A
festa
1
O
vento arrastou as nuvens, a chuva cessou e sob o céu novamente limpo
crianças começaram a brincar. As aves de criação saíram dos seus
refúgios e voltaram a ciscar no capim molhado. Um cheiro de terra,
poderoso, invadia tudo, entrava pelas casas, subia pelo ar. Pingos de
água brilhavam sobre as folhas verdes das árvores e dos mandiocais.
E uma silenciosa tranquilidade se estendeu sobre a fazenda — as
árvores, os animais e os homens. Apenas as vozes álacres das
crianças, pelos terreiros, cortavam a calma daquele momento:
Chove,
chuva chuverando
Lava
a rua do meu bem…
Vestidas
de trapos sujos, algumas nuas, barrigudas e magras, as crianças
brincavam de roda. Farrapos de nuvem perdiam-se no céu de um
azul-claro onde primeiras e leves sombras anunciavam o crepúsculo.
Depois da chuva tudo parecia ter uma fisionomia mais alegre. Artur
olhou as árvores que se estendiam por detrás da casa-grande, os
galhos docemente agitados pela brisa, e sorriu imaginando que as
árvores estavam satisfeitas após a chuva tão esperada.
— Tive
medo esse ano… — resmungou para si mesmo.
Mas
a chuva viera bastante em tempo e as colheitas seriam fartas. Artur
calculou a alegria que deveria reinar nas casas dos colonos e dos
meeiros e foi então que decidiu ir à festa. Esperaria a chegada do
rapaz que fora ao arraial, buscar a correspondência e levar umas
encomendas, e então daria um pulo na casa do Ataliba, beberia um
trago de cachaça em honra da noiva, dançaria uma polca. Andou para
a frente da casa-grande onde sua mulher, Felícia, cuidava de uns
canteiros de flores.
— Vamos
na festa de Ataliba…
— Tu
se decidiu?
Fez
que sim com a cabeça, saiu devagar para os lados do armazém. Iria à
festa, sim. Os homens estariam satisfeitos, o receio da seca, temor
que se renovava a cada ano, estava agora afastado, talvez ainda
voltasse a chover naquela mesma noite, apesar de que no céu tão
limpo nem mais uma única nuvem restasse. Artur aspirou o cheiro que
subia da terra, sorriu novamente. Talvez agora os homens o olhassem
com melhores olhos. Quando recebera o convite para a festa na casa de
Ataliba disse que ia. Casamento e festa não eram coisas muito comuns
pela fazenda e quando se anunciava uma brincadeira em qualquer das
casas não se falava noutro assunto nas roças, durante dias, nas
conversas do fim da tarde em casa dos trabalhadores, e para Artur
sempre havia o problema de que todos queriam algum dinheiro, tinham
sempre compras a fazer. Ele recebia os convites, prometia ir.
Raramente ia, parecia-lhe que bastava com sua chegada para as festas
perderem muito da alegria reinante, os homens não simpatizavam com
ele. A esse pensamento Artur suspendeu os ombros num gesto
característico. Não era culpa sua. Cumpria com sua obrigação,
apertava os homens no trabalho, apertava os meeiros na hora das
contas, pagava os preços estipulados, puxava pela fazenda é bem
verdade, mas afinal não era para isso que ele era capataz? Qualquer
outro que estivesse em seu lugar, como agiria? Gozava da confiança
do dr. Aureliano, que se deixava ficar no Rio de Janeiro, vindo à
fazenda uma vez na vida, e procurara provar ao patrão ser digno
dessa confiança. Nunca a fazenda dera tanto lucro, nem mesmo no
tempo do coronel Inácio que morava lá, tomando conta de tudo,
decidindo as mínimas coisas. Os meeiros reclamavam, os trabalhadores
olhavam-no com olhos cheios de ameaças, mas Artur não se
preocupava, costumava dizer que “não tinha medo de caretas”.
