quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Piloto de Guerra | XXI


Inclinado sobre a terra, eu não percebera o espaço vazio que aos poucos aumentava entre mim e as nuvens. As traçantes jorravam uma luz de trigo: como saberia que no auge de sua ascensão, elas distribuíam aqueles materiais obscuros, um a um, como se enfiassem pregos? Eu os descubro acumulados, já em pirâmides vertiginosas que derivam para trás com a lentidão de banquisas. Na escala de tais perspectivas, tenho a sensação de estar imóvel.
Sei bem que essas construções, tão logo erguidas, já terão gasto o seu poder. Cada um desses flocos só dispôs de um centésimo de segundo do direito de vida ou de morte. Mas me cercaram sem que me apercebesse. Sua aparição pesou, de repente, sobre minha nuca, o peso de uma formidável reprovação.
Essa sucessão de explosões abafadas, cujo som é coberto pelo ronco dos motores, impõe-me a ilusão de um silêncio extraordinário. Eu não sinto nada. Abre-se em mim o vazio da espera, como se estivessem a deliberar.
Eu acho… Acho, todavia, que: “Estão atirando muito alto!”, e viro a cabeça para trás, meio contra a vontade, para ver balançar um bando de águias. Estas renunciam. Mas nada há a esperar.
As armas que nos erraram reajustam seus tiros. As muralhas de estouros se constroem em nosso patamar. Cada núcleo de fogo, em alguns segundos, ergue sua pirâmide de explosões, que logo abandona, extinta, para erguer alhures. O tiro não nos mira: ele nos encerra.
Dutertre, está longe ainda?
— … Se conseguíssemos aguentar mais três minutos, acabava. Mas…
Desistiremos, talvez…
Jamais!
Esse escuro cinzento é sinistro, esse escuro de farrapos amontoados. A planície era azul. Imensamente azul. Azul-marinho…

Que sobrevida posso esperar? Dez segundos? Vinte segundos? O estremecimento das explosões já me desgasta permanentemente. As que são próximas parecem, no avião, rochas sendo despejadas numa caçamba. Depois disso, o avião inteiro faz um barulho quase musical. Estranho suspiro… Mas são tiros perdidos. É como o raio. Quanto mais próximo, mais se simplifica. Alguns choques são elementares: é que a explosão nos marcou com seus estouros. A fera não esbarra no boi quando o mata. Crava suas garras de chumbo, sem derrapar. Apodera-se do boi. Assim, os tiros certeiros se incrustam simplesmente no avião, como num músculo.
Ferido?
Não!
Ei, Artilheiro, ferido?
Não!
Mas esses choques, que é preciso descrever bem, não valem. Eles tamborilam num casco, num tambor. Em vez de furar os reservatórios, poderiam muito bem ter-nos aberto o ventre. Mas o ventre em si é apenas um tambor. O corpo, dane-se! Não é ele que vale… Isso é extraordinário!
Sobre o corpo, tenho duas palavras a dizer. Mas, na vida cotidiana, ficamos cegos ao óbvio. É preciso, para que se mostre o óbvio, a urgência de tais condições. É preciso essa chuva de luzes ascendentes, é preciso esse ataque de golpes de lanças, é preciso enfim que seja erguido esse tribunal para o juízo final. Então, a gente compreende.
Eu não perguntava durante o aparelhamento: “Como se apresentam os últimos instantes?”. A vida sempre desmentiu os fantasmas que eu inventava. Mas se tratava, dessa vez, de andar nu sob o furor de punhos imbecis, sem nem mesmo um dobrar de cotovelos para proteger o rosto.
A provação, eu tinha uma provação na própria carne. Eu a imaginava em minha carne. O ponto de vista que adotava era necessariamente o do meu próprio corpo. Cuidamos tanto de nosso corpo. Tanto o vestimos, lavamos, tratamos, barbeamos, satisfizemos-lhe a sede e o nutrimos. Identificamo-nos com esse animal doméstico. Nós o conduzimos ao alfaiate, ao médico, ao cirurgião. Sofremos com ele. Gritamos com ele. Amamos com ele. Dizemos dele: sou eu. Eis que de repente essa ilusão desmorona. Zombamos do corpo! Nós o relegamos ao nível da criadagem. Basta que a cólera se avive um pouco, o amor se exalte, o ódio se enovele, então se quebra aquela famosa solidariedade.
