A
ESCRITA CRIATIVA PODE SER ENSINADA?
É
uma pergunta sensata, mas por mais vezes que me tenha sido feita,
nunca sei realmente o que responder. Porque se o que as pessoas
querem dizer é “pode o amor à linguagem ser ensinado?”, “pode
o talento para a narração de histórias ser ensinado?”, então a
resposta é não. Talvez seja esta a razão por que a pergunta é
formulada tantas vezes num tom cético que sugere que, diferentemente
da tabuada de multiplicar ou dos princípios da mecânica
automobilística, a criatividade não pode ser transmitida de
professor para aluno. Imagine Milton inscrevendo-se num programa de
pós-graduação para obter ajuda com Paraíso perdido, ou
Kafka suportando um seminário em que seus colegas o informam que,
francamente, a passagem em que o sujeito acorda uma manhã pensando
que é um inseto gigante não os convence.
O
que me confunde não é a sensatez da pergunta, mas o fato de que ela
está sendo feita a uma escritora que ensinou escrita,
intermitentemente, por quase 20 anos. Que impressão eu daria sobre
mim, meus alunos e as horas que passamos na sala de aula se dissesse
que qualquer tentativa de ensinar a escrita de ficção é uma
completa perda de tempo? Provavelmente teria de ir em frente e
admitir que andei cometendo uma fraude criminosa.
Em
vez disso, respondo relembrando minha própria e valiosíssima
experiência, não como professora, mas como aluna numa das poucas
oficinas de ficção que frequentei. Foi na década de 1970, durante
minha breve carreira como estudante de pós-graduação em literatura
inglesa medieval, quando me foi permitido o prazer de fazer um curso
sobre ficção. O generoso professor ensinou-me, entre outras coisas,
a editar meu trabalho. Para qualquer escritor, a capacidade de olhar
uma frase e identificar o que é supérfluo, o que pode ser alterado,
revisto, expandido ou – especialmente – cortado é essencial. É
uma satisfação ver que a frase encolhe, encaixa-se no lugar, e por
fim emerge numa forma aperfeiçoada: clara, econômica, bem definida.
Ao
mesmo tempo, meus colegas proporcionavam-me meu primeiro público
real. Nessa pré-história, antes que a massificação da fotocópia
permitisse aos alunos distribuir manuscritos previamente, líamos
nosso trabalho em voz alta. Naquele ano, eu estava começando o que
viria a ser meu primeiro romance. E o que fez uma importante
diferença para mim foi a atenção que sentia na sala enquanto os
outros ouviam. Fui estimulada pela ânsia que tinham de ouvir mais.
Essa
é a experiência que descrevo, a resposta que dou para as pessoas
que me perguntam sobre o ensino de escrita criativa: uma oficina pode
ser útil. Um bom professor pode lhe mostrar como editar o seu
trabalho. A turma adequada pode formar a base de uma comunidade que o
ajudará e sustentará.
Mas
não foi nessas aulas, por mais úteis que tenham sido, que aprendi a
escrever.
Como
a maioria dos escritores, talvez todos, aprendi a escrever escrevendo
e lendo, tomando os livros como exemplo.
Muito
antes de a ideia de palestras de escritores passar pela mente de
alguém, escritores aprendiam pela leitura da obra de seus
predecessores. Eles estudavam métrica com Ovídio, construção de
trama com Homero, comédia com Aristófanes; afiavam seu estilo
absorvendo as frases claras de Montaigne e Samuel Johnson. E quem
teria podido pedir melhores professores: generosos, não críticos,
abençoados com sabedoria e gênio, tão infinitamente magnânimos
como só os mortos podem ser?
Embora
muitos escritores tenham aprendido com os mestres de uma maneira
formal, metódica — Harry Crews descreveu como analisou um romance
de Graham Greene para ver quantos capítulos continha, quanto tempo
abrangia, como Greene lidava com ritmo, tom e ponto de vista —, a
verdade é que esse tipo de educação envolve mais frequentemente
uma espécie de osmose. Depois que escrevo um ensaio em que cito
extensamente grandes escritores, tendo de copiar longas passagens de
suas obras, noto que meu próprio trabalho se torna um pouco mais
fluente, ainda que por um breve momento.
No
processo de me tornar uma escritora, li e reli os autores de que mais
gostava. Lia por prazer, primeiramente, mas também de maneira mais
analítica, consciente do estilo, da dicção, do modo como as frases
eram formadas e como a informação estava sendo transmitida, como o
escritor estava estruturando uma trama, criando personagens,
empregando detalhes e diálogos. E à medida que escrevia, descobri
que escrever, como ler, fazia-se uma palavra por vez, um sinal de
pontuação por vez. Requer o que um amigo meu chama de “pôr cada
palavra em xeque”: mudar um adjetivo, cortar uma frase, remover uma
vírgula e pôr a vírgula de volta.
