse? Simpático? Calmo?
Indiferente? Naquele estilo tímido e sensível que, no passado,
nunca funcionou comigo? Não fazia ideia.
No
caminho, na van, pensei que ia engasgar, sufocar ou coisa assim. Tudo
por causa do sentimento que essa garota plantara dentro de mim. Ele
cresceu quando nos aproximávamos da casa dela. Chegou ao ponto de me
fazer torcer para que o sinal seguinte fosse vermelho e eu pudesse
ter mais tempo de pensar nas coisas.
É
engraçado. Tive toda a semana para pensar nisso, para me preparar, e
agora já era o sábado, e eu não sabia o que fazer. Talvez tivesse
tido tempo demais para pensar nisso. Talvez devesse passar menos
tempo me preocupando com Sarah e Bruce, e com Steve, e roubando e
devolvendo placas com Rube. Talvez, então, meu próprio jogo não
tivesse sido prejudicado. Talvez, então, eu tivesse ficado bem.
Se.
Apenas.
Não
adiantava.
Estava
tudo perdido.
Quando
chegássemos lá pensei, era melhor só enfiara cabeça na fossa e
cavar um buraco para mim. As garotas não gostam de caras como eu.
Que garota que se respeite podia me suportar? Cabelo sempre
bagunçado. Mãos e pés sujos. Sorriso torto. Que andava mancando,
preocupado. Não. Definitivamente, isso não era bom. Nada disso.
Vamos
encarar os fatos, até falei para mim mesmo, você não merece uma
namorada. Estava certo. Não merecia.
E
dava mostras, no melhor dos casos, de uma moral duvidosa. Era
controlado com facilidade pelo meu irmão. Fazia coisas patéticas,
que não tinham importância, e só eram feitas por um tipo de
orgulho selvagem que era tão ridículo que mal dava para entender.
Era uma pessoa confusa, desesperada e ansiosa, andando por aí para
que alguma coisa me fizesse sentir bem...
Então.
De repente.
Num
instante, pensei que era estranho nunca ter rezado por mim mesmo.
Será que eu não tinha salvação? Será que era tão sujo que não
merecia uma oração? Talvez. Pode ser.
Mesmo
assim, consegui que Rube devolvesse a placa, fiz um esforço para
argumentar. Então, talvez, no fim das contas, não seja tão mau.
Era melhor assim. Um pouco de pensamento positivo, enquanto a van do
meu pai se arrastava na direção do meu destino.
Quando
estacionamos na casa, até comecei a acreditar por uns míseros
minutos que, talvez, não fosse o degenerado feio e nojento que
julgava ser. Comecei a dizer para mim mesmo que, provavelmente, eu
era muito normal. Lembrei-me do que pensei naquele dia, voltando do
dentista, que todos os garotos são bem nojentos, feito animais.
Talvez o desafio fosse, de alguma forma, ser maior que tudo isso.
Talvez fosse o que eu estava buscando com Rebecca Conlon. Só uma
chance de provar que podia ser simpático e respeitável, em vez de
simplesmente devasso e terrível. Eu só queria uma chance de
tratá-la direito, e sabia que não ia desperdiçá-la.
Não
podia.
Não
ia me permitir isso.
— Não
vou estragar tudo — murmurei para mim mesmo, ao sair da van.
Respirei fundo, como se estivesse andando até a coisa mais
importante da minha vida. Então, percebi.
Esta
era a coisa mais importante da minha vida.
— Segure
isso — falou meu pai, me entregando uma pá, e, durante a manhã,
trabalhei duro e esperei Rebecca Conlon aparecer. Então, descobri,
numa conversa entre meu pai e a mãe dela, que ela não estava lá.
Tinha passado a noite na casa de uma amiga.
— Ótimo
— falei, no espaço entre a língua e a garganta.
E
sabe qual é a pior parte disso? Foi saber que, se Rebecca Conlon
trabalhasse no meu lugar, eu teria feito de tudo, sem a menor dúvida,
para estar lá e vê-la. Teria ficado, teria me pregado ao chão dois
dias antes, se soubesse que ela estava vindo, só para ter certeza de
que não ia deixar de vê-la.
— Eu
teria — falei, concordando comigo mesmo, e continuei a trabalhar.
Trabalhei
até ficar dormente. Foi terrível. Até meu pai me perguntou se eu
estava bem. Respondi que sim, mas nós dois sabíamos que eu estava
infeliz.
No
fim do dia, quando a garota ainda não havia chegado, papai me deu
dez dólares a mais. Deu e falou: — Você trabalhou bem hoje,
garoto. — Depois se afastou e parou, virou e completou: — Quer
dizer, Cameron.
