quinta-feira, 2 de março de 2023

O Lobo do Mar | Capítulo 35

No dia seguinte, com os encaixes dos mastros desobstruídos e tudo pronto, começamos a trazer os dois mastaréus para bordo. O mastaréu principal tinha cerca de dez metros de comprimento e o mastaréu de proa era apenas um pouco menor, e com eles eu pretendia montar a cabrilha. Era uma operação complicada. Prendi uma das pontas de uma talha pesada ao cabrestante e a outra à base do mastaréu de proa, e comecei a içar. Maud mantinha a posição da manivela no cabrestante e recolhia a corda solta.
A trave subiu com uma facilidade que nos surpreendeu. Era um cabrestante de manivela melhorado, capaz de proporcionar um enorme rendimento. É claro que essa força era compensada pela distância: o comprimento de corda a ser içado multiplicava-se na mesma medida que a tração fornecida. A talha trabalhava por cima da amurada, puxando com mais força à medida que o mastro saía de dentro d’água, o que exigia cada vez mais do cabrestante.
Quando a base do mastro se alinhou à amurada, porém, tudo parou.
Eu devia ter previsto isso — falei com impaciência. — Agora precisamos começar tudo de novo.
Por que não prendemos a talha mais embaixo no mastro? — sugeriu Maud.
É o que eu devia ter feito no começo — respondi, revoltado comigo mesmo.
Desfazendo um giro na manivela, baixei o mastro novamente para dentro d’água e prendi a talha no terço do comprimento a partir da base. Em uma hora, apesar dessas modificações e das pausas para descanso, eu já tinha içado até os limites da minha força. Dois metros e meio do mastro estavam acima da amurada e eu ainda estava muito longe de conseguir trazer a trave a bordo. Sentei e analisei o problema. Não demorou muito. Levantei-me, esfuziante.
Agora já sei! Preciso prender a talha no ponto de equilíbrio. E o que aprendemos com isso servirá para içar todo o resto.
Mais uma vez, desfiz todo o trabalho e baixei o mastro até a água. Todavia, calculei mal o ponto de equilíbrio e o que subiu foi o topo do mastro, em vez da base. Maud esboçou um olhar de desespero, mas eu ri e disse que ia servir do mesmo jeito.
Depois de instruí-la a segurar a volta na manivela e dar folga à corda ao meu comando, agarrei o mastro com as mãos e tentei balançá-lo para bordo por cima da amurada. Quando vi que tinha conseguido, gritei para que ela soltasse a corda, mas apesar do meu esforço a trave se endireitou e caiu de novo dentro d’água. Icei-a outra vez até a mesma posição para testar outra ideia. Lembrei da talha singela, um pequeno poleame feito de um moitão simples e outro duplo, e fui buscá-lo.
Enquanto eu o prendia entre o topo da trave e a amurada oposta, Wolf Larsen entrou em cena. Não trocamos nada além de um bom-dia, e, apesar de não estar enxergando, ele sentou na amurada e ficou acompanhando a minha atividade pelos sons que eu fazia.
Pedi novamente a Maud que desse folga à corda ao meu comando e tratei de içar com a talha singela. O mastro inclinou aos poucos até ficar equilibrado em ângulo reto com a amurada, e então, para meu espanto, descobri que não era necessário que Maud desse folga à corda. Travando a talha singela, tracionei o cabrestante e fui trazendo o mastro aos poucos até deitá-lo inteiro sobre o convés, um centímetro de cada vez, começando pelo topo.
Consultei meu relógio. Era meio-dia. Minhas costas doíam terrivelmente e eu padecia de fome e cansaço extremos. E ali no convés jazia um único pedaço de madeira, como resultado de uma manhã inteira de trabalho. Vislumbrei pela primeira vez a dimensão da tarefa à nossa frente. Mas eu estava aprendendo cada vez mais. A tarde se mostraria mais proveitosa. E assim foi, pois voltamos ao trabalho à uma hora, descansados e restaurados após uma refeição substanciosa.
Em menos de uma hora eu já tinha trazido o mastaréu principal para o convés e começado a construir a cabrilha. Amarrei os dois mastaréus juntos e, depois de colocá-los na posição correta para compensar os diferentes comprimentos, prendi o moitão duplo das adriças de boca ao ponto de interseção. Em conjunto com o moitão simples e as adriças de boca propriamente ditas, obtive uma talha de içamento. Para evitar que as bases dos mastros escorregassem sobre o convés, preguei dois calços bem pesados no piso. Com tudo pronto, estiquei uma corda até o vértice da cabrilha e a trouxe diretamente ao cabrestante. Eu estava começando a ter fé naquele cabrestante, pois a força que ele exercia ultrapassava todas as minhas expectativas. Como nas outras vezes, Maud segurou a roda enquanto eu içava. A cabrilha começou a ascender.
