Nove
horas e trinta minutos. Estou vendo os ponteiros parados, no relógio
de pulso. Quando deito, ele fica sobre a mesinha de cabeceira, pois
acordo no meio da noite e olho o mostrador, nove e trinta. Quando
levanto, ponho o relógio no bolso, de onde posso tirá-lo para ver
as horas, nove e trinta. Foi a hora em que o relógio parou. Na
esquina de Joaquim Nabuco com Vieira Souto.
Fico
remoendo estupidamente o meu sofrimento, meu ódio sem objetivo,
minha frustração. Não existe nada pior do que a pessoa ficar se
lamentando, ou então dizendo que Deus assim quis, ou o Diabo — o
que é a mesma coisa. Vou passar o resto da minha vida olhando a hora
no relógio, nove e trinta, e me sentindo um miserável.
O
advogado de Luciana me telefona. Quer me falar, um assunto
importante, tem que ser pessoalmente. Vou ao seu escritório.
Não
esperava encontrar a minha ex-mulher. Quando me vê, Luciana
pergunta:
“Já
voltou ao local do crime, assassino?”
“Dona
Luciana, por favor...”, diz o advogado.
“Não
é isso o que todo assassino faz?”
Ela
já me odiava antes, e o seu rancor, depois das nove horas e trinta
minutos daquele dia, aumentou ainda mais.
“Com
licença, doutor, não aguento ficar perto desse monstro. Ele fez
aquilo para se vingar de mim”, diz Luciana saindo da sala.
O
advogado vai atrás dela. Volta algum tempo depois.
“Ela
está muito abalada com o que aconteceu.”
“Eu
sei. Vamos deixar o assunto que você queria discutir comigo para
outra ocasião?”, pergunto.
“Na
próxima semana?”
Concordo
com o advogado. Marcamos uma data, que anoto na agenda de bolso.
Quando
nos separamos, seis meses antes de aquela desgraça acontecer,
Luciana ficou com o apartamento, o sítio, o carro, a guarda da minha
filha, nove horas e trinta minutos, obteve uma pensão que é a
metade dos meus rendimentos mensais. O que mais Luciana quer? Quer me
destruir.
Mas
a reunião no escritório do advogado teve um lado bom. Tiro o
relógio do bolso e olho para o mostrador. Nove e trinta. Luciana,
com as suas ofensas sórdidas.
“Já
voltou ao local do crime, assassino?”, fez-me entender, pela
primeira vez, o que o relógio me diz, com aquela hora que nunca
muda. Agora sei por que olho constantemente para aquele mostrador de
relógio. Eu tinha tudo à minha disposição, a hora e o local,
todos os trunfos, só não sabia usá-los.
Fico
acordado a noite inteira, tomando café, excitado. Saio de casa logo
que o dia nasce, quero chegar na esquina de Joaquim Nabuco com Vieira
Souto antes das sete, quando a mão das duas pistas da praia passa a
ser na direção da cidade, e esperar que chegue a hora que o relógio
parado marca. Mas constato, desesperado, que preciso comprar óculos
novos para levar adiante o meu plano.
Vou
ao oculista, mando fazer os óculos, fico irritado com a demora. Não
posso, agora que tenho planos, desperdiçar tempo.
Volto,
com os óculos novos, à esquina de Vieira Souto com Joaquim Nabuco.
Consigo ver com nitidez os automóveis e suas placas. Não sai da
minha mente o carro cinza ultrapassando, na curva, o outro que vinha
por dentro. Eu reconhecerei o automóvel cinza, dirigido por um homem
de cabelos curtos castanho-claros, de camisa social e gravata, que
segura o volante com os braços estendidos, quando ele passar por ali
novamente, às nove e trinta. O assassino sempre volta ao local do
crime.
Fico
na esquina com lápis e papel na mão, para anotar a chapa do carro e
dar prosseguimento ao meu plano. Mas o carro não aparece. Às dez
horas o trânsito volta ao normal, agora a pista de dentro não dá
mão para a cidade, os carros não podem mais entrar à esquerda na
Joaquim Nabuco em direção à cidade.
O
homem usava camisa social e gravata, devia ter um paletó ao lado, no
banco, é assim que faço quando vou para o meu escritório dirigindo
o meu carro.
