[…]
No
princípio de dezembro, chegou a vez de Isaku passar a noite na praia
cuidando das fogueiras. O vento não estava muito forte, mas o mar
estava agitado, envolvendo Isaku no barulho das ondas que quebravam
enquanto ele jogava lenha no fogo. Sob a clara luz da lua, ele podia
ver parcialmente o borrifo lançado no ar onde a maré baixa deixara
partes do recife expostas.
Isaku
sentou-se na cabana, aquecendo-se ao fogo enquanto observava o mar.
Tudo que podia discernir à luz do luar era o movimento das ondas
subindo e descendo e, apesar de todas as histórias, não podia
imaginar O-fune-sama vindo de verdade.
Em
dias calmos ele trabalhava arduamente, pescando, com Isokichi dando
tudo de si no remo, sem nunca chorar quando recebia um tapa na cara
por ter colocado os pés na posição errada ou por mover as costas
de modo incorreto. Uma mistura de sangue e pus saía dos pontos onde
a pele dos dedos das mãos e dos pés tinha se rompido.
A
mãe estava dormindo com a irmãzinha, com Isaku e Isokichi deitados
lado a lado. Ele estendeu a mão furtivamente e segurou a pequena mão
ferida enquanto o irmão ressonava a seu lado. Isokichi sempre
ressonava alto quando dormia, e ele normalmente tinha de ser sacudido
com violência ou mesmo chutado pela mãe para acordar ao amanhecer.
Naquele
ano, a neve veio mais tarde que de costume, mas quando apareceu foi
como uma vingança, continuando, sólida, por três dias. As árvores
ao redor da aldeia ficaram todas cobertas, e estalactites surgiram
nos beirais dos telhados.
Numa
noite no final de dezembro, Isaku teve um sonho. Ele ouvia uma voz
vindo de longe na escuridão, saindo da água. De súbito a voz ficou
mais próxima, e ele foi envolvido pelo som das ondas quebrando na
praia. As ondas o alcançaram, e ele sentiu que estava cambaleando.
Então escutou uma voz chamando-o pelo nome bem perto de seu ouvido.
Era sua mãe. Ela estava batendo em sua cabeça e chutando-lhe os
ombros.
Ele
se ergueu nos cotovelos. A mãe o atingiu no rosto, gritando, os
olhos muito abertos, o rosto fracamente iluminado pelas últimas
brasas do fogo.
— O-fune-sama!
— gritava ela.
Isaku
saltou para fora da cama. Podia ouvir as vozes dos outros lá fora.
Não tinha a menor idéia do que fazer.
— Coloque
mais lenha no fogo — disse a mãe para Isokichi, que estava de pé,
com expressão sonolenta. — Pegue um machado ou alguma coisa e
desça para a praia — gritou ela, indo para o chão de terra,
colocando a capa de chuva de palha e o chapéu de junco.
Isaku
fez o mesmo e pegou seu facão enferrujado. Estava tremendamente
agitado; seu coração batia acelerado com a ideia de que o tão
esperado O-fune-sama havia finalmente chegado. Se fosse um
barco cheio de carga, poderiam conseguir não apenas grãos, mas
também arroz. Ele se lembrava do gosto doce da pequena quantidade de
açúcar branco que a mãe tinha lhe dado quando ficara doente,
quando bebê.
Isaku
correu porta afora atrás da mãe, que levava um enxadão no ombro. O
céu estava salpicado de estrelas, lançando uma luz pálida na
trilha coberta de neve. O corpo dele tremia de forma incontrolável,
e seus joelhos pareciam que iam ceder sob seu peso.
As
pessoas corriam pela trilha quando Isaku chegou à praia. Pôde ver
pessoas reunidas ao redor dos caldeirões de sal. Uma massa de
madeira estava sendo colocada sob os caldeirões, e fagulhas saltavam
no ar enquanto o fogo aumentava. Algumas pessoas seguravam tochas,
iluminando a cena o suficiente para Isaku distinguir o rosto do chefe
da aldeia.
