quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Piloto de Guerra | XXIII


Mudei bastante! Esses dias, comandante Alias, eu estava amargo. Esses dias, enquanto a invasão blindada não encontrava absolutamente nada, as missões sacrificadas custaram ao Grupo 2/33 dezessete de suas vinte e três tripulações. Nós aceitamos, e o senhor, primeiro que todos, bancar os mortos pelas necessidades da figuração. Ah! Comandante Alias, eu estava amargo, estava enganado!
Nós nos agarrávamos, o senhor em primeiro lugar, ao pé da letra de um dever cujo espírito se obscurecera. O senhor, primeiro, nos impelia por instinto, não a vencer, era impossível, mas a devir. O senhor sabia, como nós, que as informações adquiridas não seriam transmitidas a ninguém. Mas o senhor guardava ritos cujo poder estava escondido. O senhor nos interrogava gravemente, como se nossas respostas adiantassem de alguma coisa nos parques de blindados, nas lanchas, caminhões, estações, nos trens nas estações. O senhor até me pareceria de uma revoltante má-fé:
Sim, sim! Observamos muito bem do posto de piloto.
No entanto, o senhor tinha razão, comandante Alias.
Essa multidão que eu sobrevoo, levei-a em conta sobre Arras. Eu só sou ligado àqueles a quem doo. Só entendo a quem desposo. Só existo enquanto me saciam as fontes das minhas raízes. Sou dessa multidão. Essa multidão me pertence. A quinhentos e trinta quilômetros por hora e duzentos metros de altitude, agora que desembarquei sob minha nuvem, eu a desposo à noite como um pastor que, numa olhada, recenseia, ajunta e enlaça o rebanho. Essa multidão não é mais uma multidão: é um povo. Como eu poderia perder a esperança?
Apesar do apodrecimento da derrota, trago em mim, como ao fim de um sacramento, esse grave e durável júbilo. Estou imerso na incoerência, todavia, estou como um vencedor. Qual é o camarada de volta de uma missão que não traz esse vencedor em si? O capitão Pénicot me contou seu voo desta manhã: “Quando me parecia que uma das armas automáticas estava atirando muito de perto, eu bifurcava bem em cima dela, a toda a velocidade, rente ao chão, e largava uma rajada de metralhadora que apagava na hora aquela luz avermelhada, como um sopro à chama de uma vela. Um décimo de segundo depois eu passava feito turbilhão sobre a equipe… Era como se a arma tivesse explodido! Eu encontrava a equipe de servidores espalhada, revirada pela fuga. Tinha a impressão de estar jogando boliche”. Pénicot ria, Pénicot ria magnificamente. Pénicot, capitão vencedor!
Sei que a missão terá transfigurado até esse Gavoille artilheiro que, preso à noite na basílica erguida por oitenta projéteis de guerra, passou, como num casamento de soldados, sob a abóbada das espadas.

Pode pegar no noventa e quatro.
Dutertre acaba de se localizar sobre o Sena. Eu baixei para cem metros. A quinhentos e trinta quilômetros por hora, o solo carrega em nossa direção grandes retângulos de alfafa ou de trigo e de florestas triangulares. Sinto um prazer físico estranho ao observar esse desmoronamento de vidros, que divide incansavelmente minha proa. O Sena surge para mim. Quando o atravesso, em oblíquo, ele escapa como que rodopiando sobre si mesmo. O movimento me dá o mesmo prazer do toque suave de uma foice. Estou bem instalado. Sou patrão a bordo. Os reservatórios aguentam. Vou ganhar um trago de Pénicot, no pôquer de ás, depois vou bater Lacordaire no xadrez. É assim que eu sou, quando sou vencedor.
Capitão… Estão atirando… Estamos em zona proibida…
É ele quem calcula a navegação. Eu estou isento de qualquer recriminação.
Estão atirando muito?
Atiram como podem… Damos meia-volta?
Ah, não…
O tom é blasé. Nós conhecemos o dilúvio. O tiro antiaéreo para nós não passa de uma chuva de primavera.
Dutertre… sabe… é idiota deixar-se abater em casa!
Não abateremos nada… isso vai exercitá-los.
Dutertre está amargo.
Eu não estou amargo. Estou feliz. Gostaria de falar aos homens da minha região.
Hã… Sim, atiram como…
Olha, está vivo esse aí! Observo que meu artilheiro nunca manifestou espontaneamente sua existência. Ele dirigiu toda a aventura sem sentir necessidade de se comunicar. A menos que tenha sido ele a pronunciar “Ai ai ai” ao tiro mais forte do canhão. De todo modo, não foi uma abundância de confidências.
Mas se trata aqui de sua especialidade: a metralhadora. Quando se trata da especialidade, não dá mais para deter os especialistas.

