quarta-feira, 21 de junho de 2023

Naufrágios | Capítulo 5


[…]
No princípio de dezembro, chegou a vez de Isaku passar a noite na praia cuidando das fogueiras. O vento não estava muito forte, mas o mar estava agitado, envolvendo Isaku no barulho das ondas que quebravam enquanto ele jogava lenha no fogo. Sob a clara luz da lua, ele podia ver parcialmente o borrifo lançado no ar onde a maré baixa deixara partes do recife expostas.
Isaku sentou-se na cabana, aquecendo-se ao fogo enquanto observava o mar. Tudo que podia discernir à luz do luar era o movimento das ondas subindo e descendo e, apesar de todas as histórias, não podia imaginar O-fune-sama vindo de verdade.
Em dias calmos ele trabalhava arduamente, pescando, com Isokichi dando tudo de si no remo, sem nunca chorar quando recebia um tapa na cara por ter colocado os pés na posição errada ou por mover as costas de modo incorreto. Uma mistura de sangue e pus saía dos pontos onde a pele dos dedos das mãos e dos pés tinha se rompido.
A mãe estava dormindo com a irmãzinha, com Isaku e Isokichi deitados lado a lado. Ele estendeu a mão furtivamente e segurou a pequena mão ferida enquanto o irmão ressonava a seu lado. Isokichi sempre ressonava alto quando dormia, e ele normalmente tinha de ser sacudido com violência ou mesmo chutado pela mãe para acordar ao amanhecer.
Naquele ano, a neve veio mais tarde que de costume, mas quando apareceu foi como uma vingança, continuando, sólida, por três dias. As árvores ao redor da aldeia ficaram todas cobertas, e estalactites surgiram nos beirais dos telhados.
Numa noite no final de dezembro, Isaku teve um sonho. Ele ouvia uma voz vindo de longe na escuridão, saindo da água. De súbito a voz ficou mais próxima, e ele foi envolvido pelo som das ondas quebrando na praia. As ondas o alcançaram, e ele sentiu que estava cambaleando. Então escutou uma voz chamando-o pelo nome bem perto de seu ouvido. Era sua mãe. Ela estava batendo em sua cabeça e chutando-lhe os ombros.
Ele se ergueu nos cotovelos. A mãe o atingiu no rosto, gritando, os olhos muito abertos, o rosto fracamente iluminado pelas últimas brasas do fogo.
O-fune-sama! — gritava ela.
Isaku saltou para fora da cama. Podia ouvir as vozes dos outros lá fora. Não tinha a menor idéia do que fazer.
Coloque mais lenha no fogo — disse a mãe para Isokichi, que estava de pé, com expressão sonolenta. — Pegue um machado ou alguma coisa e desça para a praia — gritou ela, indo para o chão de terra, colocando a capa de chuva de palha e o chapéu de junco.
Isaku fez o mesmo e pegou seu facão enferrujado. Estava tremendamente agitado; seu coração batia acelerado com a ideia de que o tão esperado O-fune-sama havia finalmente chegado. Se fosse um barco cheio de carga, poderiam conseguir não apenas grãos, mas também arroz. Ele se lembrava do gosto doce da pequena quantidade de açúcar branco que a mãe tinha lhe dado quando ficara doente, quando bebê.
Isaku correu porta afora atrás da mãe, que levava um enxadão no ombro. O céu estava salpicado de estrelas, lançando uma luz pálida na trilha coberta de neve. O corpo dele tremia de forma incontrolável, e seus joelhos pareciam que iam ceder sob seu peso.
As pessoas corriam pela trilha quando Isaku chegou à praia. Pôde ver pessoas reunidas ao redor dos caldeirões de sal. Uma massa de madeira estava sendo colocada sob os caldeirões, e fagulhas saltavam no ar enquanto o fogo aumentava. Algumas pessoas seguravam tochas, iluminando a cena o suficiente para Isaku distinguir o rosto do chefe da aldeia.
Onde está O-fune-sama? — perguntou sua mãe.
Bem aqui na frente. Está inclinado de lado. Sem dúvida rasgou a lateral nas pedras — respondeu um dos homens, com a voz trêmula.
Isaku olhou para o mar. A espuma branca das ondas avançava com o mesmo ritmo de sempre, e borrifos frios caíam sobre eles cada vez que uma das ondas colidia com a areia. A medida que seus olhos se adaptaram à escuridão, ele conseguiu ver à luz das estrelas o que parecia ser um barco bem grande. O barco estava inclinado, enevoado pelos borrifos das ondas.
A boca de Isaku ficou seca. Lutando para encontrar um caminho no mar bravo, sem dúvida os tripulantes haviam confundido os fogos na praia com luzes de habitações e seguiram em sua direção, acabando por colidir com os recifes. Aquela era a primeira vez que Isaku via O-fune-sama. Veio à sua mente a ideia de que talvez o papel de Kura no ritual de O-fune-sama tivesse tido resultado, afinal.
