Ele
jamais esqueceria o dia em que a viu pela primeira vez na rua Archer,
ou melhor, o dia em que ela olhou para cima e o viu.
Era
início de dezembro.
Ela
havia feito uma viagem de carro de sete horas com os pais, e a tarde
já se aproximava do fim quando estacionaram na rua. Logo atrás
vinha um caminhão de mudança com caixas, mobília e
eletroeletrônicos, alocados primeiro na varanda e depois carregados
para dentro da casa. Também havia selas, rédeas e estribos, o
material de turfe tão importante para o pai dela. Ele foi jóquei,
vinha de uma família de jóqueis, e os irmãos mais velhos dela
também seguiam os passos do patriarca, participando de competições
em cidades com nomes esquisitos.
Devia
fazer uns quinze minutos que eles tinham chegado quando de repente a
menina parou no meio do gramado. Estava com uma caixa debaixo de um
braço, enquanto o outro se ocupava com uma torradeira que, de alguma
maneira, se soltara no caminho, o fio do aparelho arrastando pelo
chão.
— Olha
ali — disse ela, apontando casualmente para o outro lado da rua. —
Tem um menino naquele telhado.
***
Um
ano e alguns meses depois, naquela noite de sábado, um farfalhar de
pés anunciava sua chegada às Cercanias.
— Oi,
Clay.
Ele
sentiu a boca e o sangue e o calor e o coração dela. Tudo em um
único suspiro.
— Oi,
Carey.
Eram
umas nove e meia, e ele esperava por ela no colchão.
Também
havia mariposas por lá. E a lua.
O
menino se deitou de costas.
A
garota parou na beirada e pôs algo no chão, então se deitou
também, passando a perna de leve por cima do corpo dele. Clay sentiu
o cabelo castanho-avermelhado dela roçando em seu pescoço e, como
sempre, se deleitou com as cócegas. Sentiu que ela havia notado o
vermelho em seu rosto e decidido que era melhor não tocar no assunto
ou procurar outros ferimentos.
Mas
ela não conseguiu se conter.
— Vocês
são fogo... — disse, alisando o machucado, esperando Clay dizer
alguma coisa.
— Está
gostando do livro? — perguntou ele. As palavras saíram com
dificuldade no começo, pesadas, como se precisassem ser suspensas
por uma roldana. — Continua bom da terceira vez?
— Está
ainda melhor. Rory não te falou?
Clay
tentou lembrar se Rory tinha mencionado algo do tipo.
— Eu
esbarrei com ele na rua um dia desses — prosseguiu ela. — Acho
que foi um pouquinho antes de...
Clay
estava prestes a se levantar, mas se deteve.
— Antes...
antes do quê?
Ela
sabia.
Sabia
que ele tinha voltado para casa.
Por
ora, Clay achou melhor deixar essa conversa pra lá, preferindo
voltar sua atenção para O marmoreiro e para o pule de aposta
velho e desbotado que servia como marcador de página, o do El
Matador no quinto.
— Aliás,
em que parte você está? — perguntou. — Ele já foi trabalhar em
Roma?
— E
em Bolonha também.
— Que
rápida. Ainda está apaixonada pelo nariz quebrado dele?
— Claro.
Você sabe que eu não resisto.
Ele
abriu um sorriso grande, porém breve.
— Eu
também não.
Carey
adorava saber que Michelangelo, quando adolescente, bancou o
espertinho e acabou arranjando um nariz quebrado. Era um lembrete de
que ele era humano. Uma insígnia de imperfeição.
Para
Clay, a questão era ligeiramente mais pessoal.
Porque
acontece que aquele não era o primeiro nariz quebrado de que ele
tinha conhecimento.
***
Um
tempo atrás — bastante tempo atrás, na verdade, dias após a
mudança de Carey —, Clay estava na varanda de casa comendo uma
torrada, com o prato apoiado no corrimão. Tinha acabado de dar a
última mordida quando Carey atravessou a rua Archer, vestindo uma
camisa de flanela com as mangas dobradas até os cotovelos e jeans
muito surrados, trazendo consigo o último raio de sol:
O
brilho de seus antebraços.
Os
ângulos de seu rosto.
Os
dentes dela, por exemplo, não eram exatamente brancos, não eram
exatamente retos, mas havia algo de notável neles, algo especial. De
tanto rangê-los durante o sono, eles ganharam um aspecto peculiar,
como vidro marinho, erodidos até ficarem lisos.
Carey
não sabia se ele tinha notado sua presença, mas então o garoto
desceu timidamente os degraus da varanda, ainda com o prato nas mãos.