Teu filho está preso no incêndio? Tu o salvarás! Não podemos deter-te! Estás queimando! Pouco te importas. Tu deixas esses farrapos de carne como garantia a quem os quiser. Descobres que não fazias questão do que tanto te valia. Venderias, se fosse um obstáculo, teu ombro pelo luxo de um tranco com os ombros! Habitas teu próprio ato. És o teu ato. Não te encontras mais alhures! Teu corpo é teu, não é tu. Vais bater? Ninguém te dominará ameaçando-te em teu corpo. Tu? És a morte do inimigo. Tu? És o salvamento do teu filho. Tu és troca. E não sentes o sentimento de perder na troca. Teus membros? Ferramentas. Pouco nos importamos com uma ferramenta que quebra quando estamos talhando. E tu te trocas contra a morte de teu rival, o salvamento de teu filho, a cura de teu doente, tua descoberta, se és o inventor! Esse camarada do Grupo está mortalmente ferido. A citação traz: “Disse a seu observador: estou perdido. Corra! Salve os documentos!”. Somente a salvaguarda dos documentos importa, ou da criança, a cura do doente, a morte do rival, a descoberta! Teu significado se mostra deslumbrante. É teu dever, é teu ódio, é teu amor, é tua fidelidade, é tua invenção. Não encontras nada mais em ti.
O fogo não arrancou apenas a carne, mas, no mesmo golpe, o culto da carne. O homem não se interessa mais por si. Somente impõe-se a ele aquilo de que é feito. Ele não se despedaça, se morre: ele se confunde. Ele não se perde, ele se encontra. Isto não é voto de moralista. É uma verdade usual, uma verdade de todos os dias, que uma ilusão de todos os dias cobre com uma máscara impenetrável. Como eu poderia prever, quando estava me vestindo, e temia por meu corpo, que estava me preocupando com ninharias? É somente no instante de entregar esse corpo que todos, sempre, descobrem, estupefatos, quão pouco fazem questão do corpo. Mas, decerto, durante a minha vida, quando nada de urgente me governa, quando meu significado não está em jogo, não concebo problemas mais graves do que os do meu corpo.
Meu corpo, estou me lixando para ti! Estou expulso para fora de ti, não tenho mais esperança e nada me falta! Eu renego tudo o que eu era até este segundo. Não era eu quem pensava, nem eu quem sentia. Era meu corpo. Tive de arrastá-lo, como pude, até aqui, onde descubro que ele não tem nenhuma importância.
Aprendi aos quinze anos a minha primeira lição: um irmão, mais novo do que eu, estava desenganado havia alguns dias. Numa manhã, por volta das quatro horas, sua enfermeira me acorda:
Seu irmão mandou chamá-lo.
Está se sentindo mal?
Ela nada responde. Eu me visto depressa e vou ver meu irmão.
Ele me diz com uma voz habitual:
Queria falar contigo antes de morrer. Eu vou morrer.
Uma crise nervosa o crispa e o faz calar-se.
Durante a crise, ele faz “não” com a mão. E não compreendo o gesto. Imagino que a criança recuse a morte. Mas, retomada a calmaria, ele me explica:
Não te assustes… Não estou sofrendo. Não sinto dor. Não consigo evitar, é meu corpo.
Seu corpo, território estrangeiro, já outro.
Mas esse irmão caçula que sucumbiria em vinte minutos, desejava ser sério. Ele sente a necessidade premente de delegar sua herança. E me diz: “Eu queria fazer meu testamento…”. Enrubesce, está orgulhoso, é claro, de agir como homem. Se fosse construtor de torres, ele me confiaria sua torre a construir. Se fosse pai, ele me confiaria seus filhos a instruir. Se fosse piloto de avião de guerra, ele me confiaria seus documentos de bordo. Mas ele é só uma criança. Só me confia um motor a vapor, uma bicicleta e uma carabina. A gente não morre. A gente imaginava temer a morte: tememos o inesperado, a explosão, tememos a nós mesmos. A morte? Não. Não há mais morte quando a encontramos. Meu irmão me disse: “Não te esqueças de escrever tudo isso…”. Quando o corpo se desfaz, o essencial se mostra. O homem não passa de um nó de relações. Só as relações valem para o homem.
O corpo, cavalo velho, nós abandonamos. Quem imagina a si mesmo na morte? Ainda não encontrei ninguém…
Capitão?
