Percebendo
que o outono estava se aproximando rapidamente, Isaku observou os
tons avermelhados que se espalhavam nas encostas de um ângulo
diferente do ano anterior. Embora estivesse feliz por terem permitido
que trabalhasse com os adultos na cremação, ele tinha plena
consciência de sua posição na aldeia composta na maioria de
pessoas idosas, mulheres e crianças. Até aquele ano, como criança,
Isaku tinha apenas assistido aos rituais da vila, mas de agora em
diante, pensou ele, também teria de participar de modo ativo nos
procedimentos.
Depois
da cremação, os habitantes da vila desapareceram dentro de suas
casas. Isaku seguiu sua mãe para dentro de casa, passando pela
esteira de palha que cobria a entrada.
Sua
irmã Teru, que tinha nascido no final do ano anterior, engatinhava
pelo chão, chorando. Ela parecia ter estado chorando por um bom
tempo; estava com a voz rouca. Engatinhou na direção deles ao
reconhecer a mãe.
A
mãe ignorou-a, foi até a moringa que ficava na parte da casa com
chão de terra, pegou um pouco de água com uma concha rachada e
engoliu-a ruidosamente antes de se dirigir ao banheiro do lado de
fora, na parte de trás da casa. Depois de algum tempo ela retornou e
subiu na parte do chão coberta pelas esteiras de palha, enquanto
ajeitava a parte de trás do quimono. Ela sentou-se e acomodou Teru
sobre os joelhos. Abriu o quimono e expôs um mamilo grande e escuro.
Teru
moveu a cabeça de um lado para o outro tentando alcançar o mamilo.
Isaku conseguia ouvir Teru mamando; ela parecia estar com o nariz
entupido. De vez em quando virava a cabeça, afastando-se da mãe, e
respirava com tanta força que soava como uma pessoa adulta.
Era
hábito na vila não trabalhar tanto no dia da morte quanto no dia da
cremação, para não perturbar o morto. Isaku sentia-se bem, feliz
por não ter de ir pescar; ao mesmo tempo, temia a mãe, sabendo como
ela abominava o ócio. Lançava olhares furtivos na direção dela,
sentado na beirada de sua cama.
Não
havia sinal de seu irmão e de sua irmã; calculou que estivessem
brincando entre as árvores nos fundos da casa. Um fio fino de fumaça
vermelha erguia-se das achas de madeira em meio às cinzas no fogão.
— As
montanhas ficaram vermelhas — disse Isaku de forma amistosa para a
mãe.
Ela
não respondeu. O sol da tarde penetrava por um orifício na parede
de madeira, lançando um raio de luz na penumbra da sala e atingindo
a parte de trás da perna levemente curvada de Teru.
— Pegue
um pouco de lenha — disse a mãe.
Isaku
se levantou imediatamente e saiu pela porta dos fundos. Tufos de
grama eulália cresciam, aqui e ali na encosta rochosa. O sol estava
baixo entre os recortes das montanhas e metade da aldeia já se
encontrava no escuro. Ele pegou um pouco de lenha na pilha encostada
contra a parede dos fundos da casa.
Na
manhã seguinte Isaku foi pescar. A pesca seria interrompida no
princípio do inverno, quando o mar ficasse agitado; portanto, antes
disso era preciso estocar tantos frutos do mar quanto fosse possível.
Felizmente, os polvos de outono estavam aparecendo em quantidade
maior que o habitual.
No
recife, homens e meninos ficavam nos pequenos barcos pegando os
polvos entre as pedras com espetos. Isaku remou o barco do pai,
guiando-o pela água. Parou e pegou seu espeto longo com um gancho na
extremidade. Havia um pedaço de pano vermelho amarrado na ponta, e
ele o colocou dentro da água, mexendo nas plantas que cresciam ali.
Quando movia levemente a ponta do espeto, os polvos confundiam o pano
vermelho com comida e saíam de seus esconderijos no meio das pedras
ou das plantas. Isaku então usava sua habilidade para pegá-los com
o gancho do espeto.
Havia
tantos que às vezes Isaku pegava três ou quatro polvos assim que
colocava o espeto na água.
