sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Carey e Clay e El Matador no quintal


Ele jamais esqueceria o dia em que a viu pela primeira vez na rua Archer, ou melhor, o dia em que ela olhou para cima e o viu.
Era início de dezembro.
Ela havia feito uma viagem de carro de sete horas com os pais, e a tarde já se aproximava do fim quando estacionaram na rua. Logo atrás vinha um caminhão de mudança com caixas, mobília e eletroeletrônicos, alocados primeiro na varanda e depois carregados para dentro da casa. Também havia selas, rédeas e estribos, o material de turfe tão importante para o pai dela. Ele foi jóquei, vinha de uma família de jóqueis, e os irmãos mais velhos dela também seguiam os passos do patriarca, participando de competições em cidades com nomes esquisitos.
Devia fazer uns quinze minutos que eles tinham chegado quando de repente a menina parou no meio do gramado. Estava com uma caixa debaixo de um braço, enquanto o outro se ocupava com uma torradeira que, de alguma maneira, se soltara no caminho, o fio do aparelho arrastando pelo chão.
Olha ali — disse ela, apontando casualmente para o outro lado da rua. — Tem um menino naquele telhado.

***

Um ano e alguns meses depois, naquela noite de sábado, um farfalhar de pés anunciava sua chegada às Cercanias.
Oi, Clay.
Ele sentiu a boca e o sangue e o calor e o coração dela. Tudo em um único suspiro.
Oi, Carey.
Eram umas nove e meia, e ele esperava por ela no colchão.
Também havia mariposas por lá. E a lua.
O menino se deitou de costas.
A garota parou na beirada e pôs algo no chão, então se deitou também, passando a perna de leve por cima do corpo dele. Clay sentiu o cabelo castanho-avermelhado dela roçando em seu pescoço e, como sempre, se deleitou com as cócegas. Sentiu que ela havia notado o vermelho em seu rosto e decidido que era melhor não tocar no assunto ou procurar outros ferimentos.
Mas ela não conseguiu se conter.
Vocês são fogo... — disse, alisando o machucado, esperando Clay dizer alguma coisa.
Está gostando do livro? — perguntou ele. As palavras saíram com dificuldade no começo, pesadas, como se precisassem ser suspensas por uma roldana. — Continua bom da terceira vez?
Está ainda melhor. Rory não te falou?
Clay tentou lembrar se Rory tinha mencionado algo do tipo.
Eu esbarrei com ele na rua um dia desses — prosseguiu ela. — Acho que foi um pouquinho antes de...
Clay estava prestes a se levantar, mas se deteve.
Antes... antes do quê?
Ela sabia.
Sabia que ele tinha voltado para casa.
Por ora, Clay achou melhor deixar essa conversa pra lá, preferindo voltar sua atenção para O marmoreiro e para o pule de aposta velho e desbotado que servia como marcador de página, o do El Matador no quinto.
Aliás, em que parte você está? — perguntou. — Ele já foi trabalhar em Roma?
E em Bolonha também.
Que rápida. Ainda está apaixonada pelo nariz quebrado dele?
Claro. Você sabe que eu não resisto.
Ele abriu um sorriso grande, porém breve.
Eu também não.
Carey adorava saber que Michelangelo, quando adolescente, bancou o espertinho e acabou arranjando um nariz quebrado. Era um lembrete de que ele era humano. Uma insígnia de imperfeição.
Para Clay, a questão era ligeiramente mais pessoal.
Porque acontece que aquele não era o primeiro nariz quebrado de que ele tinha conhecimento.

***

Um tempo atrás — bastante tempo atrás, na verdade, dias após a mudança de Carey —, Clay estava na varanda de casa comendo uma torrada, com o prato apoiado no corrimão. Tinha acabado de dar a última mordida quando Carey atravessou a rua Archer, vestindo uma camisa de flanela com as mangas dobradas até os cotovelos e jeans muito surrados, trazendo consigo o último raio de sol:
O brilho de seus antebraços.
Os ângulos de seu rosto.
Os dentes dela, por exemplo, não eram exatamente brancos, não eram exatamente retos, mas havia algo de notável neles, algo especial. De tanto rangê-los durante o sono, eles ganharam um aspecto peculiar, como vidro marinho, erodidos até ficarem lisos.
Carey não sabia se ele tinha notado sua presença, mas então o garoto desceu timidamente os degraus da varanda, ainda com o prato nas mãos.
A uma distância curta-porém-cautelosa, ela o estudou, com interesse, com uma curiosidade faceira.
A primeira palavra que ele lhe disse foi:
Desculpa.
Falou para baixo, para o prato.