No
entanto certas coisas doíam-lhe e sabia que na fazenda moravam
alguns que, com muito prazer, lhe fariam uma desfeita. Não era
segredo para ele que, às escondidas, diziam a seu respeito cobras e
lagartos e que muitos homens bebiam em sua tenção. Aquilo não o
alegrava tampouco. Gostaria de se dar bem com trabalhadores e
colonos, fora trabalhador ele mesmo no tempo do coronel Inácio, se
sentiria satisfeito se os homens fossem seus camaradas, viessem, sem
ser chamados, tirar um dedo de prosa na varanda da casa-grande, não
fechassem a cara quando ele entrasse nas festas. Por isso não ia
quase nunca a nenhuma daquelas raras festas, apesar de Felícia
gostar de uma dança e ele mesmo, Artur, ser doido por uma conversa,
amigo de virar um trago de cachaça.
Chegou
ao armazém de grandes portas fechadas, onde estavam os mantimentos
para vender a trabalhadores e meeiros. Num quarto aos fundos
guardavam os arreios da tropa. Tirou uma chave do bolso, abriu a
porta. Os homens não tardariam a chegar do trabalho e como era dia
de festa naturalmente haveriam de querer comprar alguma coisa. Pulou
o balcão, o livro de assentamento estava em cima da mesa. Tomou
maquinalmente dele e começou a virar-lhe as folhas. A conta de Mário
Gomes estava grande. Nem com muito tempo de trabalho ele poderia
pagar. Tinha que limitar o fornecimento. Mais um que lhe iria amarrar
a cara, olhá-lo de banda, cuspir depois dele passar. Que poderia
fazer? Virou a folha do livro. Jerônimo com prava pouco, quase só o
que vestir, tinha sua mandioca, seu milho, sua batata-doce. Homem de
juízo. Também lavrava o melhor pedaço de terra da fazenda. Se
Artur fosse o dono daquela terra, ela não estaria em mãos de
colono. Mas vinha com Jerônimo desde o tempo do coronel Inácio e o
dr. Aureliano, mais preocupado com o Rio que com a fazenda, deixara
tudo como encontrara quando da morte do velho. Enfim, isso era com o
doutor que era o dono, a Artur bastava a raiva que já lhe dedicavam
só por ele cumprir as ordens.
Espiou
o céu que escurecia:
— Estão
largando o trabalho…
Pulou
novamente o balcão, atravessou a porta, sentou-se numa pedra que
havia próxima ao armazém. Via de longe os meninos, seus filhos,
brincando de roda em frente à casa-grande. Ali estavam três, os
dois maiores encontravam-se na cidade, no colégio. Seus filhos não
seriam ignorantes como os homens que ali viviam, como ele mesmo,
Artur, que apenas sabia ler e fazer as quatro operações. Que lhe
importava o ódio dos trabalhadores e dos colonos se podia educar
seus filhos, mandá-los para o colégio, fazer de um deles doutor,
quem sabe?
Mário
Gomes vinha andando, o machado na mão. Es tava derrubando, junto com
outros, um resto de mata da fazenda. Os meninos cantavam e suas vozes
infantis chegavam até Artur, penetravam-lhe no coração.
Mário
acocorou-se perto da pedra:
— Boas
tardes, seu Artur.
— Boas
tardes, Mário. Afinal choveu…
— Deus
seja louvado…
Mário
Gomes queria comprar alguma coisa mas estava sem jeito, bem se via.
As vozes das crianças:
Chove,
chuva chuverando.
— A
festa vai ser boa, Mário?
— Festão…
— riu.
— Tou
com vontade de ir…
— Vosmecê?
Ataliba vai ficar contente… É o casamento da menina dele e, se
vosmecê for ir, ele vai engravidar de contente…
Podia
não ser verdade mas Artur ouvia as vozes dos filhos cantando,
recordava os dois que estavam no colégio interno. Mário Gomes devia
muito, mas não era homem para fugir da fazenda e deixar a dívida
por pagar:
— Tu
quer comprar alguma coisa?
Mário
olhou espantado:
— Era
só um feijão e um litro de cachaça…
Artur
levantou-se, andou para o armazém. Mário o seguiu ainda
desconfiado:
— Vai
ser uma festa falada…
Começavam
a cair as sombras do crepúsculo.
Jorge Amado, in Seara Vermelha
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