Isaku sentiu vontade de gritar a plenos pulmões, mas o chefe da aldeia e os outros ficaram parados em silêncio, olhando para o mar. Com a chegada de O-fune-sama suas preces tinham finalmente sido atendidas, e parecia estranho para Isaku que ninguém estivesse pulando de alegria. Surpreso, ele lançava olhares furtivos para as faces ao redor.
E quanto a brasões nas velas? — ele ouviu alguém perguntar com uma voz penetrante.
É isso que não sabemos. O vento está tão forte que eles amarraram a vela. E está escuro. Não se consegue ver nada — disse uma voz irritada vinda de perto dos caldeirões.
Isaku por fim compreendeu por que estavam todos tão quietos, e sentiu vergonha por não ter percebido antes. O brasão nas velas indicaria se o barco pertencia a um clã ou se era um navio mercante. Estavam torcendo para que fosse um barco mercante, com sua promessa de maravilhas para a aldeia. Mas se fosse um barco de um clã, saquear a carga estaria fora de questão, pois correriam o risco de ser severamente castigados.
Kura ainda não está aqui? — perguntou o chefe da aldeia, sendo golpeado pelo vento.
Ela já deve chegar — disse um homem perto dele.
O chefe da aldeia pedira que Kura viesse novamente até a praia para representar outra vez a mulher grávida, e sem dúvida ele queria que ela orasse para que o barco soçobrado nos recifes fosse mercante.
Aqui está ela! — exclamou uma voz na multidão quando Kura chegou à praia e caminhou na direção do chefe acompanhada por Takichi, que trazia uma tocha flamejante na mão. A barriga dela estava enorme e ela se movia com dificuldade.
Kura se curvou para o chefe da vila, pegou a guirlanda sagrada das mãos dele e a segurou com reverência à sua frente antes de caminhar até a água e lançá-la no mar. O som dos sutras ergueu-se da multidão, e Isaku uniu-se a todos nas orações.
O frio ficou mais intenso, e os homens se revezaram jogando lenha nos fogos sob os caldeirões. Seguindo as instruções do chefe da aldeia, mais lenha foi trazida e um terceiro fogo foi aceso, ao redor do qual as pessoas se reuniam para se aquecer.
O vento começou a perder a força com os primeiros sinais da aurora. O céu noturno adquiriu tons azulados e as estrelas começaram a sumir. Os habitantes da aldeia mantiveram os olhos fixos no mar. Fontes de borrifos lançavam-se no ar dos dois lados do recife e, ali, em um dos amontoados de pedras, onde todos podiam ver, encontrava-se o barco naufragado. Ele balançava um pouco cada vez que era atingido pelas ondas.
Deve carregar duzentos fardos.
Acho que são trezentos — murmuravam os homens. As velas tinham sido baixadas, os brasões não podiam ser vistos. — Está completamente carregado.
Não havia dúvidas de que o tombadilho encontrava-se cheio do que parecia ser carga. Normalmente, se a tripulação achava que corria risco de afundar, eles cortavam as cordas que mantinham a carga no lugar e a lançavam no mar, tentando estabilizar o navio, mas naquele caso era mais provável que tivessem avistado as luzes e virado na direção da terra.
O céu clareou mais e os contornos do barco ficaram bem visíveis. A lona das velas amarradas para diminuir sua área exposta batia ao vento.
Posso ver o brasão — disse alguém em voz baixa.
Não é o brasão do daimyo. É um navio mercante! — gritou um dos homens.
Por um momento houve silêncio, então subitamente todos entraram em erupção. Os brasões dos navios dos clãs eram grandes e ficavam no meio das velas, mas o barco diante deles na água tinha apenas um pequeno brasão bem no alto da vela.
Isaku gritou extasiado junto com os outros.
A manhã na praia foi marcada por gritos de vibração e euforia. Algumas pessoas literalmente pulavam de alegria, enquanto outras saltitavam e corriam em círculos, chutando a neve.
Isaku ouviu o som de choro atrás de si; várias mulheres reunidas em um grupo desordenado estavam soluçando, sem dúvida tomadas pela dor e tristeza de suas vidas, vidas nunca livres do medo da fome. Lágrimas surgiram nos olhos de Isaku também. Se seu pai não se houvesse vendido como servo, talvez sua irmãzinha não tivesse morrido.
Fiquem quietos! — gritou o velho alto parado junto do chefe da aldeia. — Lá em O-fune-sama, tem gente lá.
O silêncio voltou a reinar quando os habitantes da aldeia ficaram imóveis, os olhares fixos no barco, cuja parte mais alta erguia-se acima do mar ondulante. Havia mesmo gente a bordo, homens sentados na base do mastro principal, as palmas unidas em prece enquanto olhavam para a praia.
O chefe da aldeia me pediu para comandar. Eu vou dar as ordens agora. Acalmem-se e façam o que eu disser. Antes de mais nada, precisamos de vigias. Gonsuke!
Um homem com um só braço se aproximou dos caldeirões.
Como sempre, você está encarregado dos vigias. Quero vigias nas Pontas da Maré e do Corvo. E não perca nada! — disse o velho, perfurando Gonsuke com um olhar de aço.