Então descobri que eu havia esquecido dos patarrases. Isso exigiu que eu subisse pela cabrilha duas vezes para firmá-la com patarrases da proa à popa e pelos dois lados. Só consegui terminar ao cair do crepúsculo. Wolf Larsen, que tinha ficado sentado por perto a tarde inteira, escutando sem dar um pio, tinha se retirado para a cozinha e começado a preparar seu jantar. Eu sofria de uma rigidez na lombar, tanto que só consegui ficar ereto depois de muita dor e esforço. Contemplei minha obra com orgulho. Começava a dar resultado. Como uma criança que ganhou um brinquedo novo, eu estava cheio de vontade de içar alguma coisa com a minha cabrilha.
Que pena que já ficou tão tarde — falei. — Gostaria de vê-la funcionando.
Não seja glutão, Humphrey — Maud me censurou. — Lembre-se que amanhã é outro dia, e que você está tão cansado que mal consegue se manter em pé.
E você? — perguntei, tomado de súbita consideração. — Você deve estar muito cansada. Trabalhou duro e sem desanimar. Estou orgulhoso de você, Maud.
Estou orgulhosa em dobro de você, e com o dobro de razão — ela respondeu me encarando, e em seus olhos havia uma expressão e uma luz trêmula e dançante que eu nunca tinha visto antes e que me provocaram uma rápida pontada de júbilo, não sei por que motivo, pois fui incapaz de compreendê-la.
Ela baixou os olhos e os ergueu novamente, dizendo com um sorriso:
Imagina se nossos amigos pudessem nos ver agora. Já parou para pensar em nossa aparência?
Sim, pensei muito na sua aparência — respondi enquanto tentava decifrar o que seu olhar havia me mostrado antes da mudança brusca de assunto.
Tenha piedade! — ela clamou. — E estou parecendo o quê, pode me dizer?
Um espantalho, infelizmente — respondi. — Dê uma olhada nessa saia enlameada, por exemplo. E nesses rasgões. Não vou nem falar do corpete. Não precisamos de um Sherlock96 para deduzir que você esteve cozinhando numa fogueira de acampamento, isso quando não estava fervendo gordura de foca. E por cima de tudo, o chapéu! Quem diria que estávamos falando da mulher que escreveu “Beijo suportado”.
Ela fez uma mesura floreada e grandiosa e disse:
Quanto ao senhor…
Ainda assim, por trás dos cinco minutos de gracejos que se seguiram havia algo sério que eu não podia deixar de associar àquela expressão fugidia que vislumbrara em seu olhar. Do que se tratava? Seria possível que nossos olhos estivessem dizendo o que estava além do alcance da fala? Meus olhos tinham dito coisas, eu sabia, até o momento em que identifiquei os culpados e os silenciei. Tinha acontecido diversas vezes. Mas será que ela tinha identificado esses apelos e compreendido o que se passava? E será que seus olhos também estavam a me dizer coisas? O que mais podia significar aquela expressão, aquela luz trêmula e dançante aliada a algo indescritível em palavras? Mas não podia. Era impossível. Além disso, eu não dominava a linguagem do olhar. Eu era apenas Humphrey van Weyden, um sujeito livresco que estava amando. E amar, e ter esperado até ganhar o amor, já era glória suficiente para mim. Cultivei esses pensamentos enquanto zombávamos de nossas aparências até chegarmos à praia, onde havia outras coisas com que se preocupar.
É uma pena que não possamos ter uma noite de sono sem interrupção depois de um dia inteiro de trabalho pesado — reclamei depois do jantar.
Mas um homem cego já não oferece tanto perigo, não é?
Nunca serei capaz de confiar nele — asseverei —, e muito menos agora que está cego. O mais provável é que essa incapacidade parcial o torne ainda mais maligno. Sei a primeira coisa que vou fazer amanhã: soltar uma âncora leve e manter a escuna afastada da praia. Toda noite, depois que retornarmos com o bote, o sr. Wolf Larsen ficará prisioneiro a bordo. Esta, portanto, será a última noite em que necessitaremos de uma vigia, e assim será mais tranquilo.
Acordamos cedo e estávamos terminando o café da manhã quando o dia amanheceu.
Oh, Humphrey! — Maud gritou estarrecida, emudecendo logo a seguir.
Olhei para ela. Estava voltada para o Ghost. Segui seu olhar mas não vi nada fora do comum. Ela olhou para mim e respondi com um olhar de indagação.
A cabrilha — ela disse com voz trêmula.
Eu tinha esquecido da existência dela. Olhei de novo e não a encontrei.