Não consigo deixar de opor esses dois universos. O universo do avião e o do solo. Acabo de levar Dutertre e meu artilheiro para além dos limites permitidos. Vimos a França queimar em chamas. Vimos luzir o mar. Envelhecemos em grande altitude. Nós nos debruçamos sobre uma terra longínqua, como sobre vitrines de um museu. Brincamos ao sol com o rastro dos caças inimigos. Depois, descemos novamente. Nós somos jogados no incêndio. Sacrificamos tudo. E então, aprendemos mais sobre nós mesmos do que aprenderíamos em dez anos de meditação. Saímos enfim do retiro de dez anos…
E naquela estrada, que sobrevoávamos para atingir o céu de Arras, a caravana, quando a encontrarmos, talvez tenha progredido, no máximo quinhentos metros.
O tempo que eles levarem para empurrar um carro quebrado até o buraco, para trocar o pneu, que tamborilarem imóveis no volante, para deixar um atalho liquidar seus próprios destroços, teremos voltado à escala.

Nós pulamos por cima da derrota toda. Somos semelhantes àqueles peregrinos que, embora sofram, o deserto não os atormenta, porque já habitam de coração a cidade santa.
A noite que chega estacionará essa multidão amontoada em seu estábulo de infortúnio. O rebanho se amontoa. Por que ele gritaria? Mas podemos correr para os camaradas, e me parece que nos apressamos para uma festa. Assim, uma simples cabana iluminada ao longe torna a mais rude das noites de inverno uma noite de Natal. Lá, aonde vamos, seremos acolhidos. Lá, aonde vamos, comungaremos o pão do jantar.
Basta, por hoje, de aventura, estou feliz e cansado. Largarei com os mecânicos o avião enriquecido de buracos. Vou me despir de minhas pesadas vestes de voo e, como é tarde demais para apostar um trago contra Pénicot, vou simplesmente me sentar para o jantar entre os camaradas…
Estamos atrasados. Os camaradas que estão atrasados não voltam mais. Estão atrasados? Tarde demais. Azar deles! A noite os joga na eternidade. Na hora do jantar, o Grupo conta seus mortos.
Os desaparecidos embelezam-se na lembrança. Nós os vestimos para sempre com seu mais claro sorriso. Renunciaremos a essa vantagem. Surgiremos em fraude, à maneira de anjos maus e caçadores clandestinos. O comandante não morderá seu bocado de pão. Ele nos olhará. Talvez diga: “Ah! Aí estão vocês…”. Os camaradas se calarão. Apenas nos observarão.
Eu tinha pouca estima, outrora, pelos adultos. Estava errado. Jamais envelhecemos. Comandante Alias! Os homens são puros também na hora do retorno: “Aí está você, que é dos nossos…”. E o pudor faz o silêncio.
Comandante Alias, comandante Alias… Essa comunidade entre vocês, eu a experimentei como um fogo para o cego. O cego se senta e estende as mãos, ele não sabe de onde lhe vem o prazer. De nossas missões, voltamos prontos a uma recompensa de gosto desconhecido, que é simplesmente o amor.
Não reconhecemos nisso o amor. O amor no qual normalmente pensamos é de um patético mais tumultuoso. Mas se trata, aqui, do verdadeiro amor: uma rede de relações que nos faz devir.

Antoine de Sain-Exupéry, in Piloto de Guerra

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