***

Após o silêncio confortável de costume, Carey tornou a falar. Seu queixo estava encostado na clavícula dele, e, daquela vez, ela o faria confrontar a realidade.
Então... — começou ela. — Ele voltou...
Ali eles nunca falavam aos sussurros. Conversavam baixinho, com serenidade, como amigos.
Matthew me contou — confessou ela.
Clay sentiu o machucado repuxar.
Você encontrou o Matthew?
Ela assentiu bem de leve e o tranquilizou:
Na quinta agora. Ele estava tirando o lixo quando eu cheguei. É meio impossível não esbarrar com os garotos Dunbar, sabia?
E Clay quase desmoronou:
O nome Dunbar, prestes a desaparecer.
Deve ter sido bem difícil ver... — comentou ela, completando a frase logo depois — ... Vê-lo.
Já vi coisas mais difíceis.
Era verdade, e ambos sabiam.
Matthew falou algo sobre uma ponte...
Era verdade, eu tinha falado mesmo. Era uma das características mais desconcertantes de Carey Novac: você sempre acabava contando para ela muito mais do que deveria.
Mais silêncio. Uma mariposa rodopiava.
O som ficou mais próximo quando ela voltou a falar. Clay sentiu o peso de cada uma daquelas palavras, como se estivessem sendo depositadas em sua garganta.
Clay, você vai embora para construir uma ponte?
Aquela mariposa se recusava a ir embora.

***

Por quê? — perguntara ela, naquela varanda de tanto tempo atrás. — Por que você está pedindo desculpas?
A noite já se espalhara pela rua.
Ah, porque naquele dia eu devia ter ajudado você com a mudança, em vez de só ficar sentado, olhando.
No telhado?
Ele já gostava dela.
Gostava das suas sardas.
Da forma que elas se distribuíam pelo rosto dela.
Só dava para notar se você olhasse de verdade.

***

Clay navegou, então, para um lugar livre do nosso pai.
Ei — disse, virando-se para ela. — Você ficou de me passar umas dicas de aposta. Acha que vai me dar hoje?
Ela se aninhou com mais vontade nele e falou, brincando:
Se eu vou te dar, é? Que abusado. Vê se me respeita, garoto.
Não... Não foi isso que eu quis dizer... Queria que você me desse umas dicas...
A voz dele foi se dissipando, e tudo aquilo era parte do jogo. Era sempre assim nas Cercanias, por mais que sábado à noite fosse o pior dia para receber orientações de aposta, já que todas as corridas importantes já tinham acontecido na tarde do mesmo dia. O outro dia de competições, menos prestigioso, era quarta-feira, mas, como eu disse, esse diálogo sobre apostas não passava de um ritual.
O que andam falando por aí? — retomou ele.
Carey deu um sorrisinho, animada para mais uma provocação.
Vou te dar tantas dicas que você não vai conseguir pensar em outra coisa — disse, deslizando os dedos pela clavícula dele. — El Matador no quinto.
Clay notou que, embora ela estivesse se divertindo com a conversa, seus olhos lutavam para conter as lágrimas, e a abraçou com um tantinho mais de força, e Carey aproveitou para baixar o rosto, pousando a cabeça no peito dele.
O coração dele disparou portões afora.
Ele se perguntou se ela conseguia escutar.

***

Ainda em frente à casa dele, eles continuaram conversando. Ela estava interessada nos números.
Quantos anos você tem?
Quase quinze.
Ah, é? Eu tenho quase dezesseis.
A garota chegou mais para perto e meneou a cabeça de leve em direção ao telhado.
Por que você não está lá em cima agora?
Ele ficou agitado. Carey sempre o deixava assim — não que ele não gostasse.
Matthew me falou para tirar o dia de folga. Ele vive me dizendo isso.
Matthew?
Já deve ter cruzado com ele por aí. É meu irmão mais velho. Fala “Jesus Cristo” toda hora.
Clay sorriu, e ela aproveitou a oportunidade.
Por que você vai lá para cima?
Ah, sabe como é... — Ele pensou na melhor maneira de explicar. — Dá para ver bem longe de lá.
Posso subir um dia?
Ele ficou surpreso com o pedido e sentiu uma vontade incontrolável de fazer uma piadinha.
Não sei, não. Não é nada fácil chegar lá em cima.
Carey riu, mordendo a isca.
Difícil porra nenhuma. Se você consegue, eu também consigo.
Porra nenhuma?
Ambos deram um risinho frouxo.
Prometo que não vou te distrair. — Então ela teve uma ideia. — Se me deixar subir, levo meus binóculos.
Parecia que ela sempre estava pensando à frente.

