quinta-feira, 15 de junho de 2023

Naufrágios | Capítulo 5

Os tons vermelhos e amarelos nas encostas mais distantes começaram a desbotar à medida que a temperatura caía com a passagem de cada dia. Numa manhã, quando o mar estava calmo, Isaku desceu para o chão de terra da casa quando sua mãe lhe falou:
Leve Isokichi com você de agora em diante.
Isaku olhou para o irmão mais novo, sentado junto do fogo, olhando para ele. De fato, a mãe queria que ele ensinasse Isokichi a remar e a pescar. Apesar de o menino já ter começado a carregar galhos secos da montanha até a casa deles, Isaku achava que seria uma tarefa difícil ensinar ao pequeno Isokichi como tornar-se um pescador.
Isokichi, por que ainda está aí sentado? — gritou a mãe, dando um tapa com força no rosto do menino.
Isokichi se levantou e correu para o chão de terra, levando a mão à face. Isaku pegou o remo no canto da sala, apoiou-o no ombro e deixou a casa. A mãe e Isokichi o acompanharam, com o equipamento de pesca nas mãos. Com um restinho da madrugada ainda no céu, não havia nenhuma nuvem à vista, o que prometia um dia claro de outono.
Ao caminhar para a praia, Isaku refletiu que já era hora de Isokichi começar a sair para a água. Ele próprio tinha começado a ser levado pelo pai na primavera do ano em que completara sete anos, e Isokichi alcançaria essa idade no Ano-Novo. Com o pai deles longe, sem dúvida a mãe queria que Isokichi se acostumasse a trabalhar no mar o mais depressa possível, para que começasse a ajudar Isaku. Tendo passado todo seu tempo pescando desde que o pai se fora, Isaku previa que o irmão, além de não ajudar muito, provavelmente o empataria, mas ainda assim ansiava por sair para a água com ele. Estava orgulhoso por ter a chance de ensinar a alguém como pescar.
Na praia, levaram o barco para a água. Isokichi fez muita força empurrando. Isaku fixou o remo e conduziu o barco para longe da areia. A mãe ficou olhando durante algum tempo antes de voltar apressada para casa.
Isokichi sentou-se de pernas cruzadas no fundo do barco, com um brilho nos olhos e um ar tranqüilo no rosto. Para ele, poder sair no mar para aprender a pescar era uma alegria maior que qualquer outra coisa.
Venha até aqui — disse Isaku. Fazendo o irmão segurar o remo, ele colocou a mão por cima da dele e moveu o remo na água. — Você trabalha o remo com o braço, não com a mão.
Ele ajustou os pés de Isokichi e deu um tapa na nuca dele para colocá-lo na posição adequada. Quando chegaram perto da água borbulhante ao redor das pedras, Isaku pegou o remo da mão do irmão e manobrou o barco ele mesmo.
Se você não souber virar a proa para mudar a direção, vai terminar nas pedras. Preste atenção no modo como eu trabalho o remo.
Isokichi observava com toda a atenção.
Isaku deteve o barco e lançou âncora antes de colocar isca no anzol preso à linha, que então lançou pela beirada. Não havia nada além de peixinhos pequenos a pescar, mas esses seriam secos e guardados para virar comida no inverno. Sempre que sentia uma fisgada no anzol, ele puxava a linha bem no momento certo e raramente perdia o peixe. Isokichi segurou o pequeno peixe saltando no fundo do barco com as duas mãos.
Isaku levou o barco de uma área de pedras para outra, deixando Isokichi pegar o remo no meio do percurso, remando com sua mão por cima da dele.
Dali em diante, ele passou os dias com Isokichi no mar. O irmão fazia pouco mais que controlar o remo e observá-lo pescar, mas mesmo isso parecia deixá-lo exausto. Logo depois de jantar ele começava a bocejar e ia se deitar em sua cama de palha.
As folhas nas árvores começaram a secar, e punhados de folhas eram levados da floresta pelo vento, caindo como chuva sobre a aldeia. O mar também começou a mostrar os primeiros sinais de inverno, os turbulentos ventos do noroeste tornaram-se mais frequentes, e a temperatura da água ficou muito fria.
Um dia, quando o mar estava calmo, depois de estarem na água por duas horas, um barco grande o bastante para carregar quatrocentos fardos apareceu contornando o cabo a oeste, seguido por outro com metade do tamanho; ambos desapareceram ao leste. Naquele período do ano o arroz recém-colhido era transportado por barco, e as pilhas de carga que se avistavam no tombadilho eram sem dúvida fardos de arroz.
No dia seguinte, seguindo as instruções do chefe da aldeia, uma cabana provisória foi erguida na praia, iniciando os preparos para extrair sal.
