quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Leitura atenta



A ESCRITA CRIATIVA PODE SER ENSINADA?

É uma pergunta sensata, mas por mais vezes que me tenha sido feita, nunca sei realmente o que responder. Porque se o que as pessoas querem dizer é “pode o amor à linguagem ser ensinado?”, “pode o talento para a narração de histórias ser ensinado?”, então a resposta é não. Talvez seja esta a razão por que a pergunta é formulada tantas vezes num tom cético que sugere que, diferentemente da tabuada de multiplicar ou dos princípios da mecânica automobilística, a criatividade não pode ser transmitida de professor para aluno. Imagine Milton inscrevendo-se num programa de pós-graduação para obter ajuda com Paraíso perdido, ou Kafka suportando um seminário em que seus colegas o informam que, francamente, a passagem em que o sujeito acorda uma manhã pensando que é um inseto gigante não os convence.
O que me confunde não é a sensatez da pergunta, mas o fato de que ela está sendo feita a uma escritora que ensinou escrita, intermitentemente, por quase 20 anos. Que impressão eu daria sobre mim, meus alunos e as horas que passamos na sala de aula se dissesse que qualquer tentativa de ensinar a escrita de ficção é uma completa perda de tempo? Provavelmente teria de ir em frente e admitir que andei cometendo uma fraude criminosa.
Em vez disso, respondo relembrando minha própria e valiosíssima experiência, não como professora, mas como aluna numa das poucas oficinas de ficção que frequentei. Foi na década de 1970, durante minha breve carreira como estudante de pós-graduação em literatura inglesa medieval, quando me foi permitido o prazer de fazer um curso sobre ficção. O generoso professor ensinou-me, entre outras coisas, a editar meu trabalho. Para qualquer escritor, a capacidade de olhar uma frase e identificar o que é supérfluo, o que pode ser alterado, revisto, expandido ou – especialmente – cortado é essencial. É uma satisfação ver que a frase encolhe, encaixa-se no lugar, e por fim emerge numa forma aperfeiçoada: clara, econômica, bem definida.
Ao mesmo tempo, meus colegas proporcionavam-me meu primeiro público real. Nessa pré-história, antes que a massificação da fotocópia permitisse aos alunos distribuir manuscritos previamente, líamos nosso trabalho em voz alta. Naquele ano, eu estava começando o que viria a ser meu primeiro romance. E o que fez uma importante diferença para mim foi a atenção que sentia na sala enquanto os outros ouviam. Fui estimulada pela ânsia que tinham de ouvir mais.
Essa é a experiência que descrevo, a resposta que dou para as pessoas que me perguntam sobre o ensino de escrita criativa: uma oficina pode ser útil. Um bom professor pode lhe mostrar como editar o seu trabalho. A turma adequada pode formar a base de uma comunidade que o ajudará e sustentará.
Mas não foi nessas aulas, por mais úteis que tenham sido, que aprendi a escrever.

Como a maioria dos escritores, talvez todos, aprendi a escrever escrevendo e lendo, tomando os livros como exemplo.
Muito antes de a ideia de palestras de escritores passar pela mente de alguém, escritores aprendiam pela leitura da obra de seus predecessores. Eles estudavam métrica com Ovídio, construção de trama com Homero, comédia com Aristófanes; afiavam seu estilo absorvendo as frases claras de Montaigne e Samuel Johnson. E quem teria podido pedir melhores professores: generosos, não críticos, abençoados com sabedoria e gênio, tão infinitamente magnânimos como só os mortos podem ser?
Embora muitos escritores tenham aprendido com os mestres de uma maneira formal, metódica — Harry Crews descreveu como analisou um romance de Graham Greene para ver quantos capítulos continha, quanto tempo abrangia, como Greene lidava com ritmo, tom e ponto de vista —, a verdade é que esse tipo de educação envolve mais frequentemente uma espécie de osmose. Depois que escrevo um ensaio em que cito extensamente grandes escritores, tendo de copiar longas passagens de suas obras, noto que meu próprio trabalho se torna um pouco mais fluente, ainda que por um breve momento.
No processo de me tornar uma escritora, li e reli os autores de que mais gostava. Lia por prazer, primeiramente, mas também de maneira mais analítica, consciente do estilo, da dicção, do modo como as frases eram formadas e como a informação estava sendo transmitida, como o escritor estava estruturando uma trama, criando personagens, empregando detalhes e diálogos. E à medida que escrevia, descobri que escrever, como ler, fazia-se uma palavra por vez, um sinal de pontuação por vez. Requer o que um amigo meu chama de “pôr cada palavra em xeque”: mudar um adjetivo, cortar uma frase, remover uma vírgula e pôr a vírgula de volta.
Leio minuciosamente, palavra por palavra, frase por frase, ponderando cada aparentemente mínima decisão tomada pelo escritor. E embora seja impossível recordar todas as fontes de inspiração e instrução, posso lembrar os romances e contos que me pareceram revelações: poços de beleza e prazer que eram também livros didáticos, aulas particulares da arte da ficção.
Este livro pretende ser em parte uma resposta a essa pergunta inevitável sobre como os escritores aprendem a fazer algo que não pode ser ensinado. O que os escritores sabem é que, em última análise, aprendemos a escrever com a prática, o trabalho árduo, a repetição de tentativas e erros, o sucesso e o fracasso e com os livros que admiramos. Assim, o livro que se segue representa um esforço para recordar minha própria educação como romancista e ajudar o leitor apaixonado e aquele que deseja ser escritor a compreender como um escritor lê.

