quarta-feira, 14 de junho de 2023

O que é arte? | Capítulo IV

Ulisses e as sereias (1867), de Léon Belly

O que se pode tirar de todas essas definições de beleza oferecidas pela ciência da estética? Se pusermos de lado as definições totalmente imprecisas, que não cobrem a ideia de arte e supõem que a beleza consiste ora em utilidade, ora em conveniência, ora em simetria, ou em ordem, proporcionalidade, elegância, ou em harmonia das partes, ou em unidade dentro da diversidade, ou em várias combinações desses princípios todos, as definições estéticas da beleza se resumem a duas visões fundamentais. Uma, de que a beleza é algo que existe em si mesmo, uma manifestação do absolutamente perfeito — ideia, espírito, vontade, Deus. Outra, de que a beleza é um certo prazer que experimentamos, que não tem o benefício pessoal como seu objetivo.
A primeira definição foi adotada por Fichte, Schelling, Hegel, Schopenhauer e pelos franceses filosofantes — Cousin, Jouffroy, Ravaisson et al., para não mencionar os filósofos estetas de segunda linha.
A mesma definição objetivo-mística de beleza é sustentada pela maior parte das pessoas instruídas de nossa época. É uma compreensão da beleza muito disseminada, especialmente entre os da geração mais velha.
A segunda definição de beleza, como um certo prazer que recebemos e que não tem nenhum benefício pessoal como objetivo, é disseminada principalmente entre os estetas ingleses e compartilhada pela outra parte, geralmente mais jovem, de nossa sociedade.
Assim, existem (e não poderia ser de outra maneira) apenas duas definições de beleza: uma, objetiva e mística, que mistura esse conceito com a mais alta perfeição, com Deus — uma definição fantástica que não se baseia em coisa alguma; a outra, ao contrário, uma definição subjetiva bem simples e clara, que considera que a beleza é aquilo que é agradável (não acrescento “sem objetivo ou benefício”, porque a palavra agradável em si implica essa ausência de qualquer consideração de vantagem).
Por um lado, a beleza é entendida como algo místico e muito exaltado, mas, infelizmente, muito indefinido, e que abrange, consequentemente, a filosofia, a religião e a própria vida, como em Schelling, Hegel e seus seguidores alemães e franceses. Ou, por outro lado, conforme a definição de Kant e seus seguidores, a beleza é somente um tipo particular de prazer desinteressado que recebemos. Neste caso, o conceito de beleza, embora aparentemente muito claro, infelizmente é também impreciso, porque se expande na outra direção — ou seja, ele inclui o prazer derivado do beber, comer, tocar uma pele macia etc., como se admite em Guyau, Kralik et al.
É verdade que, seguindo o desenvolvimento da doutrina referente à beleza, pode-se observar que a princípio, a partir da época em que a estética emergiu como ciência, a definição metafísica da beleza prevalecia, ao passo que quanto mais nos aproximamos de nossa própria época, mais emerge uma definição prática, que recentemente adquiriu um aspecto fisiológico, de forma que chegamos mesmo a estetas como Véron e Sully, que tentam prescindir totalmente do conceito de beleza. Mas tais estetas têm muito pouco sucesso, e a maioria do público, bem como dos artistas e estudiosos, agarra-se firmemente ao conceito de beleza tal como definido pela maior parte dos sistemas estéticos — ou seja, de que ela é algo místico ou metafísico, ou de que é um tipo especial de prazer.
O que é, essencialmente, esse conceito de beleza ao qual as pessoas do nosso círculo e época se agarram tão teimosamente para a definição de arte?
Chamamos de beleza, no sentido subjetivo, aquilo que nos traz um certo tipo de prazer. No sentido objetivo, chamamos de beleza algo absolutamente perfeito que existe fora de nós. Mas, como reconhecemos o absolutamente perfeito que existe fora de nós e o percebemos como tal somente porque recebemos um certo tipo de prazer da sua manifestação, significa que a definição objetiva não é senão a subjetiva expressa diferentemente. De fato, ambas as noções de beleza se reduzem a um certo tipo de prazer que recebemos, o que significa que reconhecemos como beleza aquilo que nos agrada sem despertar nosso desejo. Em tal situação, pareceria natural para a ciência da arte não se contentar com uma definição de arte baseada na beleza — isto é, no que é agradável — e buscar uma definição geral, aplicável a todas as obras artísticas, com base na qual seria possível solucionar a questão do que pertence ou não pertence à arte. Mas como o leitor pode ver pelas passagens que citei de livros sobre estética, e pode ver mais claramente ainda nas próprias obras, se se der ao trabalho de lê-las, não existe tal definição. Todas as tentativas de definir a beleza absoluta em si mesma — como imitação da natureza, como propósito, como correspondência de partes, simetria, harmonia, unidade na diversidade, e assim por diante — ou não definem nada ou definem somente certas características de certas obras de arte, e estão longe de abranger tudo o que todas as pessoas sempre consideraram e ainda consideram ser arte.