No
dia seguinte, novamente me posto na esquina, com lápis e papel na
mão, muito antes do sentido do trânsito ser invertido, e só vou
embora quando o tráfego volta ao normal. O carro não aparece, sei
que não passou por mim.
Chego
em casa deprimido. E se o horário e o trajeto dele são outros, se
naquele dia ele estivesse indo pegar um avião no aeroporto Santos
Dumont?
Um
homem de cabelos curtos dirigindo um carro cinza. “O senhor não
pode me dar mais algum esclarecimento?” perguntou o policial, “a
marca do veículo, a placa?” Respondi que não sabia mais nada, só
que o carro era cinza e a placa era do Rio. Esqueci de dizer que o
homem usava gravata com camisa social e dirigia com os braços
estendidos, mas o policial ia achar que isso também era pouco. Eu
estava confuso, ainda atônito, sofrendo muito com o que aconteceu.
Foi muito rápido, o carro abriu seu trajeto para fazer uma
ultrapassagem e pegou a minha filha, atirando-a longe. Eu me sentia
culpado por ter ficado aguardando, com ela ao meu lado, no asfalto da
rua, ainda que junto da calçada, uma oportunidade para atravessar a
Joaquim Nabuco. “Minha filha passava a semana comigo. O motorista
nos viu, não podia deixar de nos ver.” O policial escutou calado.
“Foi ela quem pediu para ir ao Arpoador de manhã”, acrescentei,
como se coubesse ao policial me perdoar, inconscientemente tentando
repartir minha culpa com a filha morta.
Agora
sei por que me curvei sobre ela e tirei o seu relógio do pulso com o
vidro partido. Foi um gesto mecânico, mas algo me fizera pegar o
relógio ordinário que minha filha usava e não o cordão com uma
medalhinha em torno do seu pescoço. O relógio era a pista para
achar o criminoso. Demorei a descobrir isso, mas, agora que sei,
preciso concentrar minhas forças, preservar minha lucidez para
atingir meu objetivo, encontrar o assassino. Certamente ele não
passou ainda naquela esquina porque o carro deve estar numa oficina,
a sua lataria foi afetada com o choque. Nove horas e trinta minutos.
Dois
dias mais tarde o carro aparece, já passa um pouco das nove e
trinta, sinto uma espécie de euforia quando o vejo surgir, abrindo
na curva da mesma maneira imprudente. Ao volante, o homem de cabelos
curtos, camisa social e gravata, dirige com os braços estendidos,
ele tem pressa, vejo o seu rosto, será que ainda se lembra que foi
ali que matou uma criança? Não consigo anotar a placa, quis ver bem
o homem, cometi um erro. Mas sei que ele vai voltar ao local do
crime.
No
dia seguinte, consigo anotar a placa do carro. Mas não vou dar essa
informação à polícia. Vou descobrir, eu mesmo, o nome e endereço
do dono do carro junto ao Departamento de Trânsito.
Não
é difícil obter essas informações. O nome dele é Paulo Ramos.
Mora na Barra. Quando ele chega na Joaquim Nabuco a sua pressa em
chegar à cidade deve aumentar, está impaciente com o trânsito
pesado daquela hora, quer aproveitar, além das duas pistas ao longo
das praias do Leblon e de Ipanema, as pistas de Copacabana, no
sentido da cidade, antes que uma delas feche, às dez horas. Se for
preciso, mata alguém pelo caminho.
Pego
o meu carro e vou para a porta do condomínio onde ele mora. Para
chegar à avenida Sernambetiba ele tem que dirigir por uma estrada
particular, sem habitações, com cerca de quinhentos metros. Vejo-o
sair e tento segui-lo, mas ele corre muito, logo o perco de vista, na
avenida. Isso não importa, sei a hora em que ele sai de casa.
Nunca
matei ninguém. A maneira mais fácil é com uma arma de fogo. Sei
como usá-las, já tive um revólver, dei para o caseiro do meu
sítio, que agora é só da Luciana. Onde posso comprar uma arma?
Alguém, no meu escritório, sabe? Estou de férias e apareço no
trabalho para perguntar onde posso comprar um revólver. Perguntar a
quem? São todos, como eu, burgueses pacatos que só pensam em ganhar
dinheiro de uma maneira considerada honesta pela sociedade.
