quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Capítulo vinte e quatro | A Divindade caminha


Subiram sempre as pirogas ao mais amplo mar, continuavam em muita alegria e o dia ainda não era, e nublava demasiado, os negros comentavam que haveria tempestade. Ia haver tempestade e ainda não se avistava a ilha central, o órgão vital onde o começo conservava seu sentido. Via-se nada, apenas o dorso incansável do tremendo animal líquido. O guerreiro branco espiava o céu e era certo que levantaria o vento que os obrigaria a navegar em sobressalto. As pirogas gigantes eram robustas, complexas, feitas de madeiras como ossos compondo um outro animal. Suas carnes eram os próprios navegadores. E o vento soprou quando talvez se visse a mata tão distante que ainda podia ser outra coisa, nem que um bando a passar. Os negros vociferavam, era para ali, repetiam, para ali. Atravessariam todos os ventos naquela direcção para chegarem ao depois do quarto mar, como jurava o feio. Eles confiavam. O feio prometera o mocambo para lá de uma água grande a partir do canto da próxima ilha. Daquele canto para lá, um pouco mais de mar, e haveria terra onde nenhum inimigo pusera o pé. Desciam os imensos entrançados finos onde o vento batia. Procuravam seguir na graça da maré e silenciavam. Quando alguém declarou que era ilha, era de verdade ilha que havia adiante, Honra repetiu:
verdadeirissimamente.
Sorriu. A bênção abaeté era ao longe e não se escondia.
E o céu adensava sua escuridão, era quase manhã nenhuma, não era permitida a manhã sob tão grave tempestade. Ardiam por dentro as nuvens e a ilha era lá muito longe, para onde o céu mais ardia. Honra pensava como estariam todos atarefados para o desafio. Pensava como andaria Pé de Urutago nas copas à esperança inteira. E comoveu.
Meu povo que anseia pelo osso do relâmpago, o novo tempo sem inimigo, com o corpo da Divindade entre nós.
Assim entoou.
Os negros perguntaram que razão havia naquele choro. Julgaram por medo. O guerreiro branco respondeu:
nossa Divindade haverá de abeirar numa tempestade. O clarão haverá de descer sobre nossas ilhas e entregar o mistério de sua presença para sempre. O meu povo abaeté suplica por Pé de Urutago, que tem o ofício de tocar a genuína luz do relâmpago, seu osso puro, fugaz.
Sobre o órgão vital, no canto para onde começava o quarto mar, onde se erguia a mata de osso, o céu abriu o ovo da nuvem e o clarão iluminou o mundo como nunca houvera notícia.
O fogo desceu ao chão e talvez Pé de Urutago o tenha agarrado finalmente. O esqueleto da mata pálida ardeu e das águas se pôde ver bem como ergueu num corpo em chamas do tamanho de cem guerreiros e caminhou. O corpo da Verdadeiríssima Divindade caminhou e era ardendo, tomando a mata, aumentando seu ser, desimportado com as chuvas ou com os ventos.
Honra pensou:
a nova era é fuga.
A ilha crescia. Mais ardia. Todos os vocábulos pousariam diante daquele clarão. Corpos todos se depositariam devolvendo seus nomes à mercê da mordedura absoluta. Corpos todos daqueles que soam e de todas as feras e bichos, das plantas e das coisas mortas, humildes diante da decisão da Divindade.
Os negros alardearam num susto. O feio levantou os braços e apontou para adiante, muito adiante. Era lá o mocambo. Ali, era outro lugar. E ele entoou:
navegarei meu próprio corpo. Seguirei à ilha para encontrar meu povo que haverá de também partir. É este o novo tempo.
E os negros entoavam:
não saltes, que é a morte. Não vás, que é a morte. Não sigas, à ilha que é a morte.
O feio pensou:
a tocaia do medo.
Podia apenas somar-se aos seus para sentir que sobreviveriam tanto quanto soubessem aos desafios novos, ainda que se colocassem ideias péssimas na gentileza que haviam maturado. Ideias que predavam seus dias em favor de uma ilusão.

Um tardio negro quis que Honra decidisse de outro modo, agarrando-o quase numa súplica. Melhor seria que os acompanhasse, que guardasse sua segurança no cimo da piroga. Mas o feio branco explicou:
meu irmão caiu nestas águas. Eu vou procurar meu irmão.
Os negros olharam o mar revolto e como o guerreiro branco navegou seu próprio corpo. Era sem tradução que quisesse abeirar o incêndio, buscando um irmão que diluíra na água e existia como absurda esperança. Um irmão que talvez não fosse senão morto. Para Honra, contudo, era adiado. Caído para esse abismo que o animal branco fizera na ideia e que chamara de futuro. Desse abismo, o negro haveria de ser resgatado. O mais imenso mar não o esconderia para sempre.
Poderão ter escutado como, entre o estrondo da tempestade, ondulando nas violentas vagas, Honra chamava:
irmão, sagrado Meio da Noite, onde estás. Nossos povos em toda a parte nos pedem ajuda.
Navegou imparável, imorrível, e sua pele perdeu as pinturas, os adornos, largara as armas, era inteiro despido, tanto que podia ser o regresso à intenção de criar sua vida. Podia ser que atendesse de novo à pronúncia de seu nome como por primeira vez. Deitaria pé, depois que verdadeirissimamente se escutasse: Honra. Ele seria. Navegava como nascendo. E era sem medo e nenhum inimigo. Era por obstinada vontade e por bênção.
Mais a ilha abeirava. Maior o fogo, pé depois de pé, para cima das aldeias. Os abaeté espalhavam nas pirogas e eram na nesga do areal. Eram os abaeté todos preparados para irem embora. Honra podia ver. Começava a ver e berrou, imaginando ou de verdade, vinte onças. Navegaria incansável. Teria de regressar. Lembrava Pai Todo e lembrava o medo e pensava que não se deixaria capturar no vocábulo branco que lhe retirava o tempo em favor de um tempo que, por definição, não há. Ele mais navegou e acreditou que chegaria. Nem que para encantar junto com os outros, mordidos pela boca em fogo da Divindade. Ele chegaria inteiramente abaeté. Verdadeirissimamente abaeté. Lúcido e abnegado à hipótese de ser culpado, torto, por desobedecer à medida de sua fúria. Mas, justamente assim, aprendera a calma e a prioridade. E sua prioridade era afeiçoar apenas aos que amava. Pensava em sua mãe, seu pai, seu irmão, Dois Amanhãs, toda a comunidade. Pensava e amava. Depois, entoou:
que há no meu corpo.
Era tocado. Podia ser algum peixe, não seria insecto se os insectos não podiam mergulhar. Era tocado e, por seu ombro, a mesma sensação. A luz incidindo mais e ele via ninguém mas sentia. Pensou:
estou múltiplo.
Jamais voltaria a ser desacompanhado.
A lucidez também era saber que haveria sempre companhia. Por seu espírito, intuitivamente, os outros existiam e sagravam sua vida. Chamou:
sagrado Meio da Noite, onde estás. Irmão, meu irmão, onde estás. Chama meu nome também. Agarra minha mão. Não largues nunca.

Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil

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