Muitos
alegam que não conseguem ler Os sertões (1902), de Euclides
da Cunha (1866-1909), por causa de seu tamanho volumoso e de seu
estilo aparentemente impenetrável, mas o leitor que seguir este
conselho infeliz perderá a seguinte cena — apresentada somente
vinte páginas após o início da primeira parte, intitulada “A
Terra”:
Percorrendo
certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à
monotonia de um canhoneio frouxo de tiros espaçados e soturnos,
encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as
colinas se dispunham circulando um vale único. Pequenos arbustos,
icozeiros virentes viçando em tufos intermeados de palmatórias
de flores rutilantes, davam ao lugar a aparência exata de algum
velho jardim em abandono. Ao lado uma árvore única, uma quixabeira
alta, sobranceando a vegetação franzina.
O
sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por
ela — braços longamente abertos, face volvida para os céus — um
soldado descansava.
Descansava...
havia três meses.
Morrera
no assalto de 18 de julho. A coronha da mannlicher estrondada,
o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam
que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra,
certo, derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte,
manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os
mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, a vala comum
de menos de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela
última vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino
que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão:
livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e
deixara-o ali há três meses — braços largamente abertos, rosto
voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros,
para as estrelas fulgurantes...
E
estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços
fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador
cansado, retemperando-se em tranquilo sono, à sombra daquela árvore
benfazeja. Nem um verme — o mais vulgar dos trágicos analistas da
matéria — lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida
sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um
aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema
dos ares.
Os
cavalos mortos naquele mesmo dia, semelhavam espécimes empalhados,
de museus. O pescoço apenas mais alongado e fino, as pernas
ressequidas e o arcabouço engelhado e duro.
O
capítulo chama-se “Higrômetros singulares” e é sobre como o
clima dos sertões da Bahia — palco onde acontece a famosa campanha
da guerra contra o povoado de Canudos, razão de todo o livro — é
tão estranho que, de dia, é de um calor insuportável para quem
está acostumado com a temperatura amena do sudeste do Brasil, e, de
noite, é de um frio enregelante para quem esperava alguma coerência
naquele ambiente. Mas este não é caso: o clima dos sertões é tão
bizarro que permite essa ambiguidade moral espelhada no corpo do
pobre soldado morto, caído provavelmente durante a expedição
fracassada do coronel Moreira César, ocorrida em julho de 1897 —
um corpo que, apesar de destituído de vida, ainda assim serve como
instrumento para o estudioso analisar minuciosamente as metamorfoses
estranhas do ambiente que ali reina.
O
estudioso, no caso, é ninguém menos que Euclides da Cunha, um jovem
de 31 anos que, como correspondente do jornal republicano O Estado
de S. Paulo, estava naquele lugar inóspito para cobrir a quarta
expedição feita pelo Exército brasileiro contra o povoado
monarquista de Canudos, liderado pelo anacoreta Antônio Conselheiro.
A queda definitiva do “arraial maldito” aconteceria somente no
dia 3 de outubro de 1897, quando enfim a cabeça de Conselheiro seria
decepada para mostrar à sociedade nacional que os inimigos da
República não tinham perdão — mas Euclides não estava lá no
dia para testemunhar o evento, já que apresentava sintomas de febre
e de hemoptise e por isso teve de ir embora. Recolhido na fazenda de
seu pai, Manuel Rodrigues, ele começava a rememorar o que tinha
observado na visita e pouco a pouco percebia que algo estava mudando
em seus ideais de defensor da República brasileira. O que tinha
visto não era só um combate do progresso técnico contra o
primitivismo religioso, como pensavam muitos de seus contemporâneos,
tão republicanos quanto Euclides. O que viu foi a própria natureza
da realidade tal como ela se apresenta a cada um de nós nesses
momentos cruciais em que somos obrigados a aceitar ou não se
aprendemos a lidar com sua indiferença.
