segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Capítulo vinte e dois | Trinta modos de matar o branco


Imitou, na água limpa, vezes sem conta, o arrependimento imprestável do animal branco, porque o mataria sempre. Mataria, desimportado com sua humilhação, seu desespero, súplica ou tristeza. Imitou o branco assustado, distraído, dormindo, imbecil, mais assustado ainda, ingénuo, doente, morto, acabado de morrer. Imitou o branco humilhado, culpado, condenado, seu espírito desfeito para os eternos, pedindo perdão, em pânico, morto, acabado de morrer. E ele vendo sobre sua morte. Então, começava a cantar. Entoava:
cobra amistosa, nosso sagrado igarapé, obrigado por tão grande ajuda.
O feio branco mais cantava e ficava ansioso, pedindo a Meio da Noite atenção e pressa.
O grito de ferro era sem cuspe. Muito o observaram e tornava-se simples entender que não cuspiria. Faltava sua flecha. Tomaram lanças e lâminas. Tomaram pedras e venenos. Matariam o branco sem piedade.
Se dormisse, não acordaria mais. Se olhasse para cima, seria cortado por baixo. Se nadasse, afogaria sem poder atonar de novo. Se comesse, entortaria de estômago pelo veneno. Se levantasse a cabeça, a partiria numa pedra voando. Se chamasse por outro, a boca aberta comeria a flecha. O branco não faria nada sem que resultasse na morte. Quando o avistassem na mata, cada gesto do branco seria o último e logo sobraria como uma carne atrapalhada no chão. Talvez nem o quisessem levar ao coto da figueira, talvez nem o abrigassem. Seria deixado sem dignidade para que a mata devorasse sem ritual nem memória.
Os feios subiam suas armas pelo corpo e debatiam como sairiam imediatamente para a caça. Honra não perderia tempo. Ele próprio se convencia de cheirar a fera inimiga. Era de nariz no ar, e Meio da Noite entoava nada, só obedecendo. O guerreiro branco sacudindo os braços, limpando da pele os insectos que nunca conseguia ver, e apressando mais ainda, numa fúria que lhe trazia uma estranha alegria. Mataria o animal. Tardaria nada a matar o animal.
Então, feios também de suas pinturas de pior guerra, feios também de suas piores fúrias, sentaram diante da Pedra Que Soa e a viam combinando suas forças. Honra entoava:
somos fortes como unos.
E Meio da Noite respondia:
somos juntos.
O guerreiro branco acrescentava:
mataremos o inimigo e faremos muita alegria, cantaremos, tocaremos as flautas, dançaremos até ao amanhecer. Passaremos o cachimbo e seremos celebrados pela comunidade.
O negro calava. Outra vez se ausentava de quase não estar ali. Honra precisava de o olhar duas vezes para estar certo de o ver. Voltava a entoar:
cortarei, pisarei, usarei o veneno em cima do corte, mesmo depois de pisar, e depois de apedrejar e de abrir, eu vou ainda envenenar e cortar mais por dentro para deitar logo metade das porcarias pelo chão, e talvez corte imediato a cabeça, e mesmo cortada, eu vou envenenar. Escorrerei por sua boca para que engula e morra mais ainda. Quero que esteja muitíssimo mais morto do que apenas de cabeça cortada. Sabes, irmão. Quero que esteja muitíssimo mais morto. Que seja o animal mais morto de que alguma vez se escutou. Rezará a sua lenda acerca do dobro da morte. Acerca do triplo da morte. Acerca do absoluto da morte. Se o lembrarmos, será apenas para garantir que nada nele vive. Nada. Que seja tão morto que ninguém o possa lembrar nem que queira.
E o negro respondeu:
por corte nenhum mudarás tua pele. Melhor para te cobrir a pele é o sentimento. Um sentimento melhor.
Honra levantou e caminhou um pouco sem rumo. Era em redor do tronco onde haviam sentado. Não queria dar sentido ao que o negro lhe ensinara e era tão habitual não descodificar o que conversavam. Era subitamente sem negro. Olhara. Estava ali ninguém. Pensou que alguma coisa covarde se colocava entre os dois de cada vez que as palavras se tornavam insuportáveis, tão absurdas ou verdadeiras, tão à revelia de sua vontade. E ele chamou:
sagrado Meio da Noite, onde estás.
E sentou. Meio da Noite respondeu:
