Tonho
estava com treze anos e mal ouvira o grito de Jeronimo abandonara a
companhia de Noca, a irmãzinha de sete anos. Correra para o curral,
ia ajudar o avô a tirar leite. Ficava segurando o bezerrinho pela
corda para que ele não se aproximasse demasiado das tetas da vaca.
Depois chegaria a vez da cabra, Noca e Ernesto – o menorzinho –
tomavam desse leite, Jucundina afirmava que nada melhor que leite de
cabra para criar menino. Tonho gostava daquele trabalho, a vaca era a
própria mansidão e por vezes ele a cavalgava, apesar dos ralhos do
avô. Brincava também com o bezerrinho, imitava seus mugidos, bulia
com o jumento, única das criações que tinha nome, pois se chamava
Jeremias e, ao ouvir chamar-se assim, logo vinha no seu passo
demorado. Com a chuva, pocas de água suja enchiam a estrada e Tonho
pisava em cada uma delas, diversão melhor não podia haver. Espiava
para trás, Noca era uma tola que ficava na porta da casa em
companhia da gata amarela, a Marisca. Não sabia o bom que era o
trabalho no curral, tirar leite, bulir com Jeremias.
Noca
estava com medo. Segurava a gata contra o peito magro e sujo. Tonho
lhe dissera que naquela noite, que era a da festa de Ataliba, eles
iam ficar sozinhos em casa, os dois e mais o pequenininho, e que o
bicho viria com certeza e comeria Noca.
– Come
tu também...
– M'iscondo...
E
saiu rindo pros lados do curral. Noca se aperta contra Marisca, sua
gata, sua amiga, sua boneca, sua onica ternura na casa pobre. Seus
olhos amedrontados fitam com amor a gatinha amarela e remelenta.
Marisca mia ao aperto da menina e Noca conversa com ela:
– Tu
fica comigo... Se o bicho vier nóis bota ele pra fora...
Junto
de Marisca ela não tem medo. Marisca e valente, da nas galinhas,
rosna para o cachorro de tio João Pedro quando ele vem de visita,
pula na cerca, até já caçou umas preás pelo campo. E um dia
Marisca matou uma cobra bem na frente da casa, cobra pequena mas
venenosa e naquela noite Jucundina deu-lhe um pires de leite. Marisca
e valente, junto dela Noca não tem medo, não se importa de ficar
sozinha. Malvadeza dos outros, irem para a festa, deixarem ela e os
irmãos, os três sozinhos, quando existe o bicho que pega meninos,
que os leva ninguém sabe para onde. Noca se encolhe ante a
recordação, aperta mais a gata contra o peito. Marisca, incomodada
com a pressão das mãos da criança, estira-se, solta-se, pula para
o chão. Mia longamente para as sombras do crepúsculo e fica logo
atenta a voz de Zefa que chega da cozinha nas suas imprecações. O
dorso da gata se alteia como se ela visse um inimigo. Mas a pequena e
suja mão de Noca a acaricia e ela se agacha para melhor receber o
carinho, anda sob a mão da menina e rosna baixinho, docemente. Volta
a saltar para o colo de Noca. A noite vem chegando trazida pelas
sombras e Noca descobre subitamente no alto dos céus a figura do
bicho. Seu corpinho raquítico treme sob o vestido de burgariana. E
só em Marisca encontra consolo e coragem, alegria e ternura.
Nunca
tivera uma boneca, nem mesmo uma dessas bruxas de pano que vendem na
feira. Nunca tivera um brinquedo, nem mesmo um desses de madeira que
os amadores fabricam. Nunca ouvira música nem assistira aos teatros
de títeres, nada tivera além de Marisca. Resume para ela a boneca
que viu na mão da filha de Artur, o automóvel de flandres que tanto
encantara a ela e a Tonho ha casa-grande, resume o mundo inteiro, as
personagens das histórias que por vezes Jucundina contava, nada mais
ela tem além da sua gata.
Vai
ficar sozinha essa noite com os irmãos pequenos, e Tonho disse que o
bicho vira. Se Agostinho estivesse ali, Noca lhe perguntaria se era
verdade. Agostinho tem uma garrucha, podia dar um tiro no bicho. Ele
vem numa nuvem, bufando de raiva, ele come menino. A gata salta do
colo de Noca atrás de um besouro que apareceu com o crepúsculo. A
pata se agita no ar mas o besouro e mais rápido, engana Marisca. E
mia zangada, o besouro está pousado na parede, fora do alcance do
pulo da gata. Noca vai de mansinho, tapa o besouro com a mão,
derruba-o no terreiro, Marisca salta, Noca bate palmas com as mãos,
mãos magras e sujas, boca suja também mas que riso mais doce!
Jorge Amado, in Seara Vermelha
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