***

Às vezes, quando estava com Carey, as Cercanias pareciam mais amplas.
Os eletrodomésticos carcomidos davam a impressão de ser apenas monumentos distantes.
O subúrbio parecia ainda mais remoto.
Naquela noite, depois das dicas de Carey e do El Matador, eles conversaram sobre as competições. Clay perguntou se ela conseguiria participar de alguma corrida, algo além de treinos e páreos-teste. Carey respondeu que McAndrew ainda não dissera nada, mas que sabia o que estava fazendo. Se insistisse muito, seria pior para ela, acabaria prejudicando o progresso feito até ali.
É claro que, enquanto ela falava, sua cabeça permanecia pousada no peito dele, ou no pescoço, o momento preferido de Clay no mundo. Em Carey Novac, o garoto encontrara alguém que o conhecia, alguém que era ele, em todos os aspectos que importavam — exceto um. Clay sabia que, se pudesse, ela daria tudo para compartilhar com ele também aquilo:
O motivo pelo qual ele carregava o pregador.
Em troca, ela abriria mão de sua vaga de aprendiz de joqueta, de sua primeira vitória no pomposo Grupo Um ou até de uma vaga em uma corrida de grande prestígio. Tenho certeza, inclusive, de que ela abriria mão da chance de competir na corrida anual da cidade, ou na que mais amava: a Cox Plate.
Mas ela não podia fazer nada disso.
O que ela podia fazer era definir, sem pensar duas vezes, a melhor forma de se despedir dele. Por isso, bem baixinho, ela suplicou, suave mas assertiva:
Não faz isso, Clay. Não vai, não me deixa... mas vai.
Se estivesse em um dos épicos de Homero, seria a Carey Novac dos olhos cintilantes, ou a Carey dos olhos preciosos. Ela fez questão de deixar claro o tamanho da saudade que sentiria dele, mas que também esperava — na verdade, exigia — que ele fosse fazer o que tinha que ser feito.
Não faz isso, Clay. Não vai, não me deixa... mas vai.

***

Lá atrás, logo depois de ir embora, ela se deu conta.
Cruzando a rua Archer, deu meia-volta.
Ei, qual é o seu nome?
O garoto, lá na frente da varanda:
Clay.
Silêncio.
E você? Não quer saber qual é o meu nome?
Ela falava como se já o conhecesse desde sempre, e Clay se corrigiu, fez a pergunta, e a menina andou até ele.
Meu nome é Carey — disse ela, e já estava se virando para ir embora de novo quando Clay teve uma dúvida repentina.

Ei, como se soletra o seu nome?
Então ela voltou correndo e pegou o prato.
Com a ponta do dedo, escreveu cuidadosamente o nome entre as migalhas, rindo ao perceber que era impossível decifrar a palavra, mas ambos já sabiam que letras estavam ali, principalmente o C e o R.
Então ela abriu um sorriso para ele, breve porém afável, atravessou a rua e foi para casa.

***

Eles permaneceram ali mais uns vinte minutos, em silêncio, assim como as Cercanias que os envolviam.
Então veio a pior parte de sempre:
Carey Novac se afastou dele.
Sentou-se na beira do colchão, mas, em vez de se levantar e ir embora, se ajoelhou ao lado da cama, no lugar em que se detivera ao chegar, e havia um pacote em suas mãos, embrulhado em jornal; então, bem devagar, ela o colocou no peito dele. Nada mais foi dito.
Nada de Olha só, trouxe um presente para você.
Ou Toma.
Muito menos um Muito obrigado da parte de Clay.
Ele só abriu o pacote depois que a menina partiu, e o que havia ali dentro o surpreendeu.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

Nenhum comentário:

Postar um comentário