Subiram
sempre as pirogas ao mais amplo mar, continuavam em muita alegria e o
dia ainda não era, e nublava demasiado, os negros comentavam que
haveria tempestade. Ia haver tempestade e ainda não se avistava a
ilha central, o órgão vital onde o começo conservava seu sentido.
Via-se nada, apenas o dorso incansável do tremendo animal líquido.
O guerreiro branco espiava o céu e era certo que levantaria o vento
que os obrigaria a navegar em sobressalto. As pirogas gigantes eram
robustas, complexas, feitas de madeiras como ossos compondo um outro
animal. Suas carnes eram os próprios navegadores. E o vento soprou
quando talvez se visse a mata tão distante que ainda podia ser outra
coisa, nem que um bando a passar. Os negros vociferavam, era para
ali, repetiam, para ali. Atravessariam todos os ventos naquela
direcção para chegarem ao depois do quarto mar, como jurava o feio.
Eles confiavam. O feio prometera o mocambo para lá de uma água
grande a partir do canto da próxima ilha. Daquele canto para lá, um
pouco mais de mar, e haveria terra onde nenhum inimigo pusera o pé.
Desciam os imensos entrançados finos onde o vento batia. Procuravam
seguir na graça da maré e silenciavam. Quando alguém declarou que
era ilha, era de verdade ilha que havia adiante, Honra repetiu:
verdadeirissimamente.
Sorriu.
A bênção abaeté era ao longe e não se escondia.
E
o céu adensava sua escuridão, era quase manhã nenhuma, não era
permitida a manhã sob tão grave tempestade. Ardiam por dentro as
nuvens e a ilha era lá muito longe, para onde o céu mais ardia.
Honra pensava como estariam todos atarefados para o desafio. Pensava
como andaria Pé de Urutago nas copas à esperança inteira. E
comoveu.
Meu
povo que anseia pelo osso do relâmpago, o novo tempo sem inimigo,
com o corpo da Divindade entre nós.
Assim
entoou.
Os
negros perguntaram que razão havia naquele choro. Julgaram por medo.
O guerreiro branco respondeu:
nossa
Divindade haverá de abeirar numa tempestade. O clarão haverá de
descer sobre nossas ilhas e entregar o mistério de sua presença
para sempre. O meu povo abaeté suplica por Pé de Urutago, que tem o
ofício de tocar a genuína luz do relâmpago, seu osso puro, fugaz.
Sobre
o órgão vital, no canto para onde começava o quarto mar, onde se
erguia a mata de osso, o céu abriu o ovo da nuvem e o clarão
iluminou o mundo como nunca houvera notícia.
O
fogo desceu ao chão e talvez Pé de Urutago o tenha agarrado
finalmente. O esqueleto da mata pálida ardeu e das águas se pôde
ver bem como ergueu num corpo em chamas do tamanho de cem guerreiros
e caminhou. O corpo da Verdadeiríssima Divindade caminhou e era
ardendo, tomando a mata, aumentando seu ser, desimportado com as
chuvas ou com os ventos.
Honra
pensou:
a
nova era é fuga.
A
ilha crescia. Mais ardia. Todos os vocábulos pousariam diante
daquele clarão. Corpos todos se depositariam devolvendo seus nomes à
mercê da mordedura absoluta. Corpos todos daqueles que soam e de
todas as feras e bichos, das plantas e das coisas mortas, humildes
diante da decisão da Divindade.
Os
negros alardearam num susto. O feio levantou os braços e apontou
para adiante, muito adiante. Era lá o mocambo. Ali, era outro lugar.
E ele entoou:
navegarei
meu próprio corpo. Seguirei à ilha para encontrar meu povo que
haverá de também partir. É este o novo tempo.
E
os negros entoavam:
não
saltes, que é a morte. Não vás, que é a morte. Não sigas, à
ilha que é a morte.
O
feio pensou:
a
tocaia do medo.
Podia
apenas somar-se aos seus para sentir que sobreviveriam tanto quanto
soubessem aos desafios novos, ainda que se colocassem ideias péssimas
na gentileza que haviam maturado. Ideias que predavam seus dias em
favor de uma ilusão.
Um
tardio negro quis que Honra decidisse de outro modo, agarrando-o
quase numa súplica. Melhor seria que os acompanhasse, que guardasse
sua segurança no cimo da piroga. Mas o feio branco explicou:
meu
irmão caiu nestas águas. Eu vou procurar meu irmão.
Os
negros olharam o mar revolto e como o guerreiro branco navegou seu
próprio corpo. Era sem tradução que quisesse abeirar o incêndio,
buscando um irmão que diluíra na água e existia como absurda
esperança. Um irmão que talvez não fosse senão morto. Para Honra,
contudo, era adiado. Caído para esse abismo que o animal branco
fizera na ideia e que chamara de futuro. Desse abismo, o negro
haveria de ser resgatado. O mais imenso mar não o esconderia para
sempre.
Poderão
ter escutado como, entre o estrondo da tempestade, ondulando nas
violentas vagas, Honra chamava:
irmão,
sagrado Meio da Noite, onde estás. Nossos povos em toda a parte nos
pedem ajuda.
Navegou
imparável, imorrível, e sua pele perdeu as pinturas, os adornos,
largara as armas, era inteiro despido, tanto que podia ser o regresso
à intenção de criar sua vida. Podia ser que atendesse de novo à
pronúncia de seu nome como por primeira vez. Deitaria pé, depois
que verdadeirissimamente se escutasse: Honra. Ele seria. Navegava
como nascendo. E era sem medo e nenhum inimigo. Era por obstinada
vontade e por bênção.
Mais
a ilha abeirava. Maior o fogo, pé depois de pé, para cima das
aldeias. Os abaeté espalhavam nas pirogas e eram na nesga do areal.
Eram os abaeté todos preparados para irem embora. Honra podia ver.
Começava a ver e berrou, imaginando ou de verdade, vinte onças.
Navegaria incansável. Teria de regressar. Lembrava Pai Todo e
lembrava o medo e pensava que não se deixaria capturar no vocábulo
branco que lhe retirava o tempo em favor de um tempo que, por
definição, não há. Ele mais navegou e acreditou que chegaria. Nem
que para encantar junto com os outros, mordidos pela boca em fogo da
Divindade. Ele chegaria inteiramente abaeté. Verdadeirissimamente
abaeté. Lúcido e abnegado à hipótese de ser culpado, torto, por
desobedecer à medida de sua fúria. Mas, justamente assim, aprendera
a calma e a prioridade. E sua prioridade era afeiçoar apenas aos que
amava. Pensava em sua mãe, seu pai, seu irmão, Dois Amanhãs, toda
a comunidade. Pensava e amava. Depois, entoou:
que
há no meu corpo.
Era
tocado. Podia ser algum peixe, não seria insecto se os insectos não
podiam mergulhar. Era tocado e, por seu ombro, a mesma sensação. A
luz incidindo mais e ele via ninguém mas sentia. Pensou:
estou
múltiplo.
Jamais
voltaria a ser desacompanhado.
A
lucidez também era saber que haveria sempre companhia. Por seu
espírito, intuitivamente, os outros existiam e sagravam sua vida.
Chamou:
sagrado
Meio da Noite, onde estás. Irmão, meu irmão, onde estás. Chama
meu nome também. Agarra minha mão. Não largues nunca.
Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil
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