domingo, 12 de novembro de 2023

O soldado adormecido

Muitos alegam que não conseguem ler Os sertões (1902), de Euclides da Cunha (1866-1909), por causa de seu tamanho volumoso e de seu estilo aparentemente impenetrável, mas o leitor que seguir este conselho infeliz perderá a seguinte cena — apresentada somente vinte páginas após o início da primeira parte, intitulada “A Terra”:

Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um canhoneio frouxo de tiros espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas se dispunham circulando um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros virentes viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes, davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação franzina.
O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela — braços longamente abertos, face volvida para os céus — um soldado descansava.
Descansava... havia três meses.
Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da mannlicher estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, a vala comum de menos de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela última vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixara-o ali há três meses — braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes...
E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranquilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme — o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria — lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares.
Os cavalos mortos naquele mesmo dia, semelhavam espécimes empalhados, de museus. O pescoço apenas mais alongado e fino, as pernas ressequidas e o arcabouço engelhado e duro.

O capítulo chama-se “Higrômetros singulares” e é sobre como o clima dos sertões da Bahia — palco onde acontece a famosa campanha da guerra contra o povoado de Canudos, razão de todo o livro — é tão estranho que, de dia, é de um calor insuportável para quem está acostumado com a temperatura amena do sudeste do Brasil, e, de noite, é de um frio enregelante para quem esperava alguma coerência naquele ambiente. Mas este não é caso: o clima dos sertões é tão bizarro que permite essa ambiguidade moral espelhada no corpo do pobre soldado morto, caído provavelmente durante a expedição fracassada do coronel Moreira César, ocorrida em julho de 1897 — um corpo que, apesar de destituído de vida, ainda assim serve como instrumento para o estudioso analisar minuciosamente as metamorfoses estranhas do ambiente que ali reina.
O estudioso, no caso, é ninguém menos que Euclides da Cunha, um jovem de 31 anos que, como correspondente do jornal republicano O Estado de S. Paulo, estava naquele lugar inóspito para cobrir a quarta expedição feita pelo Exército brasileiro contra o povoado monarquista de Canudos, liderado pelo anacoreta Antônio Conselheiro. A queda definitiva do “arraial maldito” aconteceria somente no dia 3 de outubro de 1897, quando enfim a cabeça de Conselheiro seria decepada para mostrar à sociedade nacional que os inimigos da República não tinham perdão — mas Euclides não estava lá no dia para testemunhar o evento, já que apresentava sintomas de febre e de hemoptise e por isso teve de ir embora. Recolhido na fazenda de seu pai, Manuel Rodrigues, ele começava a rememorar o que tinha observado na visita e pouco a pouco percebia que algo estava mudando em seus ideais de defensor da República brasileira. O que tinha visto não era só um combate do progresso técnico contra o primitivismo religioso, como pensavam muitos de seus contemporâneos, tão republicanos quanto Euclides. O que viu foi a própria natureza da realidade tal como ela se apresenta a cada um de nós nesses momentos cruciais em que somos obrigados a aceitar ou não se aprendemos a lidar com sua indiferença.
Como mostrar essa revelação ao leitor comum? O episódio do instrumento singular que Euclides faz questão de inserir logo no início do seu “livro vingador” mostra justamente sua preocupação por tal abordagem. Apesar de marcante para quem lê Os sertões — o livro que seria reelaborado na memória do jovem correspondente e publicado cinco anos após a campanha sangrenta de Canudos —, é de notar que não há nenhuma menção ao soldado morto nas páginas do Diário de uma expedição ou da Caderneta de campo, escritos que Euclides redigiu enquanto estava no centro do redemoinho e que seriam publicados após sua morte. Como ele teria encontrado este aparelho singular? Será que tal fato realmente existiu — uma vez que faz parte de um livro que pretende contar os fatos como aconteceram, um livro que conta uma narrativa para provar ao seu público que esta guerra tinha sido um verdadeiro massacre?
De acordo com Rodrigo Gurgel, em Esquecidos e superestimados, o surgimento do soldado morto pode ter outras fontes — não necessariamente ligadas à realidade. O episódio teria um caráter de “fantasia”, não no sentido de algo que foi elaborado completamente pela imaginação, mas como algo que reelabora o fato real em função de um modelo literário, transcendendo o mero evento para a possibilidade de que o leitor também imagine que há outros fatores que estão em jogo na descrição da campanha de Canudos, muito além da busca por uma verdade factual que reduza o aspecto trágico da História a ser narrada. A suposição de Gurgel é a de que o modelo do episódio não foi algo que precisava ter sido vivenciado por Euclides no lugar descrito, mas sim na própria literatura — no caso, o famoso poema de Rimbaud, “O adormecido do vale”. Se lermos seus versos com atenção, é espantoso perceber as semelhanças:

Era um recanto verde onde um regato canta
Doidamente a enredar nas ervas seus pendões
De prata; e onde o sol, no monte que suplanta,
Brilha: um pequeno vale a espumejar clarões.

Jovem soldado, boca aberta, fronte ao vento,
E a refrescar a nuca entre os agriões azuis,
Dorme; estendido sobre as relvas, ao relento,
Branco em seu leito verde onde chovia luz.

Os pés nos juncos, dorme. E sorri no abandono,
De uma criança que risse, enferma, no seu sono:
Tem frio, ó Natureza — aquece-o no teu leito.

Os perfumes não mais lhe fremem as narinas;
Dorme ao sol, suas mãos a repousar supinas
Sobre o corpo. E tem dois furos rubros no peito.

Gurgel faz suposições insólitas sobre a possibilidade de Euclides ter conhecido ou não as poesias de Rimbaud enquanto escrevia Os sertões, todas baseadas nos fatos apresentados por Frederic Amory em Euclides da Cunha: uma odisseia nos trópicos, sem dúvida a biografia mais completa do escritor. É bem possível que Euclides tenha conhecido o soneto do poeta francês; à época da redação de seu livro, ele viveu em São José do Rio Pardo entre 1898 e 1901 — e teve intensa convivência com o intendente da pequena cidade, Francisco Escobar, um jovem culto que conhecia a poesia francesa como poucos, graças a sua vasta biblioteca de autodidata. Como Amory afirma que Euclides conhecia o trabalho de Maurice Rollinat, um poeta contemporâneo de Rimbaud, o que lhe faltava para também ter lido os poemas do rebelde Arthur? A pergunta de Gurgel é importante para a exatidão dos estudos literários, mas é fundamental que o leitor, fascinado com o episódio do soldado morto, se pergunte: até que ponto tudo o que é relatado em Os sertões aconteceu de verdade? E mais: como isso afeta a importância dessa obra na nossa sensibilidade nacional?
[…]

Martim Vasques da Cunha, in A poeira da glória

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