— Onde
está O-fune-sama? — perguntou sua mãe.
— Bem
aqui na frente. Está inclinado de lado. Sem dúvida rasgou a lateral
nas pedras — respondeu um dos homens, com a voz trêmula.
Isaku
olhou para o mar. A espuma branca das ondas avançava com o mesmo
ritmo de sempre, e borrifos frios caíam sobre eles cada vez que uma
das ondas colidia com a areia. A medida que seus olhos se adaptaram à
escuridão, ele conseguiu ver à luz das estrelas o que parecia ser
um barco bem grande. O barco estava inclinado, enevoado pelos
borrifos das ondas.
A
boca de Isaku ficou seca. Lutando para encontrar um caminho no mar
bravo, sem dúvida os tripulantes haviam confundido os fogos na praia
com luzes de habitações e seguiram em sua direção, acabando por
colidir com os recifes. Aquela era a primeira vez que Isaku via
O-fune-sama. Veio à sua mente a ideia de que talvez o papel
de Kura no ritual de O-fune-sama tivesse tido resultado,
afinal.
Isaku
sentiu vontade de gritar a plenos pulmões, mas o chefe da aldeia e
os outros ficaram parados em silêncio, olhando para o mar. Com a
chegada de O-fune-sama suas preces tinham finalmente sido atendidas,
e parecia estranho para Isaku que ninguém estivesse pulando de
alegria. Surpreso, ele lançava olhares furtivos para as faces ao
redor.
— E
quanto a brasões nas velas? — ele ouviu alguém perguntar com uma
voz penetrante.
— É
isso que não sabemos. O vento está tão forte que eles amarraram a
vela. E está escuro. Não se consegue ver nada — disse uma voz
irritada vinda de perto dos caldeirões.
Isaku
por fim compreendeu por que estavam todos tão quietos, e sentiu
vergonha por não ter percebido antes. O brasão nas velas indicaria
se o barco pertencia a um clã ou se era um navio mercante. Estavam
torcendo para que fosse um barco mercante, com sua promessa de
maravilhas para a aldeia. Mas se fosse um barco de um clã, saquear a
carga estaria fora de questão, pois correriam o risco de ser
severamente castigados.
— Kura
ainda não está aqui? — perguntou o chefe da aldeia, sendo
golpeado pelo vento.
— Ela
já deve chegar — disse um homem perto dele.
O
chefe da aldeia pedira que Kura viesse novamente até a praia para
representar outra vez a mulher grávida, e sem dúvida ele queria que
ela orasse para que o barco soçobrado nos recifes fosse mercante.
— Aqui
está ela! — exclamou uma voz na multidão quando Kura chegou à
praia e caminhou na direção do chefe acompanhada por Takichi, que
trazia uma tocha flamejante na mão. A barriga dela estava enorme e
ela se movia com dificuldade.
Kura
se curvou para o chefe da vila, pegou a guirlanda sagrada das mãos
dele e a segurou com reverência à sua frente antes de caminhar até
a água e lançá-la no mar. O som dos sutras ergueu-se da multidão,
e Isaku uniu-se a todos nas orações.
O
frio ficou mais intenso, e os homens se revezaram jogando lenha nos
fogos sob os caldeirões. Seguindo as instruções do chefe da
aldeia, mais lenha foi trazida e um terceiro fogo foi aceso, ao redor
do qual as pessoas se reuniam para se aquecer.
O
vento começou a perder a força com os primeiros sinais da aurora. O
céu noturno adquiriu tons azulados e as estrelas começaram a sumir.
Os habitantes da aldeia mantiveram os olhos fixos no mar. Fontes de
borrifos lançavam-se no ar dos dois lados do recife e, ali, em um
dos amontoados de pedras, onde todos podiam ver, encontrava-se o
barco naufragado. Ele balançava um pouco cada vez que era atingido
pelas ondas.
— Deve
carregar duzentos fardos.
