Nos
seis primeiros dias da Criação, Deus criou a Feira das Utilidades.
Usou o trabalho, como atividade penúltima. No sábado, Deus criou a
Feira da Fruição, o brinquedo, como atividade última. Quando a
obra da criação terminou, o Deus trabalhador se transformou no Deus
brincante, criança.*
A
ideia de separar as coisas em duas classes, as que podem ser usadas e
as que devem ser fruídas, é de santo Agostinho. Chamar cada uma
dessas ordens de feira é ideia minha. Essa separação ajudou-me a
pôr ordem nos meus objetos. Quanto aos objetos que pus na Feira das
Utilidades, objetos que vão da agulha à ciência, todos eles
ferramentas, acho que santo Agostinho nada teria a opor. Mas ele me
amaldiçoaria pelos objetos que pus na Feira da Fruição. Santo
Agostinho, bispo, teólogo, não se contentava com nada que fosse
menos que o eterno e o divino. Deus era, para ele, é o único objeto
da Feira da Fruição. Todos os outros são apenas meios para
o fim supremo e eterno do universo. Ele me acusaria de
idolatria, que é, precisamente, considerar como fim e ter deleite
num objeto que é apenas para ser usado como meio. Tal é o caso do
sexo. Coloquei os órgãos sexuais primeiro ao lado das ferramentas e
máquinas: aparelho reprodutor. O bispo aprovaria. Mas eu disse
também que eles se encontravam na Feira da Fruição: brinquedos.
Nisso ele me reprovaria. Porque para ele, pai do pensamento sexual
das igrejas cristãs, sexo pelo prazer é coisa pecaminosa (veja o
filme O rei pasmado e a rainha desnuda). Mas como me horroriza
imaginar que Deus possa ser um ser narcísico que se considera o
único objeto digno de fruição em todo o universo, tratei de encher
a Feira da Fruição com uma infinidade de coisas boas. Pois acho que
foi pensando no prazer e na alegria dos homens que Deus povoou o
Paraíso com uma infinidade de coisas belas, perfumadas, musicais,
delicadas e gostosas. Deus não se dá aos nossos sentidos. O que ele
dá aos nossos sentidos é o Paraíso, o jardim.
As
feiras de santo Agostinho são metáforas para uma filosofia de vida.
Elas nos dão um paradigma de uma sapientia, de um jeito de
viver. E esse paradigma nos diz que os objetivos da vida são o
prazer, a alegria, a felicidade.
*
Uma nota teológica: os teólogos antigos se referiam à “opus
proprium Dei” – a obra que pertence à essência mesma da
divindade –, e à “opus alienum Dei”, outra obra, que é
estranha à essência da divindade, mas que é realizada por causa da
“opus proprium Dei”. O trabalho é “opus alienum Dei”. O
brinquedo é “opus proprium Dei”. A Criação se realiza com a
criança que brinca no Paraíso – que é a Feira da Fruição.
Rubem Alves, in Variações sobre o prazer
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