Acompanhávamos
o corpo de Jayme Ovalle, quando Dante Milano falou baixinho: “É um
mundo de poesia irrealizada que se sepulta”. Com isso, aludia ao
dom poético profundo, a que faltara expressão vocabular; mas esse
dom se manifestara tanto na vida conversada, e mesmo na expressão
musical, que era bem um poeta que sabíamos estar enterrando, e não
sentíamos necessidade de confrontá-lo com a obra deixada, e sim
consigo mesmo: o poeta sem versos Ovalle emergia serenamente do mito
Ovalle, elaborado por duas gerações distintas — a de seus
companheiros de mocidade, e outra mais recente, que o redescobrira
aqui e no estrangeiro.
O
mito Ovalle, por mais particular e adstrito a um pequeno grupo de seu
convívio, não seria apenas criação de amigos, à luz da simpatia.
Repousava por certo na originalidade do homem, que conseguira
mover-se à sua maneira entre símbolos cristãos e amorosos,
tornando-se um cristão e um amoroso sui generis. Uma frase de Ovalle
não era rigorosamente “coisa engraçada” ou “bola”, mas uma
iluminação lírica e humorística da qual se podiam extrair noções
mais ou menos filosóficas sobre o mundo, a alma, os sentimentos e as
coisas que acompanham o homem pela vida. Ele não saberia reduzir
essas noções pressentidas a um corpo lógico, mas a verdade é que,
a seu modo, penetrava no mundo das essências, e dele recolhia
imagens sábias e loucas, que viriam infundir nos companheiros uma
emoção de conhecimento fantástico e intuitivo.
Vamos
admitir que o mito se comprouvesse com sua legenda; que o homem
Ovalle se despedisse de bom grado da forma comum, para se instalar no
personagem fabuloso e metafísico, que se criara com o tempo; às
vezes, julguei vê-lo procurar laboriosamente alguma coisa que
correspondesse a essa criação perturbadora. Um certo automatismo
psicológico pode mesmo conservar aparentemente ativo aquilo que já
secara raízes no ser. Mas pesquisando bem no fundo, Ovalle achava
sempre o que quer que fosse de autêntico, de ovalliano; e a ingênua
mistificação terminava em prova de que ele via de fato o mundo com
olhos diferentes.
De
sua visão ou percepção inconfundível das coisas, guardo uma
lembrança, a propósito do falecimento de Jorge de Lima. Os dois
eram vizinhos, e da varanda do apartamento de um se via o edifício
onde morava o outro, ambos com vista larga sobre mar e céu. Ovalle
recebeu pelo telefone a notícia da morte de Jorge; seu movimento
natural foi chegar à varanda. “Olhei e vi que Jorge não estava
mais”, contou-me ele. Nunca tive impressão mais nítida de fluido
que se evola no espaço imenso, do que essa produzida pela palavra de
Ovalle, a sentir no ar a morte do amigo marcando ausência e
presença.
Na
encomendação, o padre dizia com a maior naturalidade: “Coros de
anjos te aguardam à porta do Paraíso, tendo à frente o arcanjo São
Gabriel, e entrarás com eles”. Não sou homem de anjos, nem
espero, por falta de merecimento pessoal, encontrá-los junto a
nenhuma porta, mas no caso especial de Jayme Ovalle, acredito
piamente que os anjos o esperaram sexta-feira, cantando talvez o
“Azulão”, talvez coisas mais festivas ou celestiais; e acredito
ainda que Ovalle se tenha comportado com eles sem nenhuma cerimônia,
mesmo porque, como a Irene do seu parceiro Manuel Bandeira, ele era
desses com direito a entrar no Céu sem pedir licença.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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