Depois de três dias de calmaria, um vento forte começou a soprar, e borrifos das ondas que colidiam com a encosta choviam sobre as casas mais próximas da orla. Os barcos foram puxados para longe da linha da água e amarrados a estacas fincadas no chão.
Naquela noite, os primeiros fogos foram acesos sob os caldeirões de sal. No caminho de volta do banheiro, Isaku parou e olhou para a praia. As chamas tremulavam ao vento, e ele via as pessoas se movendo ao redor dos caldeirões. Com o céu noturno encoberto, tudo que se podia ver na escuridão era a espuma branca das ondas quebrando perto dos caldeirões. De tempos em tempos ele sentia umidade no rosto.
Sua mãe juntou-se às outras mulheres para retirar o sal dos caldeirões e levá-lo à casa do chefe, carregando para a praia a contribuição de lenha da família para o fogo. Isaku levava Isokichi para pescar nos dias calmos, e à floresta para recolher galhos secos para lenha nos dias em que o mar estava bravo.
Em um dia de vento forte, uma calamidade abateu-se sobre a vila.
Uma noite, Kichizo foi à praia para trabalhar com os caldeirões; quando retornou na manhã seguinte, descobriu que sua esposa havia desaparecido. Ele procurou por toda a aldeia, na praia, nas pedras e na floresta atrás das casas, mas não a encontrou. Pela expressão de pânico no rosto dele, os vizinhos deduziram que algo havia acontecido e avisaram o chefe da aldeia. Quando Kichizo foi interrogado pelo chefe, ficou claro que ele havia sido perversamente cruel com a esposa na noite anterior.
Kichizo nunca conseguira se livrar completamente da suspeita de que sua esposa havia tido um filho de outro homem durante o período em que ela trabalhara como serva, e essa dúvida às vezes o atormentava. A noite anterior havia sido outro exemplo de sua raiva incontrolável. Aparentemente, depois de bater na esposa, ele havia cortado partes do cabelo dela, amarrado-a, e chegado ao ponto de raspar os pêlos púbicos dela.
O chefe da aldeia escutou a confissão do homem e concluiu que a esposa de Kichizo devia ter ficado tão aterrorizada que havia fugido durante a noite. Ele ordenou que vários homens corressem até a aldeia vizinha.
Eles seguiram para o passo da montanha, mas, quando pararam para olhar perto do cemitério, encontraram a mulher de Kichizo pendurada pelo pescoço em uma árvore não muito distante do crematório. Cortaram a corda para baixar o corpo, enrolaram-no em esteiras de palha e o carregaram para a casa de Kichizo. Kichizo abraçou o corpo da mulher morta e chorou.
Isaku e a mãe foram prestar sua homenagem no velório. O corpo tinha sido amarrado fortemente na posição sentada com corda de palha, as costas apoiadas em um poste funerário. As três manchas roxas no rosto macerado atestavam como tinha sido violentamente espancada. Os cabelos estavam irregulares, em alguns pontos cortados bem rente ao couro cabeludo. Kichizo estava ajoelhado em um canto da sala, a cabeça inclinada para a frente. Normalmente o corpo daqueles que tiravam a própria vida era simplesmente lançado ao mar, mas, como o suicídio da mulher de Kichizo fora resultado do medo que sentira da violência do marido, o chefe da aldeia deu uma permissão especial para que ela fosse colocada para descansar no cemitério.
No dia seguinte, o corpo foi colocado em um caixão e levado para o cemitério, onde foi cremado. Como diziam que os espíritos daqueles que se matavam para acertar uma disputa eram condenados a vagar na aldeia, o chefe ordenou que Kichizo ficasse em jejum em sua casa por cinco dias como penitência, para permitir que o espírito da esposa partisse para além do mar. Mas, na noite em que a esposa foi cremada, Kichizo saiu de casa e lançou-se de um penhasco perto do cabo. A cabeça dele afundou no solo; um globo ocular ficou em cima dos lábios, e o cérebro se espalhou pelas pedras. Os habitantes da aldeia levaram o corpo dele para o mar e o jogaram na água.
A morte da mulher de Kichizo chocou as pessoas da aldeia. Muitos atribuíam a culpa da tragédia a Kichizo e seu ciúme doentio; ao mesmo tempo acreditavam no rumor de que a esposa de Kichizo havia tido um filho de outro homem.
O mar ficou bravo, e novamente os fogos foram acesos sob os caldeirões de sal.
[…]

Akira Yoshimura, in Naufrágios

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