Que é?
Formidável!
Artilheiro…
Hã… Sim…
Qual…
Minha pergunta saltou com o choque.
Dutertre!
Capi…
Atingido?
Não.
Artilheiro…
Sim?
Tud…
É como se tivesse batido numa parede de bronze. Ouço:
Ai ai ai!!!
Levanto a cabeça para o céu a fim de medir a distância das nuvens. Obviamente, quanto mais obliquamente observo, mais os flocos negros parecem empilhados. Na vertical, eles parecem menos densos. É por isso que descubro, encravado acima de nossas frontes, esse diadema monumental de florões negros.
Os músculos das coxas são de uma potência surpreendente. Jogo o peso com toda força no pedal, como se arrombasse uma parede. Lancei o avião de través. Ele derrapa brutalmente para a esquerda, com vibrações quebradiças. O diadema deslizou à direita. Eu o fiz balançar acima de minha cabeça. Surpreendi o tiro disparado alhures. Eu vejo acumularem-se, à direita, inúteis grupos de explosões. Mas, antes que começasse, com a outra coxa, o movimento contrário, o diadema já se restabelecera acima de mim. Os do solo o reinstalaram. O avião com seus grunhidos afunda de novo em charcos. Mas todo o peso do meu corpo esmagou uma segunda vez os pedais. Eu lancei o avião numa viragem contrária, ou mais exatamente numa derrapagem contrária (para o inferno as viragens corretas!) e o diadema deslizou para a esquerda.
Durar? Esse jogo não pode durar! Por mais que dê gigantescas pezadas, o dilúvio de lanças se recompõe, ali, na minha frente. A coroa se restabelece. Os choques recomeçam na minha barriga. E, se eu olhar para baixo, vejo outra vez, bem centrada em mim, aquela ascensão de bolhas de uma vertiginosa lentidão. É inconcebível que estejamos ainda inteiros. E, no entanto, eu me descubro invulnerável. Sinto-me como vencedor! Sou, em cada segundo, vencedor!
Atingidos?
Não…
Eles não foram atingidos. São invulneráveis. São vencedores. Eu sou dono de uma tripulação de vencedores…
Doravante, cada explosão parece não nos ameaçar, mas nos endurecer. Cada vez, durante um décimo de segundo, imagino meu aparelho pulverizado. Mas ele ainda responde aos comandos, e eu o soergo, como a um cavalo, puxando duramente as rédeas. Então relaxo, e sou invadido por um júbilo surdo. Mal tive tempo de sentir medo senão como uma contração física, aquela que um barulhão provoca, e já me é concedido o suspiro da libertação. Eu deveria sentir o tranco do choque, depois o medo, depois o relaxamento. Que nada! Não dá tempo! Eu sinto o tranco, em seguida o relaxamento. Tranco, relaxamento. Falta uma etapa: o medo. E não vivo a expectativa de morrer no segundo seguinte, vivo a ressureição, ao findar do segundo anterior. Vivo numa espécie de rastro de alegria. Vivo na trilha de meu júbilo. E começo a sentir um prazer prodigiosamente inesperado… É como se minha vida me fosse, a cada segundo, ofertada. Como se minha vida me tornasse, a cada segundo, mais sensível. Eu vivo. Estou vivo. Estou ainda vivo. Continuo vivo. Não sou mais do que uma fonte de vida. A embriaguez da vida me toma. Diz-se “a embriaguez do combate…”. É a embriaguez da vida! É! Quem atira contra nós lá de baixo sabe que nos forja?

Reservatórios de óleo, reservatórios de gasolina, está tudo furado. Dutertre disse: “Acabou! Suba!”. Mais uma vez, meço com os olhos a distância que me separa das nuvens e cabro. Mais uma vez, jogo o avião para a esquerda, depois para a direita. Uma vez ainda, dou uma olhada na terra. Não esquecerei essa paisagem. A planície inteira crepita em curtas mechas luminosas. Sem dúvida, canhões de tiro rápido. A ascensão dos glóbulos prossegue no imenso aquário azulado. A chama de Arras brilha em vermelho-escuro, como um ferro sobre a bigorna, essa chama de Arras bem instalada nas reservas subterrâneas, por onde o suor dos homens, a invenção dos homens, a arte dos homens, as lembranças e o patrimônio dos homens, amarrando sua ascensão nessa cabeleira, transforma-se em queimada que o vento leva.