Uma definição da arte não existe; as existentes, tanto as metafísicas quanto as práticas, resumem-se a uma e mesma definição subjetiva, que, por mais estranho que possa ser, é a visão da arte como manifestação da beleza, e da beleza como aquilo que agrada (sem suscitar desejo). Muitos estetas perceberam a inadequação e a instabilidade de uma tal definição e, com o propósito de dar-lhe substância, perguntaram a si mesmos o que é agradável e por quê, transferindo assim a questão da beleza para a questão do gosto, como fizeram Hutcheson, Voltaire, Diderot et al. Mas (como o leitor pode ver tanto pela história da estética como pela experiência) as tentativas de definir o gosto não levam a lugar algum, e não há nem poderá haver nunca uma explicação de por que uma coisa é agradável a um homem e não o é a outro, e vice-versa. Assim sendo, a estética existente, como um todo, não consiste em algo que se esperaria de uma atividade intelectual que chama a si própria de ciência — a saber, definir as propriedades e leis da arte ou do belo (se é este o conteúdo da arte), ou definir as propriedades do gosto (se é este que decide a questão da arte e o seu valor), e então, com base nessas leis, reconhecer como arte as obras que se ajustam a elas e rejeitar as que não se ajustam —, mas, em vez disso, ela consiste em primeiro reconhecer um certo tipo de trabalho como bom porque nos agrada e, então, construir uma teoria da arte que inclua todas as obras consideradas agradáveis por um certo círculo de pessoas. Existe um cânone artístico segundo o qual as obras favoritas do nosso círculo são reconhecidas como arte (Fídias, Sófocles, Homero, Ticiano, Rafael, Bach, Beethoven, Dante, Shakespeare, Goethe et al.), e os juízos estéticos devem ser tais que possam abarcar todas elas. Não é difícil achar na literatura sobre estética julgamentos do valor e do significado da arte com base não em leis conhecidas, segundo as quais consideramos este ou aquele objeto bom ou mau, mas, sim, se o objeto se conforma ao cânone artístico que estabelecemos. Um dia desses eu estava lendo um livro muito simpático de Volkelt. Discutindo as exigências de moralidade em obras de arte, o autor diz sem rodeios que é errado trazer para a arte qualquer exigência moral, e como prova aponta que, se isso fosse admitido, Romeu e Julieta, de Shakespeare, e Mestre Guilherme, de Goethe, não seriam classificados como boa arte. Como essas duas obras pertencem ao cânone artístico, tal exigência seria incorreta. Deve-se encontrar, portanto, uma definição de arte que permita que essas obras caibam dentro dela. No lugar da exigência de moralidade, Volkelt postula como base da arte a existência de significação (Bedeutungsvolles).
Todos os sistemas estéticos existentes são construídos segundo esse plano. Em vez de dar uma definição de arte verdadeira e, então, conforme uma obra caiba ou não nessa definição, julgar o que é arte e o que não é, um certo grupo de obras consideradas agradáveis por pessoas de um determinado círculo é reconhecido como arte, e uma definição de arte que inclua todas elas é então inventada. Recentemente me deparei com uma notável confirmação desse método em um livro muito bom, History of Nineteenth Century Art [História da arte do século XIX], de Muther. Propondo-se a descrever os pré-rafaelitas, os decadentes e os simbolistas, que já foram recebidos no cânone da arte, a obra não apenas não ousa denunciar essa tendência, mas faz um grande esforço para expandir sua estrutura de forma a incluir aí os acima citados, que lhe parecem ser uma reação legítima aos excessos do naturalismo. Quaisquer que sejam os desatinos cometidos na arte, uma vez que são aceitos na camada superior de uma sociedade, elabora-se imediatamente uma teoria para explicar e legitimar esses desatinos, como se nunca tivesse havido época na história em que certos círculos excepcionais de pessoas tivessem aceitado e aprovado arte falsa, feia e sem significado, que não deixou traço e foi totalmente esquecida mais tarde. E podemos ver, pelo que está acontecendo na arte do nosso círculo, a que grau de feiura e falta de sentido a arte pode chegar, especialmente quando, como agora, ela sabe que pode ser considerada infalível.