queria saber o que o branco diria de teu rosto. Esse teu rosto igual. Queria saber o que haverá no seu interior perante um filho.
E Honra saltou alterado.
Filho nenhum. Filho nenhum.
Berrou.
O animal branco não teria conceito amoroso. Saberia nada sobre o cuidado entre pais e filhos, o orgulho e a ternura. Como chorariam em elogio mútuo. O guerreiro branco não queria ofender-se com o amigo mas era-lhe ofensiva a ideia de ir ao encontro de um pai. Prepotente, chefiou:
sigamos para o areal. Sigamos às pirogas e naveguemos.
Quis mover mas o corpo desobedeceu. Toda a sua pele poderia ser agora tocada pelos bichos que jamais conseguira ver, retido que ficou ali mesmamente sentado, atónito. Mais do que se coçar, arrepiou. Um medo imediato o percorreu. Um medo triste.
Naquele instante, Meio da Noite entoou:
vejo, irmão. Vejo a Pedra Que Soa. Não apenas o que sabes ver também. Vejo como se agiganta e quase retira o céu do lugar. Como existem no alto aves bizarras ou são corpos de animais que não conhecemos. São de pernas altas e balançam, como transparentes a brincar. Observam-nos sempre sorrindo. Para os encantados, todos os caminhos são para aquela salvação. E tomam sol. Estão frescos na brisa levantada ao cimo, muito mais altos do que as copas mais altas da mata. A Pedra Que Soa é para muito depois da altura da mata. Irmão, é tão grande que quase vejo mais nada, como se o mundo inteiro subisse do chão e fosse vertical. Eu vejo. Peço-te que não comovas. Existi só para te conhecer. Eu existi só para te conhecer. E assim é bom. É bom.
Honra respondeu:
suplico que não me deixes agora, que não desapareças na sombra mais convicta, que não morras, não me abandones, não deixes de me responder, não pares de entoar. Suplico, irmão negro, que sejas alguém. Logo agora que sairei pelo mar em torno de nossas ilhas à morte de meu inimigo. Suplico que feches os olhos e não vejas o que juras estar a ver. A Pedra Que Soa é à disposição dos deitados a encantar e tu não encantarás, estarás vivo e cheio de glória. Por favor. Promete-me que vomitas o jacaré, berras vinte onças, acendes a pele, mas não separas de mim, não separas de mim. Estaremos diante de nosso inimigo e voltaremos com seu sangue, amados por todos os nossos povos, como dizes. Eu, tu e nossos povos. Meio da Noite, onde estás.
Meio da Noite entoou:
aqui. Estou aqui.
Honra limpou o insecto que não viu em sua pele e mais suplicou:
toma minha mão. Fecha os olhos. Verás apenas quando estivermos à distância, encobertos pela mata, no outro lado, junto ao primeiro mar para navegar as pirogas à morte do branco. Anda. Não vamos comover. Vamos guerrear o pior que formos capazes.
Os feios correram como puderam e Honra apertou a mão do negro para ter a certeza de que o negro jamais sumiria e quis até que para toda a vida assim ficassem. Que nada lhe tirasse aquele toque de verdade, o tamanho do negro agarrado por si, em direcção a todas as coisas. Honra quis que o negro não pudesse apartar. Pensou:
não me morras, Meio da Noite. Sinto que és no meu lugar, confuso comigo, por teus pulmões em parte respiro, por teus lábios em parte sorrio, por tua paciência em parte medito. Minha inteligência, em parte, és tu. Minha coragem em parte és tu. Sinto que há necessidade nenhuma de sermos dois ou nenhuma possibilidade de prosseguirmos sozinhos. Meio da Noite, não escureças que te apagues. Não desilumines que te apagues. Não silencies que não te volte a escutar. Entoa, meu irmão. Entoa por mim, por teus povos que precisam de ser contados, precisam de ser amados na mais pura alegria de que formos capazes. Meu irmão não deixes minha mão.
E Honra entoou:
não deixes minha mão. Segura com toda a força e corre. Não deixes minha mão.
O negro talvez tivesse sorrido. Alguma coisa na ternura de Honra se tornava uma comunhão que fazia tudo ter valido a pena. Também o guerreiro branco, sem maturidade para o entender logo então, pressentia que jamais se perderiam por completo. Aquele sofrimento valeria toda a pena.

Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil

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