Os
tons vermelhos e amarelos nas encostas mais distantes começaram a
desbotar à medida que a temperatura caía com a passagem de cada
dia. Numa manhã, quando o mar estava calmo, Isaku desceu para o chão
de terra da casa quando sua mãe lhe falou:
— Leve
Isokichi com você de agora em diante.
Isaku
olhou para o irmão mais novo, sentado junto do fogo, olhando para
ele. De fato, a mãe queria que ele ensinasse Isokichi a remar e a
pescar. Apesar de o menino já ter começado a carregar galhos secos
da montanha até a casa deles, Isaku achava que seria uma tarefa
difícil ensinar ao pequeno Isokichi como tornar-se um pescador.
— Isokichi,
por que ainda está aí sentado? — gritou a mãe, dando um tapa com
força no rosto do menino.
Isokichi
se levantou e correu para o chão de terra, levando a mão à face.
Isaku pegou o remo no canto da sala, apoiou-o no ombro e deixou a
casa. A mãe e Isokichi o acompanharam, com o equipamento de pesca
nas mãos. Com um restinho da madrugada ainda no céu, não havia
nenhuma nuvem à vista, o que prometia um dia claro de outono.
Ao
caminhar para a praia, Isaku refletiu que já era hora de Isokichi
começar a sair para a água. Ele próprio tinha começado a ser
levado pelo pai na primavera do ano em que completara sete anos, e
Isokichi alcançaria essa idade no Ano-Novo. Com o pai deles longe,
sem dúvida a mãe queria que Isokichi se acostumasse a trabalhar no
mar o mais depressa possível, para que começasse a ajudar Isaku.
Tendo passado todo seu tempo pescando desde que o pai se fora, Isaku
previa que o irmão, além de não ajudar muito, provavelmente o
empataria, mas ainda assim ansiava por sair para a água com ele.
Estava orgulhoso por ter a chance de ensinar a alguém como pescar.
Na
praia, levaram o barco para a água. Isokichi fez muita força
empurrando. Isaku fixou o remo e conduziu o barco para longe da
areia. A mãe ficou olhando durante algum tempo antes de voltar
apressada para casa.
Isokichi
sentou-se de pernas cruzadas no fundo do barco, com um brilho nos
olhos e um ar tranqüilo no rosto. Para ele, poder sair no mar para
aprender a pescar era uma alegria maior que qualquer outra coisa.
— Venha
até aqui — disse Isaku. Fazendo o irmão segurar o remo, ele
colocou a mão por cima da dele e moveu o remo na água. — Você
trabalha o remo com o braço, não com a mão.
Ele
ajustou os pés de Isokichi e deu um tapa na nuca dele para colocá-lo
na posição adequada. Quando chegaram perto da água borbulhante ao
redor das pedras, Isaku pegou o remo da mão do irmão e manobrou o
barco ele mesmo.
— Se
você não souber virar a proa para mudar a direção, vai terminar
nas pedras. Preste atenção no modo como eu trabalho o remo.
Isokichi
observava com toda a atenção.
Isaku
deteve o barco e lançou âncora antes de colocar isca no anzol preso
à linha, que então lançou pela beirada. Não havia nada além de
peixinhos pequenos a pescar, mas esses seriam secos e guardados para
virar comida no inverno. Sempre que sentia uma fisgada no anzol, ele
puxava a linha bem no momento certo e raramente perdia o peixe.
Isokichi segurou o pequeno peixe saltando no fundo do barco com as
duas mãos.
Isaku
levou o barco de uma área de pedras para outra, deixando Isokichi
pegar o remo no meio do percurso, remando com sua mão por cima da
dele.
Dali
em diante, ele passou os dias com Isokichi no mar. O irmão fazia
pouco mais que controlar o remo e observá-lo pescar, mas mesmo isso
parecia deixá-lo exausto. Logo depois de jantar ele começava a
bocejar e ia se deitar em sua cama de palha.
As
folhas nas árvores começaram a secar, e punhados de folhas eram
levados da floresta pelo vento, caindo como chuva sobre a aldeia. O
mar também começou a mostrar os primeiros sinais de inverno, os
turbulentos ventos do noroeste tornaram-se mais frequentes, e a
temperatura da água ficou muito fria.
Um
dia, quando o mar estava calmo, depois de estarem na água por duas
horas, um barco grande o bastante para carregar quatrocentos fardos
apareceu contornando o cabo a oeste, seguido por outro com metade do
tamanho; ambos desapareceram ao leste. Naquele período do ano o
arroz recém-colhido era transportado por barco, e as pilhas de carga
que se avistavam no tombadilho eram sem dúvida fardos de arroz.
No
dia seguinte, seguindo as instruções do chefe da aldeia, uma cabana
provisória foi erguida na praia, iniciando os preparos para extrair
sal.
