domingo, 13 de agosto de 2023

Piloto de Guerra | XIX


Cento e setenta e dois.
Entendido. Cento e setenta e dois.
O.k., cento e setenta e dois. Epitáfio: “Manteve corretamente o rumo cento e setenta e dois na bússola”. Quanto tempo esse desafio bizarro aguentará? Navego a setecentos metros de altitude sob um teto de nuvens carregadas. Se subisse trinta metros, Dutertre já ficaria cego. É preciso ficar bem visíveis e oferecer assim ao tiro alemão um alvo para aprendizes. Setecentos metros é uma altitude proibida. Servimos de mira a toda uma planície. Atraímos os tiros de todo um exército. Somos acessíveis a todos os calibres. Permanecemos uma eternidade no campo de tiro de cada uma das armas. Não são mais tiros, são varas. É como se desafiássemos mil varas a abater uma noz.
Estudei bem o problema: paraquedas está fora de cogitação. Quando o avião avariado mergulhar em direção ao solo, demorarei mais segundos abrindo o canopi do que dura a queda. Essa abertura exige sete voltas de uma manivela resistente. Para piorar, à plena velocidade, o canopi se deforma e não corre mais.
É assim. Um dia seria preciso engolir esse remédio! O cerimonial não é complicado: manter o rumo cento e setenta e dois. Eu fiz mal de envelhecer. Pronto. Era tão feliz na infância. Digo isso, mas é verdade? Eu já andava no meu vestíbulo no rumo cento e setenta e dois. Por causa dos tios.
É agora que a infância se torna doce. Não somente a infância, mas toda a vida passada. Eu a vejo em sua perspectiva, como um campo…
E me parece que sou um. O que sinto, sempre conheci. Minhas alegrias ou tristezas sem dúvida mudaram de objeto, mas os sentimentos permaneceram os mesmos. Eu era assim feliz ou infeliz. Punido e perdoado. Ia bem na escola. Ia mal. Dependendo dos dias…
Minha lembrança mais longínqua? Eu tinha uma governanta tirolesa que se chamava Paula.
Mas nem é uma lembrança: é a lembrança de uma lembrança. A Paula, quando eu tinha cinco anos, no meu vestíbulo, já não passava de uma lenda. Durante anos, minha mãe nos disse, na época do Ano-Novo: “Tem uma carta da Paula!”. Era uma grande alegria para nós, as crianças. No entanto, por que ficávamos felizes? Ninguém entre nós se lembrava da Paula. Ela havia retornado ao seu Tirol. Então, à sua casa tirolesa. Uma espécie de chalé-barômetro perdido na neve. E a Paula se mostrava à porta, nos dias de sol, como em todos os chalés-barômetros.
A Paula é bonita?
Deslumbrante.
Faz sempre tempo bom no Tirol?
Sempre.
Sempre fazia tempo bom no Tirol. O chalé-barômetro levava a Paula para muito longe, em seu gramado de neve. Quando aprendi a escrever, fizeram-me escrever cartas à Paula. Eu lhe dizia: “Minha cara Paula, estou muito contente em escrever-lhe…”. Era um pouco como as orações, pois eu não a conhecia…
Cento e setenta e quatro.
Entendido. Cento e setenta e quatro.
O.k., cento e setenta e quatro. Será preciso mudar o epitáfio. É curioso como, de repente, a vida se amontoou. Fiz minhas bagagens de lembranças. Nunca servirão para nada. Nem a ninguém. Tenho lembrança de um grande amor. Minha mãe nos dizia: “A Paula diz que manda beijos a todos…”. E minha mãe nos beijava a todos pela Paula.
A Paula sabe que eu cresci?
Claro. Ela sabe.
A Paula sabia tudo.
Capitão, eles estão atirando.
Paula, estão atirando em mim! Dou uma olhada no altímetro: seiscentos e cinquenta metros. As nuvens estão a setecentos metros. Bem. Não posso fazer nada. Mas sob minha nuvem, o mundo não é tão enegrecido como eu pressentia: é azul. Maravilhosamente azul. É a hora do crepúsculo e a planície está azul. Em alguns lugares, chove. Azul de chuva…
Cento e sessenta… e oito.
Entendido. Cento e sessenta… e oito.
Tá bom, cento e sessenta e oito. O caminho para a eternidade faz muitos zigue-zagues. O mundo parece um pomar. Há pouco, ele se mostrava na aspereza de uma maquete. Tudo me parecia desumano. Mas estou voando baixo, numa espécie de intimidade. Há árvores isoladas ou agrupadas, em pequenos blocos. Nós os encontramos. E campos verdes. E casas de telhas vermelhas com alguém diante da porta. E no entorno, belos temporais azuis. A Paula, com esse tempo, sem dúvida nos recolheria rápido…
Cento e setenta e cinco.
Meu epitáfio perde muito de sua rude nobreza: “Manteve cento e setenta e dois, cento e setenta e quatro, cento e setenta e oito, cento e setenta e cinco…”. Mais parece que sou versátil. Olha! Meu motor está falhando! Esfria. Fecho então as abas de arrefecimento do capô. Bom. Como é hora de abrir o reservatório suplementar, puxo a alavanca. Não esqueci nada? Dou uma olhada na pressão do óleo. Tudo em ordem.
Está começando a fechar o tempo, Capitão…
Ouviu, Paula? O tempo está começando a fechar. No entanto, não consigo deixar de me surpreender com esse azul da noite. É tão extraordinário! Essa cor é tão profunda. E essas árvores frutíferas, essas ameixeiras, talvez, que desfilam. Entrei nessa paisagem. Acabaram-se as vitrines! Sou um gatuno que pulou o muro. Ando a grandes passos numa alfafa molhada e roubo ameixas. Paula, é uma guerra de mentira. É uma guerra melancólica e toda azul. Eu me perdi um pouco. Achei esse estranho país ao envelhecer… Oh, não, eu não tenho medo. É um pouco triste e só.