Leio
minuciosamente, palavra por palavra, frase por frase, ponderando cada
aparentemente mínima decisão tomada pelo escritor. E embora seja
impossível recordar todas as fontes de inspiração e instrução,
posso lembrar os romances e contos que me pareceram revelações:
poços de beleza e prazer que eram também livros didáticos, aulas
particulares da arte da ficção.
Este
livro pretende ser em parte uma resposta a essa pergunta inevitável
sobre como os escritores aprendem a fazer algo que não pode ser
ensinado. O que os escritores sabem é que, em última análise,
aprendemos a escrever com a prática, o trabalho árduo, a repetição
de tentativas e erros, o sucesso e o fracasso e com os livros que
admiramos. Assim, o livro que se segue representa um esforço para
recordar minha própria educação como romancista e ajudar o leitor
apaixonado e aquele que deseja ser escritor a compreender como um
escritor lê.
Quando
eu estava no fim do ginásio, nosso professor de inglês pediu que
fizéssemos um trabalho sobre o tema da cegueira em Édipo rei
e Rei Lear. Deveríamos examinar atentamente as duas tragédias
e assinalar cada referência a olhos, luz, escuridão e visão, e
depois extrair alguma conclusão em que basearíamos nosso ensaio
final.
A
tarefa pareceu tão enfadonha, tão mecânica... Tínhamos a
impressão de estar muito acima daquilo. Sem aquele exercício
entediante, demorado, todos nós sabíamos que a cegueira
desempenhava um papel crucial em ambos os dramas.
Ainda
assim, gostávamos do nosso professor de inglês, queríamos
agradá-lo. E procurar cada palavra relevante acabou tendo um
divertido aspecto de caça ao tesouro, um trabalho de detetive
emocionante, como em Onde está Wally?. Assim que começávamos
a procurar “olhos”, passávamos a encontrá-los em toda parte,
dardejando para nós, piscando em cada página.
Muito
antes que Édipo e Gloucester ficassem cegos, a linguagem da visão e
de seu oposto nos preparava, consciente ou inconscientemente, para
aquelas mutilações violentas. Convidava-nos a considerar o que
significava ser clarividente ou obtuso, de visão acanhada ou
presciente, a prestar atenção aos sinais e advertências, a ver ou
negar o que estava bem diante dos nossos olhos. Tirésias, Édipo,
Goneril, Kent – todos eles poderiam ser definidos pela sinceridade
ou falsidade com que refletiam ou discorriam sobre o tema da cegueira
metafórica ou literal.
Foi
divertido acompanhar esses padrões e fazer tais conexões. Era como
decifrar um código que o dramaturgo inserira no texto, um enigma que
só existia para que eu o decifrasse. Tive a impressão de estar
envolvida numa comunicação íntima com o escritor, como se os
fantasmas de Sófocles e Shakespeare tivessem esperado pacientemente
todos aqueles séculos até que uma menina livresca de 16 anos
aparecesse e os descobrisse.
Eu
acreditava que estava aprendendo a ler de uma maneira inteiramente
nova. Mas isso só era verdade em parte. Porque, de fato, estava
simplesmente reaprendendo a ler da velha maneira como havia
aprendido, e que já esquecera.
Todos
nós começamos como leitores atentos. Mesmo antes de aprendermos a
ler, o processo de ouvir leituras em voz alta significa que
assimilamos uma palavra depois da outra, uma frase de cada vez, que
prestamos atenção ao que quer que cada palavra ou frase esteja
transmitindo. É palavra por palavra que aprendemos a ouvir e depois
a ler, o que parece adequado, porque, afinal, foi assim que os livros
que lemos foram escritos.
Quanto
mais lemos, mais rapidamente somos capazes de executar o truque
mágico de ver como as letras foram combinadas em palavras dotadas de
sentido. Quanto mais lemos, mais compreendemos, mais aptos nos
tornamos a descobrir novas maneiras de ler, cada uma ajustada à
razão que nos levou a ler um livro particular.
De
início, a vibração de nossa habilidade recém-adquirida é tudo
que pedimos ou esperamos de Dick e Jane.a Logo, porém, começamos a
perguntar o que mais todas aquelas marcas na página podem nos dar.
Começamos a querer informação, entretenimento, invenção, até
verdade e beleza. Concentramo-nos, lemos por alto, saltamos palavras,
pomos o livro de lado e devaneamos, recomeçamos e relemos.
Terminamos um livro e voltamos a ele anos depois para ver o que nos
pode ter escapado, ou as maneiras como o tempo e a idade afetaram
nossa compreensão.
Quando
criança, eu me sentia atraída pelas obras dos grandes autores
infantis escapistas. Gostava de trocar meu mundo familiar pela
Londres das quatro crianças cuja babá descia sobre suas vidas
usando o guarda-chuva como paraquedas, transformando em aventura
mágica a mais rotineira saída para compras. Teria seguido com
prazer o Coelho Branco por sua toca e tomado chá com o Chapeleiro
Louco. Gostava de romances em que crianças transpunham portais —
um portão de jardim, um guarda-roupa — e mergulhavam num universo
alternativo.