Depois
de três dias de calmaria, um vento forte começou a soprar, e
borrifos das ondas que colidiam com a encosta choviam sobre as casas
mais próximas da orla. Os barcos foram puxados para longe da linha
da água e amarrados a estacas fincadas no chão.
Naquela
noite, os primeiros fogos foram acesos sob os caldeirões de sal. No
caminho de volta do banheiro, Isaku parou e olhou para a praia. As
chamas tremulavam ao vento, e ele via as pessoas se movendo ao redor
dos caldeirões. Com o céu noturno encoberto, tudo que se podia ver
na escuridão era a espuma branca das ondas quebrando perto dos
caldeirões. De tempos em tempos ele sentia umidade no rosto.
Sua
mãe juntou-se às outras mulheres para retirar o sal dos caldeirões
e levá-lo à casa do chefe, carregando para a praia a contribuição
de lenha da família para o fogo. Isaku levava Isokichi para pescar
nos dias calmos, e à floresta para recolher galhos secos para lenha
nos dias em que o mar estava bravo.
Em
um dia de vento forte, uma calamidade abateu-se sobre a vila.
Uma
noite, Kichizo foi à praia para trabalhar com os caldeirões; quando
retornou na manhã seguinte, descobriu que sua esposa havia
desaparecido. Ele procurou por toda a aldeia, na praia, nas pedras e
na floresta atrás das casas, mas não a encontrou. Pela expressão
de pânico no rosto dele, os vizinhos deduziram que algo havia
acontecido e avisaram o chefe da aldeia. Quando Kichizo foi
interrogado pelo chefe, ficou claro que ele havia sido perversamente
cruel com a esposa na noite anterior.
Kichizo
nunca conseguira se livrar completamente da suspeita de que sua
esposa havia tido um filho de outro homem durante o período em que
ela trabalhara como serva, e essa dúvida às vezes o atormentava. A
noite anterior havia sido outro exemplo de sua raiva incontrolável.
Aparentemente, depois de bater na esposa, ele havia cortado partes do
cabelo dela, amarrado-a, e chegado ao ponto de raspar os pêlos
púbicos dela.
O
chefe da aldeia escutou a confissão do homem e concluiu que a esposa
de Kichizo devia ter ficado tão aterrorizada que havia fugido
durante a noite. Ele ordenou que vários homens corressem até a
aldeia vizinha.
Eles
seguiram para o passo da montanha, mas, quando pararam para olhar
perto do cemitério, encontraram a mulher de Kichizo pendurada pelo
pescoço em uma árvore não muito distante do crematório. Cortaram
a corda para baixar o corpo, enrolaram-no em esteiras de palha e o
carregaram para a casa de Kichizo. Kichizo abraçou o corpo da mulher
morta e chorou.
Isaku
e a mãe foram prestar sua homenagem no velório. O corpo tinha sido
amarrado fortemente na posição sentada com corda de palha, as
costas apoiadas em um poste funerário. As três manchas roxas no
rosto macerado atestavam como tinha sido violentamente espancada. Os
cabelos estavam irregulares, em alguns pontos cortados bem rente ao
couro cabeludo. Kichizo estava ajoelhado em um canto da sala, a
cabeça inclinada para a frente. Normalmente o corpo daqueles que
tiravam a própria vida era simplesmente lançado ao mar, mas, como o
suicídio da mulher de Kichizo fora resultado do medo que sentira da
violência do marido, o chefe da aldeia deu uma permissão especial
para que ela fosse colocada para descansar no cemitério.
No
dia seguinte, o corpo foi colocado em um caixão e levado para o
cemitério, onde foi cremado. Como diziam que os espíritos daqueles
que se matavam para acertar uma disputa eram condenados a vagar na
aldeia, o chefe ordenou que Kichizo ficasse em jejum em sua casa por
cinco dias como penitência, para permitir que o espírito da esposa
partisse para além do mar. Mas, na noite em que a esposa foi
cremada, Kichizo saiu de casa e lançou-se de um penhasco perto do
cabo. A cabeça dele afundou no solo; um globo ocular ficou em cima
dos lábios, e o cérebro se espalhou pelas pedras. Os habitantes da
aldeia levaram o corpo dele para o mar e o jogaram na água.
A
morte da mulher de Kichizo chocou as pessoas da aldeia. Muitos
atribuíam a culpa da tragédia a Kichizo e seu ciúme doentio; ao
mesmo tempo acreditavam no rumor de que a esposa de Kichizo havia
tido um filho de outro homem.
O
mar ficou bravo, e novamente os fogos foram acesos sob os caldeirões
de sal.
[…]
Akira Yoshimura, in Naufrágios
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