Se ele foi mesmo capaz de… — grunhi com ferocidade.
Ela segurou minha mão e disse, compadecida:
Você vai precisar fazer tudo de novo.
Ah, acredite, minha raiva não significa nada. Sou incapaz de fazer mal a uma mosca — falei com um sorriso amargo. — E o pior de tudo é que ele sabe. Você tem razão. Se ele destruiu a cabrilha, não farei nada além de começar de novo. — E acrescentei em seguida: — Manterei minha vigia a bordo da escuna de agora em diante. E se ele interferir…
Mas eu não suportaria ficar a noite toda sozinha na praia — Maud ia dizendo quando voltei a mim. — Seria bem melhor se ele se tornasse mais amigável e resolvesse cooperar. Poderíamos viver todos a bordo, confortavelmente.
Assim será — afirmei ainda um pouco descontrolado, pois a destruição de minha adorada cabrilha tinha sido um golpe duro. — Quer dizer, eu e você viveremos a bordo, com ou sem a cooperação de Wolf Larsen. — E depois ri: — Como é infantil da parte dele agir dessa maneira, e da minha ficar irritado com isso.
Mas o meu coração me esmagou quando subimos a bordo e pude conferir a destruição que ele havia causado. Não restava sinal da cabrilha. Os patarrases tinham sido completamente dilacerados. As adriças de boca que eu tinha amarrado estavam cortadas em todas as partes. E ele sabia que eu não dominava a técnica de emendá-las. Um pensamento me ocorreu. Fui correndo até o cabrestante. Não funcionava. Ele o danificara. Ficamos nos olhando, consternados. Corri para o lado do navio. Os mastros, paus de carga e caranguejas que eu tinha separado haviam sumido. Ele encontrara as cordas pelas quais estavam presos e os lançara à deriva.
Lágrimas brotaram dos olhos de Maud, e creio que eram por mim. Eu próprio podia ter chorado. O que sobrava de nosso projeto de reinstalar os mastros do Ghost? Ele tinha feito umbelo trabalho. Sentei na braçola da escotilha e apoiei o queixo nas mãos, entregue ao desespero.
Ele merece morrer — gritei para o alto —, e que Deus me perdoe, mas não sou homem o bastante para fazer papel de carrasco!
Mas Maud estava a meu lado, passando a mão em meus cabelos para me acalmar, como se eu fosse uma criança, dizendo:
Pronto, pronto, vai dar tudo certo. Estamos no lado certo, e tudo precisa dar certo.
Lembrei de Michelet, apoiei a cabeça nela e, de fato, recuperei as forças. Aquela mulher abençoada era uma fonte inesgotável de força para mim. Que importava? Era apenas um contratempo, um atraso. A maré não podia ter levado os mastros muito para o fundo e o vento estivera calmo. Significava somente que teríamos mais trabalho para encontrá-los e rebocá-los de volta. Além disso, eu tinha aprendido uma lição. Sabia o que esperar dali em diante. Ele poderia ter esperado e arruinado nosso trabalho com mais eficiência, caso tivéssemos avançado mais.
Aí vem ele — ela sussurrou.
Olhei para cima. Ele estava passeando muito à vontade a bombordo do tombadilho.
Não lhe dê atenção — sussurrei. — Está vindo checar a nossa reação. Não deixe que ele saiba o quanto sabemos. Podemos privá-lo dessa satisfação. Tire os sapatos e traga-os na mão.
Assim, começamos a brincar de esconde-esconde com o cego. Quando ele veio para bombordo, escapulimos para estibordo, e do alto do tombadilho nós o vimos dar meia-volta e retornar no nosso encalço em direção à popa.
Ele devia saber, de alguma forma, que estávamos a bordo, pois deu “Bom-dia” com toda a confiança e ficou esperando resposta ao cumprimento. Quando chegou à popa, fugimos para a proa.
Ah, eu sei que estão a bordo — ele gritou, e vi como espichou o ouvido depois de falar.
Aquilo me lembrou a coruja-barrada, que dá um grito estremecedor e fica tentando escutar os movimentos da presa assustada. Mas não demos um pio e só nos movemos quando ele também se movia. Dessa maneira ficamos zanzando pelo convés, de mãos dadas, como duas crianças sendo perseguidas por um ogro malvado, até que Wolf Larsen, claramente contrariado, retornou para a cabine. Havia uma exultação em nosso olhar e risinhos contidos em nossa garganta quando calçamos novamente os sapatos e passamos por cima da amurada. Quando olhei nos olhos límpidos e castanhos de Maud, esqueci todo o mal que ele havia feito e soube apenas que a amava, e que por causa dela eu teria forças para conquistar nossa passagem de volta para o mundo.

Jack London, in O Lobo do Mar

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