domingo, 16 de abril de 2023

Olhos nos olhos | Chico Buarque, 1976


Além de todo o seu talento de melodista e letrista, Chico Buarque desenvolveu, ao longo de sua carreira, uma habilidade especial para fazer músicas não só sobre mulheres, mas pelas mulheres, falando por elas e dando-lhes uma voz, várias vozes.
Nenhum compositor, nem seu mestre Vinicius de Morais, mergulhou mais fundo nos mistérios da alma feminina e expressou melhor os desejos e os sentimentos das mulheres do que Chico. Personagens como a mulher submissa que ama e espera o marido boêmio em “Com açúcar, com afeto”, encomendada por Nara Leão, em 1966, e a do devastador clássico “Atrás da porta” (em parceria com Francis Hime, 1971), com Elis Regina, que dá voz pungente a uma mulher desesperada de dor e abandono.
Pelos versos do compositor também falaram a guerreira “Bárbara”, do musical Calabar: o elogio da traição, em seu romance tórrido com Ana de Amsterdam: “Vamos ceder enfim à tentação / Das nossas bocas cruas / E mergulhar no poço escuro de nós duas.” A protagonista rodriguiana de “Mil perdões”, que diz com sarcasmo ao homem a seus pés: “Te perdoo por contares minhas horas / Nas minhas demoras por aí / Te perdoo / Te perdoo porque choras / Quando eu choro de rir / Te perdoo por te trair.” A perigosa e desafiadora mulher de “Folhetim”: “Se acaso me quiseres / Sou dessas mulheres que só dizem sim / Por uma coisa à toa, uma noitada boa / Um cinema, um botequim.” Ou ainda a trágica Medeia de um subúrbio carioca devastada pela traição e pela humilhação na dilacerante “Gota d’água”: “Deixa em paz meu coração / Ele é um pote até aqui de mágoa / E qualquer desatenção, faça não / Pode ser a gota d’água.”
São muitas as mulheres criadas por ele. Mas, além desse conhecimento dos desvãos da alma feminina, Chico toca onde os homens mais sentem o que as mulheres lhes dizem, onde mais doem suas palavras e lembranças, onde mais os ferem seus ódios e rancores, suas mentiras e traições. Nos diversos personagens que ele criou, as mulheres se sentem representadas – os homens sofrem com as mulheres de Chico.
Com tantas canções sobre o melhor e o pior do amor do ponto de vista feminino, “Olhos nos olhos”, de 1976, é a que mais se destaca. Em grande parte, devido à interpretação de Maria Bethânia, visceralmente vivendo o melodrama da mulher abandonada que deu a volta por cima e mudou de vida depois que “tantos homens me amaram / bem mais e melhor que você”. Desafiadora, a personagem comemora:
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz / Quero ver como suporta me ver tão feliz.”
Um soco no coração.

Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

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