As
crianças gostam da imaginação, com suas possibilidades
caleidoscópicas e seu protesto contra a maneira como estamos sempre
a lhes dizer exatamente o que é verdadeiro e o que é falso, o que é
real e o que é ilusão. Talvez meu gosto pela leitura tivesse algo a
ver com as limitações que descobria a cada dia: as paredes do tempo
e do espaço, da ciência e da probabilidade, para não falar de
todas as mensagens que captava da cultura. Gostava de romances com
heroínas corajosas, como Pippi Meia-longa, a austera Jane Eyre e as
filhas de Mulherzinhas, meninas cuja engenhosidade e
inteligência não as excluíam automaticamente dos prazeres da
atenção masculina.
Cada
palavra desses romances era um tijolo amarelo na estrada para Oz.
Havia capítulos que eu lia e relia, de modo a repetir a sensação
segura, extracorpórea, de estar num outro lugar. Eu lia de
maneira compulsiva, constante. Numas férias com a família, meu pai
me suplicou que eu fechasse o livro para olhar o Grand Canyon. Pegava
pilhas de livros emprestados na biblioteca pública: romances,
biografias, história, qualquer coisa que parecesse mesmo remotamente
atraente.
Com
a pré-adolescência veio um desejo mais premente de fuga. Eu lia de
maneira mais ampla, mais indiscriminada, e interessada principalmente
no quanto um livro podia me afastar da minha vida e em quanto tempo
podia me manter lá: E o vento levou..., Pearl Buck, Edna
Ferber, grossos best-sellers de James Michener, com uma pitada de
história para amenizar as tórridas cenas de amor entre as jovens
havaianas e os missionários, as gueixas e os pracinhas. Eu apreciava
esses livros também pelos fragmentos de informação, muitas vezes
enganosa, que forneciam sobre sexo naquela era inocente, a década de
1950. Virava as páginas tão rapidamente como podia. Ler era como
comer sozinha, com aquele mesmo elemento de voracidade.
Tive
a sorte de ter bons professores, e ter amigos que também eram
leitores. Os livros que eu lia tornaram-se mais desafiadores, mais
bem escritos, mais substanciais: Steinbeck, Camus, Hemingway,
Fitzgerald, Twain, Salinger, Anne Frank. Pequenos beatniks, meus
amigos e eu éramos fãs apaixonados de Jack Kerouac, Allen Ginsberg,
Lawrence Ferlinghetti. Líamos Truman Capote, Carson McCullers e os
clássicos proto-hippies de Hermann Hesse, Carlos Castaneda: Mary
Poppins para gente que pensava ter superado a babá voadora. Eu
devia perceber vagamente o poder da linguagem, mas só de maneira
obscura, e apenas na medida em que isso se aplicava a qualquer efeito
que o livro tivesse sobre mim.
E
então tudo isso mudou com cada marca que fiz nas páginas de Rei
Lear e Édipo rei.
Ainda tenho o meu velho exemplar de Sófocles, profusamente
sublinhado, coberto com doces e embaraçosas notas pessoais
(“ironia?” “reconhecimento do destino?”) escritas em minha
caprichada e comovente letra redonda de escolar. Como ver uma
fotografia de nós mesmos quando crianças, encontrar uma caligrafia
que sabemos ter sido nossa outrora, mas que agora parece apenas
vagamente familiar, pode inspirar uma confrontação com o mistério
do tempo.
O
foco na linguagem revelou-se uma habilidade prática, útil, da mesma
maneira que a leitura de partituras à primeira vista pode vir a
calhar para um músico. Meu professor de inglês do ginásio havia se
formado recentemente numa faculdade onde seus próprios professores
ensinavam o chamado New Criticism, uma escola de pensamento que
privilegiava o que estava na página, com apenas breves referências
à biografia do escritor ou ao período em que o texto foi escrito.
Felizmente para mim, essa abordagem à literatura ainda estava em
voga quando me diplomei e fui para a faculdade. Na minha
universidade, havia um famoso professor e crítico cuja crença na
leitura atenta (“close reading”) se difundia e
influenciava todo o programa da área de humanas. Na aula de francês,
passávamos uma hora todas as tardes de sexta-feira tentando avançar,
pouco a pouco, de A canção de Rolando a Sartre, parágrafo
por parágrafo, concentrando-nos em pequenas seções para o que era
chamado de “explication de texte”.
Havia,
é claro, muitas ocasiões em que eu tinha de ler o mais
superficialmente que podia para atravessar aqueles cursos panorâmicos
que nos davam duas semanas para terminar Dom Quixote, dez dias
para Guerra e paz, cursos destinados a produzir formandos que
pudessem dizer que haviam lido os clássicos. Mas nessa época eu
sabia o bastante para lamentar ler aqueles livros daquela maneira. E
prometia a mim mesma que os revisitaria assim que pudesse lhes
dedicar o tempo e a atenção que mereciam.
[...]
Francine Prose, in Para ler como um escritor
Nenhum comentário:
Postar um comentário