Ziguezagueie, Capitão!
Essa é uma brincadeira nova, Paula! Uma pisada à direita, outra à esquerda, a gente desvia o tiro. Quando eu caía, fazia calombos. E você me curava sem dúvida com compressas de arnica. Eu vou precisar desesperadamente de arnica. Você sabe, de todo jeito… É maravilhoso o azul da noite!
Vi, lá na frente, três disparos divergentes. Três longas hastes verticais e brilhantes. Trilhas de balas luminosas ou obuses luminosos de pequeno calibre. Estava tudo dourado e vi bruscamente, no azul da noite, jorrar o brilho desse candelabro de três hastes…
Capitão! À esquerda, estão atirando muito forte! Incline!
Pisada funda.
Ah, está piorando…
Talvez…
Está piorando, mas eu estou no interior das coisas. Disponho de todas as minhas lembranças e de todas as provisões que estoquei, e de todos os meus amores. Disponho de minha infância que se perde na noite como uma raiz. Comecei a vida na melancolia de uma lembrança. Fica pior, mas eu não reconheço nada em mim do que eu pensava sentir diante desses arranhões de estrelas cadentes.
Estou numa região que me toca o coração. É o fim do dia. Há grandes aberturas de luz, entre os temporais, à esquerda, que formam pedaços de vitral. Quase apalpo, a dois passos de mim, todas as coisas que são boas. Há ameixeiras carregadas. Essa terra com cheiro de terra. Deve ser bom andar através das terras úmidas. Você sabe, Paula, avanço lentamente, balançando da direita à esquerda, como uma carroça de feno… Você acha isso rápido, um avião… Claro, se você pensar! Mas se você esquecer a máquina, se olhar, você simplesmente passeia pelo campo.
Arras…
Sim. Muito longe lá na frente. Mas Arras não é uma cidade. Arras é apenas uma mecha vermelha no fundo azul da noite. No fundo do temporal, decididamente, da esquerda e à frente, é um famoso grão que se prepara. O crepúsculo não explica essa meia-luz. É preciso maciços de nuvens para filtrar uma luz tão sombria…
A chama de Arras aumentou. Não é uma chama de incêndio. Um incêndio se espalha como um câncer, tendo, em volta, um simples rebordo de carne viva. Mas essa mecha vermelha, alimentada permanentemente, é a de um lampião que fumega um pouco. É uma chama sem nervosismo, segura de que durará, bem instalada em sua provisão de óleo. Eu a sinto moldada numa carne compacta, quase pesada, que o vento move, às vezes, como inclinaria uma árvore. Aí está… Uma árvore. Essa árvore tomou Arras no emaranhado de suas raízes. E todos os sulcos de Arras, todas as provisões de Arras, todos os tesouros de Arras sobem, carregados de seiva, para nutrir a árvore.
Vejo essa chama, às vezes pesada demais, perder o equilíbrio à direita ou à esquerda, cuspir uma fumaça mais escura e novamente reconstruir-se. Mas ainda não distingo a cidade. Toda a guerra se resume a esse clarão. Dutertre disse que está piorando. Ele observa, na frente, melhor do que eu. Não impede que eu seja surpreendido primeiro por uma espécie de indulgência, essa planície venenosa lança poucas estrelas.
Sim, mas… Sabe, Paula, nos contos de fada da infância, o cavaleiro andava, através de terríveis provações, em direção a um castelo misterioso e encantado. Ele escalava geleiras, atravessava precipícios, desarmava traições. Enfim, o castelo lhe aparecia, no coração de uma planície azul, macia ao galope como um gramado. Ele já se acreditava vencedor… Ah! Paula, não se desfaz uma velha experiência de contos de fada! Era sempre isso o mais difícil…
Corri assim para meu castelo de fogo, no azul da noite, como outrora… Você partiu cedo demais para conhecer nossas brincadeiras, você perdeu o “Cavaleiro Aklin”. Era uma brincadeira que inventamos, pois desprezávamos as brincadeiras dos outros. Brincávamos nos dias de grande temporal, quando, depois dos primeiros raios, sentíamos, com o cheiro das coisas e no brusco tremular das folhas, que a nuvem estava prestes a descarregar. A espessura dos galhos se transformava, então, por um instante, em espuma ruidosa e leve. Era o sinal… Nada podia nos deter!
Corríamos do fundo extremo do parque em direção à casa, ao longo dos gramados, até perder o fôlego. As primeiras gotas do temporal são pesadas e espaçadas. O primeiro atingido confessava-se vencido. Depois o segundo. Depois o terceiro. Depois os demais. O último sobrevivente se revelava assim o protegido dos deuses, o invulnerável! Tinha direito, até o próximo temporal, de chamar-se “Cavaleiro Aklin”…
Era, toda vez, por alguns segundos, uma hecatombe de crianças…
Ainda estou brincando de cavaleiro Aklin. Para meu castelo de fogo eu vou correndo longamente, até perder o fôlego…
Mas eis que:
Ah! Capitão. Eu não tinha visto isso…
Também nunca tinha visto aquilo. Não estou mais invulnerável. Ah! Eu não sabia que tinha esperanças…

Antoine de Saint-Exupéry, in Piloto de Guerra

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