Fazia
dois anos que o pai de Isaku lhe ensinara corno pescar e como dirigir
o barco. Ao contrário da mãe, o pai de Isaku nunca erguera a mão
contra ele, mas seu humor taciturno causava terror no garoto. Quando
Isaku estava aprendendo a pescar polvos, ele derrubara o espeto na
água várias vezes, mas seu pai não dissera nada, apenas olhara
carrancudo para ele ao saltar na água para recuperá-lo.
Isaku
tinha perfeita consciência do status de masculinidade associado ao
fato de tornar-se um pescador profissional. Por isso estava ansioso
por aprender a arte, e apesar de sua inexperiência começara a sair
para o mar com os homens desde que o pai deixara a aldeia para
cumprir seu período de servidão.
Na
praia, os idosos e as crianças pequenas recolhiam algas enquanto as
mulheres entravam na água para pegar mexilhões nas pedras.
Às
vezes Isaku arriscava um olhar para as montanhas enquanto procurava
polvos. Dia após dia, o tom avermelhado parecia descer mais pelas
encostas, tingindo a superfície das montanhas com os matizes do
outono e já começando a alcançar as árvores das encostas
próximas.
Os
dias iam se tornando mais frios, e a água do mar também. Os polvos
pareciam vir em hordas para a costa, e às vezes um único movimento
do pano vermelho atraía dez das pequenas criaturas. Isaku puxava o
espeto e depois esperava que a nuvem de tinta desaparecesse antes de
voltar a colocar o espeto na água.
As
folhas das árvores atrás da vila atingiram seu máximo esplendor de
outono. Como acontecia todo ano naquela época, os polvos subitamente
começaram a se afastar da costa. Por mais que Isaku sacudisse o
espeto, apenas um ou outro polvo emergia, até que desapareceram por
completo.
A
temporada dos polvos terminou, mas o rendimento daquele ano tinha
sido maior que o habitual. Havia polvos pendurados do lado de fora de
cada casa, em cordas de palha trançada, cortados e colocados para
secar ao sol do outono. Os polvos não só eram um alimento
tradicional no Ano-Novo, como também um produto valioso para ser
trocado. Eram vendidos através da aldeia vizinha para as pessoas que
viviam nas montanhas, o que permitia aos habitantes da aldeia comprar
grãos.
O
ritual de O-fune-sama era realizado no período em que a
aldeia era envolvida pelas cores do outono. Com o marido no leme, um
barco transportando uma mulher de vinte e oito anos, grávida,
deixava a estreita faixa de areia. Olhando para o horizonte, ela
erguia uma pequena grinalda sagrada de palha enquanto o barco subia e
descia a caminho de águas mais profundas. Ele por fim parava depois
de ser conduzido com habilidade para além dos recifes. Os moradores
da aldeia reuniam-se na praia unindo suas palmas em preces quando a
mulher jogava a grinalda na água. A mulher grávida representava o
desejo deles por boa pesca, e o lançamento da grinalda sagrada na
água simbolizava o desejo de que um barco que passasse atingisse o
recife diante da aldeia.
Isaku,
sua mãe com Teru amarrada às costas, o irmão e a irmã menores,
todos olhavam o barco subir e descer nas ondas ao se aproximar
novamente da praia. A maré estava alta, e as pedras encontravam-se
quase completamente submersas, mas mesmo assim a água produzia
espuma aqui e ali.
O
barco alcançou a praia, e a mulher saltou para a areia. As pessoas
reunidas na praia se separaram para deixá-la passar e então a
seguiram encosta acima. Sendo normalmente uma pessoa alegre,
conhecida por suas risadas contagiantes, ela parecia uma pessoa
diferente ao caminhar com determinação encosta acima.
Ao
chegar à trilha, ela avançou com passos lentos e firmes até a casa
do chefe da aldeia. Isaku os seguiu lá para dentro, pisando no chão
de terra da entrada, olhando entre os homens que estavam à sua
frente. O velho chefe da aldeia encontrava-se sentado com as pernas
cruzadas, empertigado, com uma mesinha em formato de caixa e uma cuia
cheia de comida diante dele. A mulher se ajoelhou, colocando as mãos
no chão ao se curvar profundamente. Era a primeira vez que Isaku
assistia ao ritual, porque até então ele não tivera permissão
para entrar naquela casa.
