quinta-feira, 7 de setembro de 2023

O que é arte? | Capítulo XV

A rainha Elisabeth assinando a sentença de morte de Mary Stuart (1879), de Sándor Liezen-Mayer

A arte, em nossa sociedade, tornou-se tão pervertida que não somente a arte ruim veio a ser considerada boa, mas até mesmo a noção do que é arte se perdeu. Desse modo, para falar de arte na nossa sociedade, é preciso, antes de tudo, distinguir a arte verdadeira de falsificações.
Um sinal irrefutável que distingue a arte verdadeira da falsificada é o contágio. Se um homem, sem nenhum esforço de sua parte e sem mudança na sua situação, após ler, ouvir ou ver uma obra de outro homem, experimentar um estado de espírito que o une a esse homem e a outros que percebem o objeto de arte da mesma forma que ele, então o objeto que evoca tal estado é um objeto de arte. Por mais poético, realista, notável ou divertido que um objeto seja, não será um objeto de arte a menos que evoque em alguém aquele sentimento, totalmente diferente de qualquer outro, de felicidade e de união espiritual com outro (o autor) e com outros (ouvintes ou espectadores) que percebem a mesma obra artística.
É verdade que esse é um sinal externo, e que aqueles que esqueceram o efeito produzido por arte genuína e que esperam dela algo bem diferente — os quais constituem a vasta maioria de nossa sociedade — podem pensar que a sensação de diversão e certa excitação que experimentam com relação a falsificações artísticas seja o sentimento estético. Embora essas pessoas não possam ser persuadidas — assim como é impossível persuadir um daltônico de que verde não é vermelho —, esse sinal se mantém preciso para aqueles que têm um sentimento não pervertido e não atrofiado em relação à arte e que distinguem claramente entre todas as demais a sensação provocada por ela.
A principal peculiaridade dessa sensação é: aquele que percebe o trabalho artístico se funde ao seu autor de tal maneira que lhe parece que o objeto percebido foi feito não por outra pessoa, mas por ele mesmo, e que tudo o que é expresso por esse objeto é exatamente o que ele há muito vem querendo expressar. O efeito da verdadeira obra de arte é abolir, na consciência do receptor, a distinção entre si e o artista, mas, além disso entre si e todos os que percebem a mesma obra de arte. É essa libertação da pessoa de seu isolamento e de sua solidão que constitui a principal força atrativa e propriedade da arte.
Se um homem experimenta esse sentimento, se fica contagiado com o estado de espírito do autor, se sente essa fusão com outros, o objeto que evoca esse estado é arte. Se não há um contágio assim, nenhuma junção com o autor e com aqueles que percebem a obra, não há arte. Mas o contágio não é meramente um sinal irrefutável de arte; o grau desse contágio é também a única medida do valor artístico.
Quanto mais forte o contágio, melhor é a arte enquanto arte, independentemente de seu conteúdo — isto é, independentemente do valor do sentimento que ela transmite.
A arte se torna mais ou menos contagiante, dependendo de três condições: (1) a maior ou menor particularidade do sentimento transmitido; (2) a maior ou menor clareza com a qual esse sentimento é transmitido; e (3) a sinceridade do artista, isto é, a maior ou menor força com a qual o artista experimenta os sentimentos que transmite.
Quanto mais particular o sentimento transmitido, mais fortemente ele afeta o observador. Este experimenta maior prazer quanto mais particular seja o estado de espírito para o qual é transferido, e, portanto, mais forte e voluntariamente ele se funde com esse estado.
A clareza da expressão do sentimento contribui para o contágio, porque, ao mesclar-se com o autor em sua consciência, o observador fica mais satisfeito quanto mais claramente está expresso o sentimento que, conforme lhe parece, ele conhece e experimenta já por muito tempo, e para o qual só agora encontra expressão.
Porém, mais do que tudo, o grau de contágio da arte é dimensionado pelo grau de sinceridade do artista. Assim que o espectador, ouvinte ou leitor sente que o artista está contagiado por sua obra e está escrevendo, cantando ou atuando para si mesmo, e não apenas para afetar os outros, esse estado de espírito contagia o observador. Se, ao contrário, o espectador, leitor ou ouvinte sente que o autor está escrevendo, cantando ou atuando não para sua própria satisfação, mas para o público, e que, portanto, o autor não sente aquilo que está expressando, há imediatamente uma resistência e, então, o mais novo e particular sentimento, a mais artística técnica não produzem impressão alguma e até se tornam repelentes.
Estou falando das três condições de contágio e valor na arte, mas, de fato, somente a última vale: o artista deve experimentar uma necessidade íntima de expressar o sentimento que transmite. Essa condição inclui a primeira, porque, se o artista é sincero, vai expressar seu sentimento tal como o percebeu. E como cada homem é singular, esse sentimento será particular para todos os outros, e será tanto mais particular quanto mais profundamente sincero for o artista. E essa sinceridade o forçará a encontrar uma expressão clara do sentimento que deseja transmitir.
E, portanto, essa terceira condição — a sinceridade — é a mais importante das três. Ela sempre está presente na arte popular, o que garante seu poderoso efeito, e está quase totalmente ausente na arte da nossa alta classe, que é fabricada incessantemente pelos artistas por motivos de ganho pessoal ou de vaidade.
Essas são as três condições cuja presença distingue a arte das falsificações e ao mesmo tempo determina o valor de qualquer trabalho artístico, qualquer que seja o seu conteúdo.
Na ausência de uma dessas condições, a obra não pertencerá à arte, mas a suas contrafações. Se ela não transmite a particularidade do sentimento do artista e consequentemente não é particular, se é expressa de maneira incompreensível, ou se não provém da necessidade íntima do autor, não é uma obra de arte. Mas se todas as três condições estiverem presentes, ainda que no menor grau, essa obra será arte, mesmo que seja fraca.
A presença de variados graus das três condições — particularidade, clareza e sinceridade — determina o valor do objeto de arte, independentemente do seu conteúdo. Os trabalhos artísticos podem ser classificados conforme o seu valor pela presença dessas três condições em maior ou menor grau. Em uma, a particularidade do sentimento transmitido pode predominar; em outra, a clareza da expressão; em uma terceira, a sinceridade; em uma quarta, a sinceridade e a particularidade, mas com falta de clareza; em uma quinta, particularidade e clareza, mas menos sinceridade, e assim por diante, em todos os graus e combinações possíveis.
Assim a arte é distinguida da não arte e o seu valor determinado independentemente de seu conteúdo — isto é, não importando se ela transmite sentimentos bons ou ruins.
Mas como determinar se a arte é boa ou má em seu conteúdo?

Leon Tolstói, in O que é arte?

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