Como
mostrar essa revelação ao leitor comum? O episódio do instrumento
singular que Euclides faz questão de inserir logo no início do seu
“livro vingador” mostra justamente sua preocupação por tal
abordagem. Apesar de marcante para quem lê Os sertões — o
livro que seria reelaborado na memória do jovem correspondente e
publicado cinco anos após a campanha sangrenta de Canudos —, é de
notar que não há nenhuma menção ao soldado morto nas páginas do
Diário de uma expedição ou da Caderneta de campo,
escritos que Euclides redigiu enquanto estava no centro do redemoinho
e que seriam publicados após sua morte. Como ele teria encontrado
este aparelho singular? Será que tal fato realmente existiu — uma
vez que faz parte de um livro que pretende contar os fatos como
aconteceram, um livro que conta uma narrativa para provar ao seu
público que esta guerra tinha sido um verdadeiro massacre?
De
acordo com Rodrigo Gurgel, em Esquecidos e superestimados, o
surgimento do soldado morto pode ter outras fontes — não
necessariamente ligadas à realidade. O episódio teria um caráter
de “fantasia”, não no sentido de algo que foi elaborado
completamente pela imaginação, mas como algo que reelabora o fato
real em função de um modelo literário, transcendendo o mero evento
para a possibilidade de que o leitor também imagine que há outros
fatores que estão em jogo na descrição da campanha de Canudos,
muito além da busca por uma verdade factual que reduza o aspecto
trágico da História a ser narrada. A suposição de Gurgel é a de
que o modelo do episódio não foi algo que precisava ter sido
vivenciado por Euclides no lugar descrito, mas sim na própria
literatura — no caso, o famoso poema de Rimbaud, “O adormecido do
vale”. Se lermos seus versos com atenção, é espantoso perceber
as semelhanças:
Era
um recanto verde onde um regato canta
Doidamente
a enredar nas ervas seus pendões
De
prata; e onde o sol, no monte que suplanta,
Brilha:
um pequeno vale a espumejar clarões.
Jovem
soldado, boca aberta, fronte ao vento,
E
a refrescar a nuca entre os agriões azuis,
Dorme;
estendido sobre as relvas, ao relento,
Branco
em seu leito verde onde chovia luz.
Os
pés nos juncos, dorme. E sorri no abandono,
De
uma criança que risse, enferma, no seu sono:
Tem
frio, ó Natureza — aquece-o no teu leito.
Os
perfumes não mais lhe fremem as narinas;
Dorme
ao sol, suas mãos a repousar supinas
Sobre
o corpo. E tem dois furos rubros no peito.
Gurgel
faz suposições insólitas sobre a possibilidade de Euclides ter
conhecido ou não as poesias de Rimbaud enquanto escrevia Os
sertões, todas baseadas nos fatos apresentados por Frederic
Amory em Euclides da Cunha: uma odisseia nos trópicos, sem
dúvida a biografia mais completa do escritor. É bem possível que
Euclides tenha conhecido o soneto do poeta francês; à época da
redação de seu livro, ele viveu em São José do Rio Pardo entre
1898 e 1901 — e teve intensa convivência com o intendente da
pequena cidade, Francisco Escobar, um jovem culto que conhecia a
poesia francesa como poucos, graças a sua vasta biblioteca de
autodidata. Como Amory afirma que Euclides conhecia o trabalho de
Maurice Rollinat, um poeta contemporâneo de Rimbaud, o que lhe
faltava para também ter lido os poemas do rebelde Arthur? A pergunta
de Gurgel é importante para a exatidão dos estudos literários, mas
é fundamental que o leitor, fascinado com o episódio do soldado
morto, se pergunte: até que ponto tudo o que é relatado em Os
sertões aconteceu de verdade? E mais: como isso afeta a
importância dessa obra na nossa sensibilidade nacional?
[…]
Martim Vasques da Cunha, in A poeira da glória
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