“Há
quanto tempo!”
O
e-mail começava assim.
O
remetente era Satoru Miyawaki, um amigo de infância que tinha se
mudado para longe quando ainda eram pequenos. Ele se mudou várias
outras vezes, mas os dois sempre mantiveram contato, e assim a
amizade perdurava, mesmo agora, com mais de trinta anos. Podiam
passar anos sem se ver, mas quando se encontravam a conversa fluía
como se tivessem se visto no dia anterior. Satoru era desse tipo de
amigo.
“Desculpa
pedir assim em cima da hora, mas será que você podia adotar meu
gato?”
Segundo
a mensagem, aquele gato era seu xodó, mas, por questões
incontornáveis, Satoru não ia poder ficar com ele e estava
procurando alguém que o adotasse.
Não
havia explicação sobre os tais motivos incontornáveis. “Se você
achar que pode ficar com ele”, continuava o texto do e-mail,
“levo-o aí para apresentar vocês dois.”
Vinham
duas fotos anexadas, de um gato branco com duas manchinhas escuras na
cabeça. Kosuke soltou uma exclamação de espanto.
— É
igualzinho ao Hachi!
O
gato da foto era muito parecido com aquele que tinham resgatado.
Kosuke
desceu até a segunda foto: um close do rabo torto em forma de 7. Ele
se lembrou de ter ouvido em algum lugar que gatos com rabo torto dão
sorte.
Quem
foi que disse isso? Refletiu por um instante, para logo em seguida
deixar escapar um suspiro. A esposa. A esposa, que fora embora para a
casa dos pais e que ele não sabia quando voltaria de lá.
A
cada dia ele estava mais convencido de que ela nunca voltaria.
Kosuke
se perguntou, em vão, se teria sido diferente se os dois tivessem um
gato assim, de rabo torto.
Com
um gato daqueles zanzando pela casa, recolhendo com o gancho do rabo
as pequenas felicidades do dia a dia, quem sabe eles não
conseguissem levar uma vida alegre, mesmo sem filhos?
Talvez
eu possa ficar com ele, pensou. O gato era bonitinho, parecia
Hachi, de rabo torto. Além do mais, seria bom ver Satoru.
Kosuke
enviou uma mensagem à esposa, contando que um amigo tinha lhe pedido
que adotasse seu gato e perguntando o que ela achava. A resposta:
“Faça como quiser”. Considerando que até então todas as
mensagens dele tinham sido sumariamente ignoradas, a grosseria até
que era um bom sinal.
A
esposa adorava gatos. Se ele adotasse o de Satoru, talvez conseguisse
atraí-la com um convite para vir conhecê-lo. Se chorasse as
pitangas dizendo que não sabia cuidar direito do novo bichano, era
capaz até que ela voltasse, não por ele, mas por compaixão ao
animalzinho.
Ih,
mas meu pai não gosta de gatos…
Ao
perceber que estava se preocupando com o humor do pai, Kosuke deu um
resmungo de irritação.
É
por causa desse tipo de coisa que nem minha esposa me quer. Agora o
dono do estúdio sou eu. Não tenho que ficar esquentando a cabeça
com o que meu pai acha ou deixa de achar.
A
revolta contra o pai brotou em seu peito enquanto ele pensava isso.
Incitado pelo sentimento, Kosuke Sawada respondeu que sim, podia
ficar com o gato do amigo.
Satoru
Miyawaki veio visitá-lo já na semana seguinte, no dia em que o
estúdio não abria. Chegou em uma van prata, trazendo consigo seu
tão adorado gato.
Ao
ouvir o ruído do motor, Kosuke saiu à rua e viu Satoru entrando com
a van no estacionamento do estúdio.
— Kosuke!
Há quanto tempo! — Satoru largou o volante e ficou acenando pela
janela aberta.
— Estacione
logo de uma vez! — apressou Kosuke, sorrindo.
Fazia
uns três anos que não se viam, mas Satoru continuava bem-humorado
como sempre. Não mudara nada desde os tempos de criança.
— Você
podia ter parado na primeira vaga. Nessa aí é ruim de manobrar.
Havia
três vagas diante do estúdio, e Satoru estava estacionando na mais
próxima da entrada. Ali, plantas e objetos ficavam no caminho, então
os clientes geralmente preferiam as outras. O carro dos moradores
ficava nos fundos da casa, em uma vaga não asfaltada.
— É
que aí vai atrapalhar se chegar algum cliente…
— Hoje
não abrimos, esqueceu?
Naquele
estúdio fotográfico, que Kosuke herdara do pai, a folga semanal era
às quartas-feiras. Kosuke havia proposto se encontrarem em um sábado
ou domingo, pois Satoru trabalhava em uma empresa privada, mas ele
fez questão de vir no dia de folga de Kosuke. Disse que já estava
pedindo um favor e não queria dar mais trabalho.
— Ah,
é verdade! — disse Satoru, descendo da van e pegando a caixa de
transporte no banco de trás.
— Nana
está aí dentro?
— Está!
