sábado, 15 de abril de 2023

Dois meninos

Mas agora vamos brincar de outra coisa. Quero saber se o senhor é inteligente. Este quadro é concreto ou abstrato?
Abstrato.
Pois o senhor é burro. É concreto: fui eu que pintei, e pintei nele meus sentimentos e meus sentimentos são concretos.
É, mas você não é todo concreto.
Sou sim!
Não é! Você não é todo concreto porque seu medo não é concreto. Você não é completamente concreto, só um pouco.
Eu sou um gênio e acho que tudo é concreto.– Ah, eu não sabia que o senhor é um pintor famoso.
Sou. Meu nome é Bergman. Maurício Bergman, sou sueco e sou um gênio. Nota-se pela minha fisionomia, olhe: eu sofro! Agora quero saber se o senhor entende de pintura. Aquele quadro é concreto?
É, porque se vê logo que é um mapa, pelas linhas.
Ah, ééé? e aquele?
Abstrato.
Errado! Então aquele também tinha que ser concreto porque também tem linhas.
Vou explicar ao senhor o que é concreto, é…
... está errado.
Por quê?
Porque eu não entendo. Quando eu não entendo, é porque você está errado. E agora quero saber: isto é compreto?
O senhor quer dizer concreto.
Não, é compreto mesmo. É porque sou um gênio e todo gênio tem que pelo menos inventar uma coisa. Eu inventei a palavra compreto. Música é compreta?
Acho que é, porque a gente ouve, sente pelos ouvidos.
Ah, mas o senhor não pode desenhar!
O senhor acha que o teto é concreto?
É.
Mas se eu virasse essa parede e botasse ela na posição do teto, ela ia ficar uma parede-teto, e essa parede-teto ia ser concreta?
Acho que talvez. Fantasma é concreto?
Qual? O de lençóis?
Não, o que existe.
Bem... Bem, seria supostamente concreto.
Mãe é concreto ou abstrato?
Concreto, é claro, que burrice.
No quarto ao lado a mãe parou de coser, ficou com as mãos imóveis no colo, inclinando um coração que este batia todo concreto.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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