Assim, a teoria da arte baseada na beleza, exposta por estetas e professada em contornos vagos pelo público, não vai além de estabelecer que é bom aquilo que foi e é considerado agradável por nós — isto é, por um certo círculo de pessoas.
Para definir qualquer atividade humana, uma pessoa precisa entender seu significado e importância. E para isso é necessário antes de tudo examinar essa atividade em si mesma, como algo dependente de suas próprias causas e efeitos, e não com relação ao prazer que recebemos dela.
Mas se aceitarmos que o objetivo de qualquer atividade é meramente nosso próprio prazer, e a definirmos apenas por essa razão, essa definição obviamente será falsa. Isso é o que aconteceu com a definição de arte. Pois, ao analisar a questão do alimento, não ocorreria a ninguém ver a importância do alimento no prazer que obtemos ao comê-lo. Todo mundo entende que a satisfação do nosso gosto não pode de modo algum servir de base para definir os méritos do alimento, e que portanto não temos direito de supor que jantares com pimenta-de-caiena, queijo Limburger, álcool, e assim por diante, aos quais estamos acostumados e dos quais gostamos, representem o melhor alimento para a humanidade.
Exatamente da mesma maneira, a beleza, ou o que nos agrada, não pode de modo algum servir de base para definir a arte, assim como uma série de objetos que nos dão prazer não pode ser exemplo do que a arte deveria ser.
Ver o objetivo e propósito da arte no prazer que obtemos dela é o mesmo que atribuir o objetivo e a importância do alimento ao prazer que temos ao comê-lo, como pessoas que estão no mais baixo nível de desenvolvimento moral (selvagens, por exemplo).
Da mesma forma que elas não podem perceber o verdadeiro significado do comer, também as pessoas que pensam que o objetivo da arte é o prazer não podem saber seu significado e propósito, porque atribuem a uma atividade que tem significado em relação a outros fenômenos da vida o objetivo falso e exclusivo do prazer. As pessoas compreendem que o significado do comer é a nutrição do corpo somente quando cessam de considerar que o prazer é o objetivo dessa atividade. Reconhecer como objetivo da arte a beleza, ou o tipo de prazer que se obtém dela, não apenas não contribui para definir o que a arte é, como, ao contrário, ao transferir a questão para um campo bastante estranho a ela — para discussões metafísicas, psicológicas, fisiológicas e mesmo históricas de por que tal obra é agradável para alguns e tal obra não é, ou é agradável a outros — torna essa definição impossível. E justamente da mesma forma que discutir por que uma pessoa gosta de peras e outra gosta de carne também não ajuda a definir o que é a essência da nutrição, a solução das questões de gosto na arte (às quais se reduzem involuntariamente todas as discussões sobre o assunto) não só não contribui para entender o que constitui essa atividade humana especial que chamamos arte, como torna esse entendimento completamente impossível.
À questão “O que é essa arte à qual são oferecidos em sacrifício o trabalho de milhões de pessoas, a própria vida das pessoas e mesmo a moralidade?”, os sistemas estéticos existentes dão respostas que se reduzem, todas, a dizer que o objetivo da arte é a beleza, a qual é conhecida pelo prazer que dá, e que esse prazer é uma coisa boa e importante. Ou seja, que o prazer é bom porque é prazer. De sorte que o que é considerado a definição da arte não o é em absoluto. Trata-se apenas de um ardil para justificar os sacrifícios que são oferecidos pelas pessoas em nome dessa suposta arte, assim como o prazer egoísta e a imoralidade da arte existente. E, portanto, por mais estranho que seja dizê-lo, apesar das montanhas de livros escritos sobre o assunto, até hoje não foi feita uma definição precisa de arte. A razão disso é que o conceito de beleza foi colocado na base do conceito de arte.

Leon Tolstói, in O que é arte?

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