— Obrigado
— falei, e, mesmo fazendo um esforço grande para sorrir de
verdade, o sorriso que dei ao meu pai era infeliz.
— Eu
teria tratado ela direito — falei para a cidade, do lado de fora da
janela de casa, mas não adiantava. A cidade não ligava, e, no
quarto ao lado, Sarah e Bruce estavam discutindo.
Rube
entrou e deitou de bruços em sua cama. Pôs o travesseiro sobre a
cabeça e falou: — Acho que gostava mais quando eles estavam se
agarrando.
É.
Eu também.
Eu
também deitei na minha cama, só que de costas e cobri os olhos com
as mãos. Apertando-os com os polegares, dava para ver desenhos na
escuridão.
— Qual
vai ser o jantar? — perguntei a Rube, temendo a resposta.
— Salsicha,
acho, e a sobra dos cogumelos.
— Ah,
que legal. — Virei para o lado, em agonia. Muito legal.
Então,
Rube tirou o travesseiro da cabeça e respondeu com ar sério: — E
acabou o molho de tomate.
— Melhor
ainda.
Parei
de falar então, mas continuei remoendo aquilo por dentro. Depois de
um tempo, cansei e pensei: Não se preocupe, Cameron. Todo cão tem o
seu dia.
Só
que não é hoje.
(Por
sinal, comemos os cogumelos. Olhávamos para cima; em seguida,
olhávamos para a frente. Olhávamos para baixo de novo. Nojento. Não
tinha sentido recuar. Comemos porque éramos nós e, no fim, comemos
tudo. Sempre comemos. Sempre comemos tudo. Mesmo que vomitássemos o
jantar, se nos dessem novamente na noite seguinte, Rube e eu
provavelmente teríamos comido a mesma coisa.) Tem uma multidão
imensa ao redor de uma briga, e ela está berrando, uivando e
gritando, como se os socos estivessem acertando o alvo e os punhos
moldassem os rostos.
É
uma multidão imensa, umas oito fileiras, por isso, é muito difícil
abrir caminho.
Me
ajoelho.
Rastejo.
Procuro
brechas e, então, passo por elas, até finalmente estar lá. Estou
diante da multidão, que forma um círculo gigante e espesso.
— Vai!
— berra o cara perto de mim! — Vai pra cima! Parado, olho para a
multidão. Não assisto à luta. Não ainda.
Tem
todos os tipos de pessoas no meio da multidão. Magrelas. Gordas.
Negras. Brancas. Amarelas. Todas acompanham e gritam para o centro do
ringue.
O
cara perto de mim está sempre gritando no meu ouvido, perfurando meu
crânio, indo direto para o cérebro. Sinto a voz dele nos meus
pulmões. Ele grita muito alto mesmo. Nada consegue detê-lo, nem os
caras atrás dele, xingando para fazê-lo calar a boca. Não adianta.
Tento
pará-lo, fazendo uma pergunta, um grito acima do restante da
multidão.
— Pra
quem você está torcendo? — pergunto.
Ele
para de fazer barulho. Na mesma hora.
Olha.
Para
a luta. Então, para mim.
Passam-se
mais uns segundos, e ele diz: — Estou torcendo pelo azarão.
E
é aí que dou uma olhada na luta, pela primeira vez.
— Ei!
Tem alguma coisa esquisita.
— Ei!
— chamo o cara de novo, porque só tem um lutador naquele círculo
imenso, barulhento e agitado. Um garoto. Ele está socando com força
e se movendo, bloqueando e agitando os braços para coisa nenhuma.
— Ei,
por que só tem um garoto lutando ? -pergunto de novo para o cara
perto de mim.
Dessa
vez, ele não olha para mim, não. Continua concentrado no garoto
dentro do círculo, que luta de modo tão intenso e ninguém consegue
desviar os olhos dele.
O
cara fala comigo.
Uma
resposta.
Diz:
— Ele está lutando contra o mundo.
E,
agora, observo o azarão no meio do círculo lutar, pôr-se de pé,
cair e voltar a se apoiar nos quadris e nos pés, e lutar de novo.
Ele continua na luta, por mais que caia. Levanta. Algumas pessoas
comemoram. Outras riem agora e xingam.
Não
consigo me segurar. Observo.
Meus
olhos ficam inchados e ardem.
— Ele
pode vencer? Pergunto e, agora, também não consigo desviar os olhos
do garoto no círculo.
Markus Zusak, in O Azarão
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