A
mulher se levantou, ergueu a parte de baixo do quimono ao avançar
até a pequena mesa e a derrubou com um chute direto. Então
ajoelhou-se outra vez e curvou-se novamente diante do chefe da
aldeia. O ato de chutar a cuia expressava o desejo deles de que um
navio se acidentasse, e com isso a cerimônia terminava.
Os
habitantes locais começaram a retornar para suas casas. O trabalho
era proibido no dia da cerimônia de O-fune-sama, por isso
Isaku seguiu a mãe pela trilha estreita que levava à casa deles.
Diante
deles caminhava um homem chamado Senkichi, com sua família. Ele
tinha quebrado o fêmur quando criança, o que o deixara com uma
perna consideravelmente menor do que a outra, mas era famoso por
fazer as melhores canoas de um só tronco da aldeia. A filha mais
velha dele tinha sido vendida como serva, e comentava-se que a
segunda filha, de quinze anos, logo seria vendida também.
Os
olhos de Isaku se detiveram na terceira filha, Tami, que caminhava
atrás do pai. Ela tinha a pele escura como a mulher de Senkichi, mas
possuía olhos penetrantes e nariz reto. Os movimentos dela eram
suaves, como os de um felino. Sempre que olhava para Tami ele se
sentia estranhamente estimulado.
No
vilarejo, quando um rapaz completava quinze anos podia abordar a
menina que queria que fosse sua esposa. Era costume o jovem entrar na
casa da menina durante a noite, e se esta não o rejeitasse, a
família fingia que não o via. Isaku ansiava por uma oportunidade de
abraçar Tami. Ele receava que Tami, um ano mais nova que ele, se
entregasse a algum outro antes que ele alcançasse a idade exigida. A
ideia o assustava.
Ele
também temia que Tami fosse vendida como serva, como as irmãs mais
velhas. As mulheres eram geralmente vendidas como criadas, e algumas
voltavam para casa depois que o período de servidão terminava.
Algumas provavelmente abominavam a vida pobre na aldeia, e outras
conheciam algum homem durante o período de contrato e casavam-se
quando este terminava. E mesmo que uma ou outra retornasse, depois de
cumprir um contrato que podia chegar a dez anos, já estaria velha
demais para casar, a não ser que fosse com um homem viúvo. Havia
homens casados com mulheres mais velhas, e Isaku sentia que tinha
poucas chances de um dia viver sob o mesmo teto que Tami.
Chegaram
a uma bifurcação do caminho e Tami e seus pais seguiram pela trilha
paralela à costa. Isaku olhou para as pernas de Tami, que apareciam
sob o quimono.
Um
vento noroeste começou a soprar.
Isaku
trabalhou arduamente cortando lenha na floresta e levando a madeira
para os fundos da casa para ser cortada em cavacos. Nos dias em que o
mar estava calmo ele saía no barco e lançava uma linha na água.
A
cor vermelha nas encostas mais distantes havia desaparecido, e as
folhas das árvores na encosta atrás da aldeia perdiam a cor
rapidamente. A temperatura caía dia a dia. Em dias de vento, enormes
nuvens de folhas secas giravam no ar por entre as pedras e caíam na
trilha da aldeia ou nos telhados das casas. Muitas eram levadas para
o mar.
O
mar tornou-se agitado, e respingos das ondas caíam sobre as casas
mais próximas da praia. A aldeia estava envolta pelo som das ondas
que arrebentavam com força na praia e nas pedras.
Quando
o sol se punha, começava a atividade de fazer sal na estreita faixa
de areia da praia. As mulheres carregavam trinta caixas rasas do
depósito da casa do chefe da aldeia, alinhavam-nas na praia,
enchiam-nas com areia e depois jogavam água do mar por cima. Quando
a areia secava ao sol, era novamente lavada com água do mar. A água
altamente salgada era drenada para barris e transferida para dois
grandes caldeirões colocados perto do mar.
Cada
casa fornecia quantidades iguais de lenha, e os homens se revezavam
cuidando das fogueiras até o nascer do dia, quando o sal estaria
pronto. Ao mesmo tempo esse procedimento fornecia outro produto
essencial para a aldeia; o fogo sob os caldeirões também servia
para atrair O-fune-sama.
Akira Yoshimura, in Naufrágios
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