A
uma distância curta-porém-cautelosa, ela o estudou, com interesse,
com uma curiosidade faceira.
A
primeira palavra que ele lhe disse foi:
— Desculpa.
Falou
para baixo, para o prato.
***
Após
o silêncio confortável de costume, Carey tornou a falar. Seu queixo
estava encostado na clavícula dele, e, daquela vez, ela o faria
confrontar a realidade.
— Então...
— começou ela. — Ele voltou...
Ali
eles nunca falavam aos sussurros. Conversavam baixinho, com
serenidade, como amigos.
— Matthew
me contou — confessou ela.
Clay
sentiu o machucado repuxar.
— Você
encontrou o Matthew?
Ela
assentiu bem de leve e o tranquilizou:
— Na
quinta agora. Ele estava tirando o lixo quando eu cheguei. É meio
impossível não esbarrar com os garotos Dunbar, sabia?
E
Clay quase desmoronou:
O
nome Dunbar, prestes a desaparecer.
— Deve
ter sido bem difícil ver... — comentou ela, completando a frase
logo depois — ... Vê-lo.
— Já
vi coisas mais difíceis.
Era
verdade, e ambos sabiam.
— Matthew
falou algo sobre uma ponte...
Era
verdade, eu tinha falado mesmo. Era uma das características mais
desconcertantes de Carey Novac: você sempre acabava contando para
ela muito mais do que deveria.
Mais
silêncio. Uma mariposa rodopiava.
O
som ficou mais próximo quando ela voltou a falar. Clay sentiu o peso
de cada uma daquelas palavras, como se estivessem sendo depositadas
em sua garganta.
— Clay,
você vai embora para construir uma ponte?
Aquela
mariposa se recusava a ir embora.
***
— Por
quê? — perguntara ela, naquela varanda de tanto tempo atrás. —
Por que você está pedindo desculpas?
A
noite já se espalhara pela rua.
— Ah,
porque naquele dia eu devia ter ajudado você com a mudança, em vez
de só ficar sentado, olhando.
— No
telhado?
Ele
já gostava dela.
Gostava
das suas sardas.
Da
forma que elas se distribuíam pelo rosto dela.
Só
dava para notar se você olhasse de verdade.
***
Clay
navegou, então, para um lugar livre do nosso pai.
— Ei
— disse, virando-se para ela. — Você ficou de me passar umas
dicas de aposta. Acha que vai me dar hoje?
Ela
se aninhou com mais vontade nele e falou, brincando:
— Se
eu vou te dar, é? Que abusado. Vê se me respeita, garoto.
— Não...
Não foi isso que eu quis dizer... Queria que você me desse umas
dicas...
A
voz dele foi se dissipando, e tudo aquilo era parte do jogo. Era
sempre assim nas Cercanias, por mais que sábado à noite fosse o
pior dia para receber orientações de aposta, já que todas as
corridas importantes já tinham acontecido na tarde do mesmo dia. O
outro dia de competições, menos prestigioso, era quarta-feira, mas,
como eu disse, esse diálogo sobre apostas não passava de um ritual.
— O
que andam falando por aí? — retomou ele.
Carey
deu um sorrisinho, animada para mais uma provocação.
— Vou
te dar tantas dicas que você não vai conseguir pensar em outra
coisa — disse, deslizando os dedos pela clavícula dele. — El
Matador no quinto.
Clay
notou que, embora ela estivesse se divertindo com a conversa, seus
olhos lutavam para conter as lágrimas, e a abraçou com um tantinho
mais de força, e Carey aproveitou para baixar o rosto, pousando a
cabeça no peito dele.
O
coração dele disparou portões afora.
Ele
se perguntou se ela conseguia escutar.
***
Ainda
em frente à casa dele, eles continuaram conversando. Ela estava
interessada nos números.
— Quantos
anos você tem?
— Quase
quinze.
— Ah,
é? Eu tenho quase dezesseis.
A
garota chegou mais para perto e meneou a cabeça de leve em direção
ao telhado.
— Por
que você não está lá em cima agora?
Ele
ficou agitado. Carey sempre o deixava assim — não que ele não
gostasse.
— Matthew
me falou para tirar o dia de folga. Ele vive me dizendo isso.
— Matthew?
— Já
deve ter cruzado com ele por aí. É meu irmão mais velho. Fala
“Jesus Cristo” toda hora.
Clay
sorriu, e ela aproveitou a oportunidade.
— Por
que você vai lá para cima?
