Ele
sai da cama dizendo, filhos da puta. Filhos da puta são as pessoas,
é o dia que está raiando, o café que não vai tomar, o jornal que
não vai ler, o trabalho, o sucesso, a cidade, o mundo inteiro.
Ele
sabe que não está sofrendo de nenhuma depressão. Um deprimido não
sente ódio, ele está sentindo ódio, de pessoas e coisas. Mais das
pessoas do que das coisas.
O
carro é uma coisa desprezível, mas qualquer pessoa é ainda mais
repulsiva do que essa máquina estúpida. Está falando com ele
mesmo, mas é maluco por isso? Não tomou banho nem fez a barba. É
maluco por isso? Na semana passada saiu para fazer análise, mas para
tanto é preciso ter fé, acreditar em bruxas e quejandos, mas se até
Deus está incluído entre os filhos da puta, o que dizer do
analista? Não era um neurótico precisando de muletas. Quem precisa
disso é o palhaço do analista, suas muletas são os parlapatões,
os vomitadores que vão lá pedir socorro. Pagou o filho da puta e
voltou para casa.
Tem
êxito no que faz, ganha dinheiro. É perfeito o conjunto de suas
funções orgânicas, que distanciam a morte e o ajudam a pensar,
esporrar quando é preciso e a defecar diariamente — e a carregar
malas sem esforço. Mas não pretende fazer mais viagens; não
importa aonde vá, é tudo a mesma porcaria. O sucesso é repulsivo,
quase tanto quanto as pessoas. Cada vez tem mais sucesso e é cercado
por mais pessoas nojentas e cretinas. Há a música, a poesia. Saem
na urina. As coisas boas saem na urina.
E
a mulher que perguntou você me ama e ele respondeu sim?
Infelizmente
a vida não é uma anedota com final feliz.
“Ei,
Roberto, abre a porta.”
“Vai
se foder.”
“Angélica
está aqui comigo.”
“Quero
ficar só.”
“Abre
a porta.”
“Vai
se foder.”
“Angélica
está aqui comigo.”
“É
mentira. Você disse isso ontem e era mentira. Vai se foder”
“Estou
aqui, sim, Roberto.”
“Vocês
estão pensando que eu estou drogado. Não estou drogado. Não tomei
nem água.”
“Eu
sei. Abre a porta, querido.”
“Não
me chama de querido. Você perguntou, você me ama, e eu respondi
sim, mas você não me ama. Você disse eu não te amo mais.”
“Foi
aquilo das mulheres...”
“Eram
duas vadias enviadas por uma cafetina. Eu nem sabia o nome delas.”
“Eu
fiquei magoada, mas agora não estou mais.”
“Não
sei se você é mesmo a Angélica. O mundo está cheio de filhos da
puta que imitam vozes. E eu não tenho a porra de um olho mágico na
porta.”
“Você
não conhece a minha voz?”
“Como
é que eu te chamo quando estamos na cama?”
“Branquela.
Abre a porta.”
“Manda
embora esse bunda-suja que está com você.”
“Vai
embora, Artur. Me deixa, vai embora. Roberto, o Artur foi embora,
estou só eu aqui, não tem mais ninguém. Abre a porta. Eu te amo.
Abre a porta, por favor. Você precisa de mim. Abre a porta.”
“O
que foi que eu lhe dei de presente no dia do seu aniversário?”
“Um
carro.”
“Eu
te dei essa bosta de presente?”
“Deu.”
“Qual
a marca?”
“Um
Peugeot.”
“Porra,
um carro francês. Os franceses são uns putos.”
“Abre
a porta. Você já viu que sou eu mesma. Eu te amo. Sei que você me
ama também. Abre a porta.”
Ele
abre a porta. Dois homens de branco entram agarram-no, lutam.
“Angélica”,
grita, olhando para todos os lados, sem vê-la.
Os
putos pensam que ele é maluco? Está cansado de rolar no chão. Os
homens lhe dão uma injeção no braço.
Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas
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