— Acho
que são trezentos — murmuravam os homens. As velas tinham sido
baixadas, os brasões não podiam ser vistos. — Está completamente
carregado.
Não
havia dúvidas de que o tombadilho encontrava-se cheio do que parecia
ser carga. Normalmente, se a tripulação achava que corria risco de
afundar, eles cortavam as cordas que mantinham a carga no lugar e a
lançavam no mar, tentando estabilizar o navio, mas naquele caso era
mais provável que tivessem avistado as luzes e virado na direção
da terra.
O
céu clareou mais e os contornos do barco ficaram bem visíveis. A
lona das velas amarradas para diminuir sua área exposta batia ao
vento.
— Posso
ver o brasão — disse alguém em voz baixa.
— Não
é o brasão do daimyo. É um navio mercante! — gritou um dos
homens.
Por
um momento houve silêncio, então subitamente todos entraram em
erupção. Os brasões dos navios dos clãs eram grandes e ficavam no
meio das velas, mas o barco diante deles na água tinha apenas um
pequeno brasão bem no alto da vela.
Isaku
gritou extasiado junto com os outros.
A
manhã na praia foi marcada por gritos de vibração e euforia.
Algumas pessoas literalmente pulavam de alegria, enquanto outras
saltitavam e corriam em círculos, chutando a neve.
Isaku
ouviu o som de choro atrás de si; várias mulheres reunidas em um
grupo desordenado estavam soluçando, sem dúvida tomadas pela dor e
tristeza de suas vidas, vidas nunca livres do medo da fome. Lágrimas
surgiram nos olhos de Isaku também. Se seu pai não se houvesse
vendido como servo, talvez sua irmãzinha não tivesse morrido.
— Fiquem
quietos! — gritou o velho alto parado junto do chefe da aldeia. —
Lá em O-fune-sama, tem gente lá.
O
silêncio voltou a reinar quando os habitantes da aldeia ficaram
imóveis, os olhares fixos no barco, cuja parte mais alta erguia-se
acima do mar ondulante. Havia mesmo gente a bordo, homens sentados na
base do mastro principal, as palmas unidas em prece enquanto olhavam
para a praia.
— O
chefe da aldeia me pediu para comandar. Eu vou dar as ordens agora.
Acalmem-se e façam o que eu disser. Antes de mais nada, precisamos
de vigias. Gonsuke!
Um
homem com um só braço se aproximou dos caldeirões.
— Como
sempre, você está encarregado dos vigias. Quero vigias nas Pontas
da Maré e do Corvo. E não perca nada! — disse o velho, perfurando
Gonsuke com um olhar de aço.
Gonsuke
se curvou, virou-se para os outros e disse:
— Kinta,
você vai nos ajudar dessa vez.
Um
homenzinho saiu da multidão e colocou-se junto de Gonsuke.
— Sahei,
Isaku. Vocês, jovens, têm boa visão. Vão vigiar junto com Gonsuke
e Kinta — disse o velho.
Isaku
não só ficou desapontado por lhe ser atribuída uma tarefa que não
envolvia recolher a carga do barco naufragado, mas também incomodado
porque queria muito ver o que o pessoal fazia com o tão esperado
O-fune-sama. Mas seguiu Sahei e foi ficar junto de Gonsuke.
— Certo,
então vamos. Peguem tanta corda quanto conseguirem. E também
machados, enxadas e martelos.
Com
essas ordens, eles correram de volta para casa. Como que se
preparando para a ação, o homem velho pegou um lenço no cinto e o
amarrou ao redor da cabeça.
Gonsuke
explicou a função dos vigias para Isaku e Sahei. Naqueles mares
navegavam dois tipos de embarcação, os que velejavam em alto-mar e
os que acompanhavam a linha da costa. Se algum barco passasse ao
largo e os tripulantes vissem o que estava acontecendo, a aldeia
seria severamente punida por roubar a carga. Os vigias tinham de
ficar observando o mar da beira dos promontórios. Se avistassem
alguma embarcação, deveriam usar um sinal de fumaça como aviso, e
o chefe da aldeia interromperia de imediato os trabalhos no barco
naufragado.