Talvez
o Vlamir possa me ajudar. Vlamir era um profissional competente, as
drogas acabaram com ele, deve conhecer gente do baixo mundo, seus
fornecedores Encontrei-o recentemente, ele me disse que estava
desempregado, perguntou se eu podia ajudá-lo. Tenho o seu telefone.
Está na agenda. Marco um encontro com ele na minha casa.
“Estou
mal”, diz Vlamir, quando pergunto como vão as coisas.
Vê-se,
pela sua cara, que está doente. Mas não posso perder tempo com
comiserações.
“Preciso
de um favor seu.”
“Você?
Favor meu? Se puder eu faço. Estou lhe devendo, mas vou pagar aquela
grana que me emprestou.”
“Esquece
isso. O favor que vou lhe pedir tem uma grande urgência. Preciso de
um revólver. Em bom estado. Com os projéteis.”
“Um
revólver? Para que você quer um revólver?”
“Isso
não lhe interessa. Você pode ou não pode? Com um dos seus amigos?
Pago qualquer preço.”
“Vou
ver.”
“Quero
que você responda agora.”
“Conheço
um cara...”
“Fala
com ele. Hoje. Tenho muita pressa.”
“Você
pode me adiantar algum?”
“Posso.”
Dou
a ele uma boa quantia. “Não me interessa o que vai custar. Pago a
diferença quando você me entregar a arma.”
“Pode
confiar em mim. Não vou, não vou...”
“Sei
que você não vai gastar esse dinheiro de maneira errada... Você
não é burro, sabe que depois terá bem mais.”
“Eu
não sou burro” ele repete, “sou tudo, menos burro.”
No
dia seguinte, Vlamir volta a se encontrar comigo. Minha encomenda
está embrulhada num papel pardo. É uma arma pequena, em bom estado,
parece nova, e os projéteis também. Calibre 22, mas serve, é até
melhor, faz menos barulho. Vlamir menciona o valor total da
transação. Sei que uma parte do dinheiro que estou lhe dando será
gasto com drogas, mas não me importo, ele merece a sua gratificação.
“Se
você se meter em alguma encrenca me deixa de fora, já estou muito
ferrado”, ele diz.
“Eu
confiei em você, é a sua vez de confiar em mim, não se preocupe.”
“Você
vai matar alguém?”
“Um
cachorro.”
“Isso
não é nada.”
“Não,
não é nada.”
“Mas
eu não mataria um cachorro”, Vlamir diz, se despedindo de mim.
Nem
eu mataria um cachorro, digo em voz alta, enquanto carrego o tambor
do revólver. Ultimamente dei para falar sozinho.
Estou
no meu carro, de paletó e gravata, óculos sem aro, com uma caixa na
mão, na estrada por onde Paulo Ramos tem que passar, depois que sai
do condomínio. Quando o carro dele surge, buzino, fazendo um gesto
para ele parar o carro. Salto, carregando a caixa comigo.
“O
nome do senhor é Paulo Ramos?”
“Sim.”
Jamais
esquecerei aquela cara de cabelos curtos castanho-claros, a camisa
social com gravata. Noto o paletó no banco ao lado. Tranquilo, com
as mãos no volante, ele olha a figura respeitável, prestativa e
inofensiva ao lado do seu carro.
“Tenho
uma encomenda para o senhor”, digo, abrindo a caixa.
Ele
começa a dizer algo, mas é interrompido pelo primeiro tiro, dado no
seu rosto. O estampido não é muito forte. Esvazio o tambor, mais
dois tiros na cabeça, e três no peito.
Entro
no meu carro e vou embora. Se alguém ouviu os tiros, não veio ver
do que se tratava.
Estou
dirigindo na Sernambetiba. A quantidade de carros vai aumentando,
todo mundo correndo, querendo chegar logo, mas eu já cheguei aonde
queria e não tenho pressa.
Ligo
o rádio.
Depois
de amanhã é dia de Natal. Jamais gostei desse dia, mas acho que
neste ano vou gostar. Estou falando sozinho, no carro.
Rubem Fonseca, in Pequenas Criaturas
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