Gonsuke se curvou, virou-se para os outros e disse:
Kinta, você vai nos ajudar dessa vez.
Um homenzinho saiu da multidão e colocou-se junto de Gonsuke.
Sahei, Isaku. Vocês, jovens, têm boa visão. Vão vigiar junto com Gonsuke e Kinta — disse o velho.
Isaku não só ficou desapontado por lhe ser atribuída uma tarefa que não envolvia recolher a carga do barco naufragado, mas também incomodado porque queria muito ver o que o pessoal fazia com o tão esperado O-fune-sama. Mas seguiu Sahei e foi ficar junto de Gonsuke.
Certo, então vamos. Peguem tanta corda quanto conseguirem. E também machados, enxadas e martelos.
Com essas ordens, eles correram de volta para casa. Como que se preparando para a ação, o homem velho pegou um lenço no cinto e o amarrou ao redor da cabeça.
Gonsuke explicou a função dos vigias para Isaku e Sahei. Naqueles mares navegavam dois tipos de embarcação, os que velejavam em alto-mar e os que acompanhavam a linha da costa. Se algum barco passasse ao largo e os tripulantes vissem o que estava acontecendo, a aldeia seria severamente punida por roubar a carga. Os vigias tinham de ficar observando o mar da beira dos promontórios. Se avistassem alguma embarcação, deveriam usar um sinal de fumaça como aviso, e o chefe da aldeia interromperia de imediato os trabalhos no barco naufragado.
Eu fui escolhido porque enxergo bem de longe. Kinta também tem boa visão. E um trabalho importante. Vocês têm de manter os olhos bem abertos — instruiu Gonsuke.
Kinta e Sahei iriam para o Ponta da Maré a oeste, Gonsuke e Isaku para a Ponta do Corvo a leste.
Com o nascer do dia, os primeiros raios de sol surgiram por trás dos picos nevados das montanhas que circundavam a aldeia. O vento tinha cessado, mas o mar continuava revolto. O barco estava agora perfeitamente visível, com o grande leme partido ao meio e os guarda-mancebos da direita que deviam ter sido arrancados do tombadilho pela força das ondas. Dois homens continuavam junto do mastro, as mãos unidas em prece enquanto olhavam para a praia.
Isaku fez o que Gonsuke ordenou e correu de volta para casa, onde colocou alguns feijões cozidos em um saco que amarrou à cintura. A mãe devia ter ido para a casa do chefe da aldeia porque não havia sinal dela nem da irmãzinha.
Prendendo um machete na faixa da cintura, ele correu para fora da casa e tomou a trilha, onde encontrou Gonsuke esperando com um machado no ombro no começo do trecho na montanha. Os dois seguiram a trilha através da neve antes de subir pela encosta rochosa. Quanto mais subiam, mais conseguiam ouvir os corvos e ver as aves descansando as asas nos galhos das árvores. Gonsuke andava depressa, e Isaku transpirava profusamente no esforço para acompanhá-lo.
Logo chegaram ao alto do promontório. Era a primeira vez que Isaku ia até ali. Gonsuke abriu caminho na neve, afastando os galhos das árvores pequenas. Lá embaixo podiam ouvir as ondas poderosas arrebentando contra as pedras.
A área de vegetação terminou e eles saíram para uma clareira plana e aberta. Encontravam-se bem na ponta do cabo, com a aldeia à esquerda, do outro lado da baía. Podiam ver a água mais esbranquiçada perto do recife, e tinham uma visão clara do navio naufragado. Era o local ideal para posto de vigia. Na extremidade oposta da baía ficava a Ponta da Maré, também coberta por neve, projetando-se mar adentro. Isaku imaginou Sahei correndo atrás de Kinta a caminho da ponta.
Reúna galhos e troncos mortos — disse Gonsuke, apressado.
Isaku seguiu o homem de novo para a floresta e começou a recolher pedaços de madeira. Gonsuke usou sua machadinha para arrancar a casca de algumas árvores.
Gonsuke acendeu uma fogueira, acrescentando galhos secos assim que o fogo pegou. Isaku trabalhava com o machado, cortando galhos.
Se colocar neve nesses pedaços de casca de árvore e então os colocar no fogo, vai fazer bastante fumaça, para servir de sinal. Você fica de vigia — disse Gonsuke.
O mar brilhava sob o sol; nenhum único pássaro podia ser visto no céu claro. Isaku se encolheu por causa do vento frio e se aproximou do fogo, mantendo os olhos fixos no mar.
Eles começaram — disse Gonsuke.
Isaku olhou para baixo, para a baía. Havia vários barcos pequenos saindo da praia em direção ao navio naufragado.
Mantenha os olhos no mar — gritou Gonsuke, mas ele também estava olhando para baixo, para a baía.
A frota de barquinhos convergiu para o navio e acabou por cercá-lo, como uma horda de formigas ao redor de uma lagarta. Vários barcos se alinharam ao longo do navio, e Isaku viu pessoas subindo a bordo. Imaginou que estariam gritando com a tripulação do navio, mas o silêncio ali em cima era completo.
[…]

Akira Yoshimura, in Naufrágios

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