— Ah,
sabe como é... — Ele pensou na melhor maneira de explicar. — Dá
para ver bem longe de lá.
— Posso
subir um dia?
Ele
ficou surpreso com o pedido e sentiu uma vontade incontrolável de
fazer uma piadinha.
— Não
sei, não. Não é nada fácil chegar lá em cima.
Carey
riu, mordendo a isca.
— Difícil
porra nenhuma. Se você consegue, eu também consigo.
— Porra
nenhuma?
Ambos
deram um risinho frouxo.
— Prometo
que não vou te distrair. — Então ela teve uma ideia. — Se me
deixar subir, levo meus binóculos.
Parecia
que ela sempre estava pensando à frente.
***
Às
vezes, quando estava com Carey, as Cercanias pareciam mais amplas.
Os
eletrodomésticos carcomidos davam a impressão de ser apenas
monumentos distantes.
O
subúrbio parecia ainda mais remoto.
Naquela
noite, depois das dicas de Carey e do El Matador, eles conversaram
sobre as competições. Clay perguntou se ela conseguiria participar
de alguma corrida, algo além de treinos e páreos-teste. Carey
respondeu que McAndrew ainda não dissera nada, mas que sabia o que
estava fazendo. Se insistisse muito, seria pior para ela, acabaria
prejudicando o progresso feito até ali.
É
claro que, enquanto ela falava, sua cabeça permanecia pousada no
peito dele, ou no pescoço, o momento preferido de Clay no mundo. Em
Carey Novac, o garoto encontrara alguém que o conhecia, alguém que
era ele, em todos os aspectos que importavam — exceto um. Clay
sabia que, se pudesse, ela daria tudo para compartilhar com ele
também aquilo:
O
motivo pelo qual ele carregava o pregador.
Em
troca, ela abriria mão de sua vaga de aprendiz de joqueta, de sua
primeira vitória no pomposo Grupo Um ou até de uma vaga em uma
corrida de grande prestígio. Tenho certeza, inclusive, de que ela
abriria mão da chance de competir na corrida anual da cidade, ou na
que mais amava: a Cox Plate.
Mas
ela não podia fazer nada disso.
O
que ela podia fazer era definir, sem pensar duas vezes, a melhor
forma de se despedir dele. Por isso, bem baixinho, ela suplicou,
suave mas assertiva:
— Não
faz isso, Clay. Não vai, não me deixa... mas vai.
Se
estivesse em um dos épicos de Homero, seria a Carey Novac dos olhos
cintilantes, ou a Carey dos olhos preciosos. Ela fez questão de
deixar claro o tamanho da saudade que sentiria dele, mas que também
esperava — na verdade, exigia — que ele fosse fazer o que tinha
que ser feito.
Não
faz isso, Clay. Não vai, não me deixa... mas vai.
***
Lá
atrás, logo depois de ir embora, ela se deu conta.
Cruzando
a rua Archer, deu meia-volta.
— Ei,
qual é o seu nome?
O
garoto, lá na frente da varanda:
— Clay.
Silêncio.
— E
você? Não quer saber qual é o meu nome?
Ela
falava como se já o conhecesse desde sempre, e Clay se corrigiu, fez
a pergunta, e a menina andou até ele.
— Meu
nome é Carey — disse ela, e já estava se virando para ir embora
de novo quando Clay teve uma dúvida repentina.
— Ei,
como se soletra o seu nome?
Então
ela voltou correndo e pegou o prato.
Com
a ponta do dedo, escreveu cuidadosamente o nome entre as migalhas,
rindo ao perceber que era impossível decifrar a palavra, mas ambos
já sabiam que letras estavam ali, principalmente o C e o R.
Então
ela abriu um sorriso para ele, breve porém afável, atravessou a rua
e foi para casa.
***
Eles
permaneceram ali mais uns vinte minutos, em silêncio, assim como as
Cercanias que os envolviam.
Então
veio a pior parte de sempre:
Carey
Novac se afastou dele.
Sentou-se
na beira do colchão, mas, em vez de se levantar e ir embora, se
ajoelhou ao lado da cama, no lugar em que se detivera ao chegar, e
havia um pacote em suas mãos, embrulhado em jornal; então, bem
devagar, ela o colocou no peito dele. Nada mais foi dito.
Nada
de Olha só, trouxe um presente para você.
Ou
Toma.
Muito
menos um Muito obrigado da parte de Clay.
Ele
só abriu o pacote depois que a menina partiu, e o que havia ali
dentro o surpreendeu.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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