Quando eu estava no fim do ginásio, nosso professor de inglês pediu que fizéssemos um trabalho sobre o tema da cegueira em Édipo rei e Rei Lear. Deveríamos examinar atentamente as duas tragédias e assinalar cada referência a olhos, luz, escuridão e visão, e depois extrair alguma conclusão em que basearíamos nosso ensaio final.
A tarefa pareceu tão enfadonha, tão mecânica... Tínhamos a impressão de estar muito acima daquilo. Sem aquele exercício entediante, demorado, todos nós sabíamos que a cegueira desempenhava um papel crucial em ambos os dramas.
Ainda assim, gostávamos do nosso professor de inglês, queríamos agradá-lo. E procurar cada palavra relevante acabou tendo um divertido aspecto de caça ao tesouro, um trabalho de detetive emocionante, como em Onde está Wally?. Assim que começávamos a procurar “olhos”, passávamos a encontrá-los em toda parte, dardejando para nós, piscando em cada página.
Muito antes que Édipo e Gloucester ficassem cegos, a linguagem da visão e de seu oposto nos preparava, consciente ou inconscientemente, para aquelas mutilações violentas. Convidava-nos a considerar o que significava ser clarividente ou obtuso, de visão acanhada ou presciente, a prestar atenção aos sinais e advertências, a ver ou negar o que estava bem diante dos nossos olhos. Tirésias, Édipo, Goneril, Kent – todos eles poderiam ser definidos pela sinceridade ou falsidade com que refletiam ou discorriam sobre o tema da cegueira metafórica ou literal.