— Eu
fui escolhido porque enxergo bem de longe. Kinta também tem boa
visão. E um trabalho importante. Vocês têm de manter os olhos bem
abertos — instruiu Gonsuke.
Kinta
e Sahei iriam para o Ponta da Maré a oeste, Gonsuke e Isaku para a
Ponta do Corvo a leste.
Com
o nascer do dia, os primeiros raios de sol surgiram por trás dos
picos nevados das montanhas que circundavam a aldeia. O vento tinha
cessado, mas o mar continuava revolto. O barco estava agora
perfeitamente visível, com o grande leme partido ao meio e os
guarda-mancebos da direita que deviam ter sido arrancados do
tombadilho pela força das ondas. Dois homens continuavam junto do
mastro, as mãos unidas em prece enquanto olhavam para a praia.
Isaku
fez o que Gonsuke ordenou e correu de volta para casa, onde colocou
alguns feijões cozidos em um saco que amarrou à cintura. A mãe
devia ter ido para a casa do chefe da aldeia porque não havia sinal
dela nem da irmãzinha.
Prendendo
um machete na faixa da cintura, ele correu para fora da casa e tomou
a trilha, onde encontrou Gonsuke esperando com um machado no ombro no
começo do trecho na montanha. Os dois seguiram a trilha através da
neve antes de subir pela encosta rochosa. Quanto mais subiam, mais
conseguiam ouvir os corvos e ver as aves descansando as asas nos
galhos das árvores. Gonsuke andava depressa, e Isaku transpirava
profusamente no esforço para acompanhá-lo.
Logo
chegaram ao alto do promontório. Era a primeira vez que Isaku ia até
ali. Gonsuke abriu caminho na neve, afastando os galhos das árvores
pequenas. Lá embaixo podiam ouvir as ondas poderosas arrebentando
contra as pedras.
A
área de vegetação terminou e eles saíram para uma clareira plana
e aberta. Encontravam-se bem na ponta do cabo, com a aldeia à
esquerda, do outro lado da baía. Podiam ver a água mais
esbranquiçada perto do recife, e tinham uma visão clara do navio
naufragado. Era o local ideal para posto de vigia. Na extremidade
oposta da baía ficava a Ponta da Maré, também coberta por neve,
projetando-se mar adentro. Isaku imaginou Sahei correndo atrás de
Kinta a caminho da ponta.
— Reúna
galhos e troncos mortos — disse Gonsuke, apressado.
Isaku
seguiu o homem de novo para a floresta e começou a recolher pedaços
de madeira. Gonsuke usou sua machadinha para arrancar a casca de
algumas árvores.
Gonsuke
acendeu uma fogueira, acrescentando galhos secos assim que o fogo
pegou. Isaku trabalhava com o machado, cortando galhos.
— Se
colocar neve nesses pedaços de casca de árvore e então os colocar
no fogo, vai fazer bastante fumaça, para servir de sinal. Você fica
de vigia — disse Gonsuke.
O
mar brilhava sob o sol; nenhum único pássaro podia ser visto no céu
claro. Isaku se encolheu por causa do vento frio e se aproximou do
fogo, mantendo os olhos fixos no mar.
— Eles
começaram — disse Gonsuke.
Isaku
olhou para baixo, para a baía. Havia vários barcos pequenos saindo
da praia em direção ao navio naufragado.
— Mantenha
os olhos no mar — gritou Gonsuke, mas ele também estava olhando
para baixo, para a baía.
A
frota de barquinhos convergiu para o navio e acabou por cercá-lo,
como uma horda de formigas ao redor de uma lagarta. Vários barcos se
alinharam ao longo do navio, e Isaku viu pessoas subindo a bordo.
Imaginou que estariam gritando com a tripulação do navio, mas o
silêncio ali em cima era completo.
[…]
Akira Yoshimura, in Naufrágios
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