quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Feiras

Nos seis primeiros dias da Criação, Deus criou a Feira das Utilidades. Usou o trabalho, como atividade penúltima. No sábado, Deus criou a Feira da Fruição, o brinquedo, como atividade última. Quando a obra da criação terminou, o Deus trabalhador se transformou no Deus brincante, criança.*
A ideia de separar as coisas em duas classes, as que podem ser usadas e as que devem ser fruídas, é de santo Agostinho. Chamar cada uma dessas ordens de feira é ideia minha. Essa separação ajudou-me a pôr ordem nos meus objetos. Quanto aos objetos que pus na Feira das Utilidades, objetos que vão da agulha à ciência, todos eles ferramentas, acho que santo Agostinho nada teria a opor. Mas ele me amaldiçoaria pelos objetos que pus na Feira da Fruição. Santo Agostinho, bispo, teólogo, não se contentava com nada que fosse menos que o eterno e o divino. Deus era, para ele, é o único objeto da Feira da Fruição. Todos os outros são apenas meios para o fim supremo e eterno do universo. Ele me acusaria de idolatria, que é, precisamente, considerar como fim e ter deleite num objeto que é apenas para ser usado como meio. Tal é o caso do sexo. Coloquei os órgãos sexuais primeiro ao lado das ferramentas e máquinas: aparelho reprodutor. O bispo aprovaria. Mas eu disse também que eles se encontravam na Feira da Fruição: brinquedos. Nisso ele me reprovaria. Porque para ele, pai do pensamento sexual das igrejas cristãs, sexo pelo prazer é coisa pecaminosa (veja o filme O rei pasmado e a rainha desnuda). Mas como me horroriza imaginar que Deus possa ser um ser narcísico que se considera o único objeto digno de fruição em todo o universo, tratei de encher a Feira da Fruição com uma infinidade de coisas boas. Pois acho que foi pensando no prazer e na alegria dos homens que Deus povoou o Paraíso com uma infinidade de coisas belas, perfumadas, musicais, delicadas e gostosas. Deus não se dá aos nossos sentidos. O que ele dá aos nossos sentidos é o Paraíso, o jardim.
As feiras de santo Agostinho são metáforas para uma filosofia de vida. Elas nos dão um paradigma de uma sapientia, de um jeito de viver. E esse paradigma nos diz que os objetivos da vida são o prazer, a alegria, a felicidade.

* Uma nota teológica: os teólogos antigos se referiam à “opus proprium Dei” – a obra que pertence à essência mesma da divindade –, e à “opus alienum Dei”, outra obra, que é estranha à essência da divindade, mas que é realizada por causa da “opus proprium Dei”. O trabalho é “opus alienum Dei”. O brinquedo é “opus proprium Dei”. A Criação se realiza com a criança que brinca no Paraíso – que é a Feira da Fruição.

Rubem Alves, in Variações sobre o prazer

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