Já esbarro nos primeiros pacotes de bruma. Ainda há, à nossa volta, flechas de ouro ascendentes que perfuram por baixo o ventre da nuvem. A última imagem me é ofertada quando a nuvem já me encerra, por um último buraco. Durante um segundo, a chama de Arras surge, iluminada pela noite como um lampião a óleo de bojo profundo. Ela serve um culto, mas custa caro. Amanhã ela terá consumido e consumado tudo. Trago meu testemunho das chamas de Arras.
Tudo bem, Dutertre?
Tudo, Capitão. Duzentos e quarenta. Em vinte minutos, desceremos sob a nuvem. Vamos nos referenciar em algum lugar sobre o Sena…
Tudo bem, Artilheiro?
Hã… Sim… Capitão… Tudo bem.
Não sentiu muito calor?
Hã… Não… Sim.
Ele não sabe nada. Está contente. Penso no artilheiro de Gavoille. Uma noite, sobre o Reno, oitenta projéteis de guerra atingiram Gavoille com seus feixes. Ergueram à sua volta uma gigantesca basílica. E eis que o tiro se mistura ali. Gavoille ouve então seu artilheiro falar consigo mesmo, baixinho. (Os laringofones são indiscretos.) O artilheiro se faz suas próprias confidências: “Pois então, meu velho. Pois então, meu velho… Sempre se pode fugir e acabar achando a mesma coisa como civis!”. Estava contente o artilheiro.
Respiro com lentidão. Encho bem o peito. É maravilhoso respirar. Há um monte de coisas que vou compreender… Mas primeiro penso em Alias. Não. É primeiro naquele fazendeiro que eu penso. Eu o interrogarei sobre o número de instrumentos… Eh! O que o senhor acha! Eu sei muito bem aonde quero chegar. Cento e três. A propósito, é bom ficar de olho na pressão do óleo quando os reservatórios de gasolina estão furados, bom cuidar desses instrumentos! Eu cuido disso. Os revestimentos de borracha aguentam o tranco. Isso é um aperfeiçoamento maravilhoso! Eu verifico também os giroscópios: essa nuvem é pouco habitável. Uma nuvem de tempestade. Ela nos sacode muito.
O senhor não acha que poderíamos descer?
Dez minutos. Melhor esperarmos mais dez minutos.
Esperarei ainda dez minutos. Ah! Sim, eu estava pensando em Alias. Será que ele imagina nos rever? Outro dia estávamos atrasados uma meia hora. Meia hora, em geral, é grave… Corri para encontrar o grupo, que estava jantando. Empurro a porta, caio numa cadeira ao lado de Alias. Bem naquele instante, o comandante levantava seu garfo enrolado com macarrão. Apressava-se em devorá-lo. Mas sobressalta, interrompe-se na hora, e me fita, com a boca aberta. O macarrão pende imóvel.
Ah! Bem… Fico contente de vê-lo!
E devora o macarrão.
Para mim, o comandante tem um defeito grave. Obstina-se em interrogar o piloto sobre os aprendizados da missão. Ele me interrogará. Ele me olhará com uma paciência apavorante, esperando que eu lhe dite verdades primárias. Estará armado de uma folha de papel e de uma caneta esferográfica a fim de não perder uma só gota desse elixir. Isso me lembrará minha juventude: “Como o senhor integra, candidato Saint-Exupéry, as equações de Bernoulli?”.
Hã…
Bernoulli… Bernoulli… E ficamos assim, imóveis; sob aquele olhar, como um inseto transpassado por um grampo.
Cabe a Dutertre o aprendizado da missão. Ele observa na vertical, Dutertre. Ele vê um monte de coisas. Caminhões, lanchas, tanques, soldados, canhões, cavalos, estações, trens nas estações, chefes de estação. Eu observo muito em oblíquo. Eu vejo nuvens, o mar, rios, montanhas, o sol. Observo muito genericamente. Faço uma ideia do conjunto.
O senhor sabe, Comandante, que o piloto…
Ora, vejamos, a gente sempre vê alguma coisa.
Eu… Ah! Incêndios! Vi incêndios. É interessante.
Não é. Queima tudo. O que mais?
Por que Alias é tão cruel?

Antoine de Saint-Exupéry, in Piloto de Guerra

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