Foi divertido acompanhar esses padrões e fazer tais conexões. Era como decifrar um código que o dramaturgo inserira no texto, um enigma que só existia para que eu o decifrasse. Tive a impressão de estar envolvida numa comunicação íntima com o escritor, como se os fantasmas de Sófocles e Shakespeare tivessem esperado pacientemente todos aqueles séculos até que uma menina livresca de 16 anos aparecesse e os descobrisse.
Eu acreditava que estava aprendendo a ler de uma maneira inteiramente nova. Mas isso só era verdade em parte. Porque, de fato, estava simplesmente reaprendendo a ler da velha maneira como havia aprendido, e que já esquecera.
Todos nós começamos como leitores atentos. Mesmo antes de aprendermos a ler, o processo de ouvir leituras em voz alta significa que assimilamos uma palavra depois da outra, uma frase de cada vez, que prestamos atenção ao que quer que cada palavra ou frase esteja transmitindo. É palavra por palavra que aprendemos a ouvir e depois a ler, o que parece adequado, porque, afinal, foi assim que os livros que lemos foram escritos.
Quanto mais lemos, mais rapidamente somos capazes de executar o truque mágico de ver como as letras foram combinadas em palavras dotadas de sentido. Quanto mais lemos, mais compreendemos, mais aptos nos tornamos a descobrir novas maneiras de ler, cada uma ajustada à razão que nos levou a ler um livro particular.
De início, a vibração de nossa habilidade recém-adquirida é tudo que pedimos ou esperamos de Dick e Jane.a Logo, porém, começamos a perguntar o que mais todas aquelas marcas na página podem nos dar. Começamos a querer informação, entretenimento, invenção, até verdade e beleza. Concentramo-nos, lemos por alto, saltamos palavras, pomos o livro de lado e devaneamos, recomeçamos e relemos. Terminamos um livro e voltamos a ele anos depois para ver o que nos pode ter escapado, ou as maneiras como o tempo e a idade afetaram nossa compreensão.
Quando criança, eu me sentia atraída pelas obras dos grandes autores infantis escapistas. Gostava de trocar meu mundo familiar pela Londres das quatro crianças cuja babá descia sobre suas vidas usando o guarda-chuva como paraquedas, transformando em aventura mágica a mais rotineira saída para compras. Teria seguido com prazer o Coelho Branco por sua toca e tomado chá com o Chapeleiro Louco. Gostava de romances em que crianças transpunham portais — um portão de jardim, um guarda-roupa — e mergulhavam num universo alternativo.
As crianças gostam da imaginação, com suas possibilidades caleidoscópicas e seu protesto contra a maneira como estamos sempre a lhes dizer exatamente o que é verdadeiro e o que é falso, o que é real e o que é ilusão. Talvez meu gosto pela leitura tivesse algo a ver com as limitações que descobria a cada dia: as paredes do tempo e do espaço, da ciência e da probabilidade, para não falar de todas as mensagens que captava da cultura. Gostava de romances com heroínas corajosas, como Pippi Meia-longa, a austera Jane Eyre e as filhas de Mulherzinhas, meninas cuja engenhosidade e inteligência não as excluíam automaticamente dos prazeres da atenção masculina.
Cada palavra desses romances era um tijolo amarelo na estrada para Oz. Havia capítulos que eu lia e relia, de modo a repetir a sensação segura, extracorpórea, de estar num outro lugar. Eu lia de maneira compulsiva, constante. Numas férias com a família, meu pai me suplicou que eu fechasse o livro para olhar o Grand Canyon. Pegava pilhas de livros emprestados na biblioteca pública: romances, biografias, história, qualquer coisa que parecesse mesmo remotamente atraente.
Com a pré-adolescência veio um desejo mais premente de fuga. Eu lia de maneira mais ampla, mais indiscriminada, e interessada principalmente no quanto um livro podia me afastar da minha vida e em quanto tempo podia me manter lá: E o vento levou..., Pearl Buck, Edna Ferber, grossos best-sellers de James Michener, com uma pitada de história para amenizar as tórridas cenas de amor entre as jovens havaianas e os missionários, as gueixas e os pracinhas. Eu apreciava esses livros também pelos fragmentos de informação, muitas vezes enganosa, que forneciam sobre sexo naquela era inocente, a década de 1950. Virava as páginas tão rapidamente como podia. Ler era como comer sozinha, com aquele mesmo elemento de voracidade.
Tive a sorte de ter bons professores, e ter amigos que também eram leitores. Os livros que eu lia tornaram-se mais desafiadores, mais bem escritos, mais substanciais: Steinbeck, Camus, Hemingway, Fitzgerald, Twain, Salinger, Anne Frank. Pequenos beatniks, meus amigos e eu éramos fãs apaixonados de Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti. Líamos Truman Capote, Carson McCullers e os clássicos proto-hippies de Hermann Hesse, Carlos Castaneda: Mary Poppins para gente que pensava ter superado a babá voadora. Eu devia perceber vagamente o poder da linguagem, mas só de maneira obscura, e apenas na medida em que isso se aplicava a qualquer efeito que o livro tivesse sobre mim.

E então tudo isso mudou com cada marca que fiz nas páginas de Rei Lear e Édipo rei. Ainda tenho o meu velho exemplar de Sófocles, profusamente sublinhado, coberto com doces e embaraçosas notas pessoais (“ironia?” “reconhecimento do destino?”) escritas em minha caprichada e comovente letra redonda de escolar. Como ver uma fotografia de nós mesmos quando crianças, encontrar uma caligrafia que sabemos ter sido nossa outrora, mas que agora parece apenas vagamente familiar, pode inspirar uma confrontação com o mistério do tempo.
O foco na linguagem revelou-se uma habilidade prática, útil, da mesma maneira que a leitura de partituras à primeira vista pode vir a calhar para um músico. Meu professor de inglês do ginásio havia se formado recentemente numa faculdade onde seus próprios professores ensinavam o chamado New Criticism, uma escola de pensamento que privilegiava o que estava na página, com apenas breves referências à biografia do escritor ou ao período em que o texto foi escrito. Felizmente para mim, essa abordagem à literatura ainda estava em voga quando me diplomei e fui para a faculdade. Na minha universidade, havia um famoso professor e crítico cuja crença na leitura atenta (“close reading”) se difundia e influenciava todo o programa da área de humanas. Na aula de francês, passávamos uma hora todas as tardes de sexta-feira tentando avançar, pouco a pouco, de A canção de Rolando a Sartre, parágrafo por parágrafo, concentrando-nos em pequenas seções para o que era chamado de “explication de texte”.
Havia, é claro, muitas ocasiões em que eu tinha de ler o mais superficialmente que podia para atravessar aqueles cursos panorâmicos que nos davam duas semanas para terminar Dom Quixote, dez dias para Guerra e paz, cursos destinados a produzir formandos que pudessem dizer que haviam lido os clássicos. Mas nessa época eu sabia o bastante para lamentar ler aqueles livros daquela maneira. E prometia a mim mesma que os revisitaria assim que pudesse lhes dedicar o tempo e a atenção que mereciam.
[...]

Francine Prose, in Para ler como um escritor

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