Você viu as fotos? Ele se chama Nana por causa do rabo em forma de
7. Mandei bem nesse nome, hein?
— Não
sei se eu diria que “mandou bem”… Você tem esse gosto por
nomes literais, desde Hachi.
Kosuke
o convidou a entrar e quis ver como era Nana, mas o gato não queria
sair da caixa por nada. Só chiava lá dentro, mal-humorado. Espiando
o interior da caixa, Kosuke viu apenas o traseiro branco e o rabo
preto e torto.
— Ué,
o que foi que deu em você, Nana? Naaana? — Agoniado, Satoru tentou
por algum tempo convencer o gato a sair, mas não adiantou. —
Desculpa, ele deve estar nervoso em uma casa desconhecida… Daqui a
pouco se acalma.
Os
dois resolveram deixar a caixa ali, com a portinhola aberta, enquanto
colocavam o papo em dia.
— O
que quer beber? Um chá ou café, já que está dirigindo?
— Pode
ser um café.
Kosuke
serviu duas xícaras. Satoru pegou a sua e perguntou, casualmente:
— E
sua esposa?
Por
um segundo, Kosuke pensou em disfarçar, mas nenhuma desculpa lhe
veio à mente.
— Voltou
pra a casa dos pais.
— Ah…
Satoru
ficou com a expressão culpada de quem não queria ter cutucado uma
ferida.
— Mas
então… Tudo bem você decidir sozinho sobre Nana? Ela não vai
achar ruim quando voltar?
— Pelo
contrário, é capaz de ela voltar só por causa do gato, se eu ficar
com ele.
— Hum,
mas cada um tem suas preferências, em se tratando de gatos…
— Eu
encaminhei as fotos que você me mandou, e ela respondeu assim: “Faça
como quiser”.
— Isso
quer dizer que ela gostou?
— Essa
foi a única vez que ela me respondeu desde que foi embora.
Kosuke
tinha dito em tom de brincadeira que era capaz que sua esposa
voltasse por causa do gato, mas na verdade estava mesmo contando com
isso.
— Se
ela voltar, sei que não vai expulsar o gato. Ela nunca faria isso. E
se ela não voltar, eu crio Nana sozinho. De um jeito ou de outro,
não tem problema.
Satoru
pareceu se conformar com a resposta. Agora era a vez de Kosuke fazer
perguntas.
— Mas,
deixando isso de lado, me diga: por que você não pode mais ficar
com ele?
— Ah,
bom… — Satoru deu um sorriso atrapalhado e coçou a cabeça. —
É que aconteceram umas coisas, e não vai dar mais.
De
repente, Kosuke entendeu. Bem que ele tinha achado estranho ao saber
que Satoru viria visitá-lo no meio da semana.
— Demitiram
você?
— É,
bem… A questão é que não vou mais poder ficar com Nana.
A
resposta foi ambígua, mas Kosuke não quis pressioná-lo.
— Enfim,
aí preciso arranjar uma casa pra ele, então resolvi pedir aos
amigos mais próximos.
— Entendi…
Que chato!
A
vontade de ficar com o gato aumentou. Era uma boa ação, além de
justo para Satoru.
— E
você, como está? Digo… vai se sair bem disso?
— Vou
sim, obrigado. Se eu conseguir resolver as coisas para Nana, vai
ficar tudo bem.
Pelo
jeito, era melhor parar por ali. Não parecia ser o caso de insistir
e perguntar se ele precisava de alguma coisa.
— Nossa,
mas eu levei um susto quando vi as fotos! Ele é igualzinho ao Hachi!
— Ao
vivo parece mais ainda… — disse Satoru, espiando a caixa às suas
costas. Nana não dava sinal de que ia sair de lá. — Também levei
um susto quando o vi pela primeira vez! Por um instante, achei que
fosse Hachi.
O
jeito como ele falou, com uma risada de quem diz “é claro que não
podia ser ele”, doeu um pouco em Kosuke.
— No
fim, o que aconteceu com Hachi?
— Ele
morreu quando eu estava no colégio. Meu tio que o criava me avisou,
disse que foi no trânsito.
Devia
ter sido uma notícia bem dolorosa para Satoru. Onde será que ele
estava quando soube?
— Você
podia ter me contado…
Como
um amigo que conhecia Hachi, Kosuke poderia pelo menos ter
acompanhado Satoru em seu luto. Devia ter chorado sozinho, pensando
no gato.
— Desculpa,
eu fiquei tão triste que não consegui pensar em mais nada…
— Não
precisa pedir desculpas por isso, poxa! — Kosuke ameaçou empurrar
o amigo, que se esquivou brincando.
— O
tempo passa muito rápido, não acha? Parece que foi ontem que a
gente encontrou Hachi na rua! Você lembra?
Se
eu lembro?
— Como
é que eu ia esquecer uma coisa dessas? — perguntou Kosuke,
sorrindo.
Satoru
também sorriu, meio envergonhado.
[…]
Hiro Arikawa, in Relatos de um gato viajante
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