Existe
um mapa que serve de guia para a Praga de Kafka. Nele estão
assinalados com precisão os quinze lugares onde morou e escreveu, e
outros dezenove que vão do portal barroco da casa natal no centro da
cidade até o cemitério judaico em que está enterrado com os pais
num bairro distante. Entre o ponto de partida e o túmulo é possível
descobrir, entre outras coisas, o prédio em que o escritor aprendeu,
aos dois anos de idade, a língua tcheca com uma governanta, os
lugares onde fez o primário, o liceu e a faculdade de direito em
língua alemã, e as casas que viram o nascimento de O processo,
O castelo, dos contos, novelas e cartas, além do clube de
leitura, da sede dos anarquistas e de pelo menos três cafés que
frequentou com os amigos interessados em filosofia e literatura.
Não
faltam também as indicações sobre o salão de Berta Fanta (na
praça mais extraordinária de Praga), do qual foi habitué em
1910-1 para ouvir as preleções de Albert Einstein, nem sobre o
local das firmas em que trabalhou até se aposentar como jurista
especializado em seguros contra acidentes de trabalho — sem falar
de uma escola de remo e natação à beira do rio Moldava onde tinha
um barco, e da quadra da ilha Sofia em que jogava tênis.
Apesar
de tudo, não há comparação possível com a relação que se
estabeleceu entre Dublin e Joyce ou entre o Rio de Janeiro e Machado
de Assis. Ao contrário do que acontece nas narrativas desses
escritores, não aparece na ficção madura de Kafka nenhuma menção
aos nomes de ruas, becos, praças, jardins, monumentos ou igrejas da
cidade. É verdade, por outro lado, que de vários pontos de Praga
pode ser avistado o castelo, iluminado em cores até tarde da noite
como um Xanadu boêmio que, visto pelo ângulo do romance kafkiano,
tem aspecto sinistro, mas olhado como cartão-postal pode virar
kitsch. Ainda assim há quem afirme que o modelo para o
castelo de Kafka não é esse, e, se de fato ele deriva de uma
realidade imediata, sua localização tem de ser no campo. De todo
modo, a semelhança existe e a experiência daquele que sai do centro
para chegar à parte baixa pela ponte de Carlos e depois começa a
subir a ladeira calçada de pedras vendo o castelo surgir e
desaparecer a cada curva é (conforme o caso) a de recompor através
de sugestões sucessivas os passos do agrimensor K. no primeiro
capítulo de O castelo. Nessa mesma linha de cogitação, não
escapa ao observador que a vista da janela do quarto onde Kafka
escreveu esse Fausto do século XX, na esquina da rua Paris
com o anel da cidade velha, no centro abre para a maciça presença
da torre do relógio medieval, para uma igreja barroca e para as
agulhas da catedral que do alto da colina dominam as muralhas do
burgo até hoje ocupado pela administração do Estado.
Não
é menos expressiva a proximidade entre os cenários de O
processo, as vias de comunicação urbana e um tipo de
arquitetura remanescente da antiga capital do reino. As cidades em
geral destacam o espaço interno do externo separando casas, ruas,
avenidas, praças e bairros. Mas, no miolo de Praga, o espaço aberto
está ligado ao ambiente privado por inúmeras “passagens internas”
(em alemão, Durchhäusern), que levam o cidadão, debaixo de
abóbadas, de uma rua a um pátio, a um labirinto ou a outra rua pelo
interior das residências. Esse traçado não deve ser equiparado sem
especificações às galerias pelas quais o flâneur
baudelairiano de Benjamin passeava sob o olhar das mercadorias que o
espiavam das vitrines como armadilhas de consumo e modernidade. As
passagens internas de Praga sugerem, antes, os vasos comunicantes que
articulam o convívio da cidade ancestral com a metrópole, e do
ponto de vista utilitário elas podem oferecer ao passante um
itinerário alternativo onde são plausíveis algumas considerações
históricas. Dessa topografia pouco comum, que na terra de Kafka é
habitual, parece tirar proveito estético a trama espacial do grande
romance kafkiano. Assim, o tribunal que persegue Josef K. tem acesso
a qualquer domínio público ou particular, podendo invadir a moradia
do herói, emergir sem aviso na sala dos fundos de uma casa de
cômodos do subúrbio, deslocar os cartórios judiciais para sótãos
imundos, estar representado na água-furtada de um pintor de
paisagens e magistrados e fazer baixar a condenação sobre o acusado
numa catedral gótica mergulhada no escuro. Um passo adiante, vale a
pena recordar que o herói ou anti-herói dessa obra-fragmento é
executado por dois carrascos de cartola numa pedreira fora da cidade
com uma faca de açougueiro, que eles giram duas vezes no coração
do réu, que não sabe por que nem por quem foi processado, mas que
nem por isso deixa de morrer como um cão.
Insistindo
mais um pouco, também os apartamentos de Praga podem ser diferentes,
uma vez que não é sempre que neles se veem corredores isolando os
aposentos, como seria de esperar, ou seja: é muito comum que um
espaço entre no outro, como acontece no domicílio classe média da
família Samsa, em A metamorfose, no qual o quarto de Gregor,
através de três portas, põe o inseto rejeitado em contato direto —
sob o mesmo teto — com o quarto dos pais, com o da irmã e com a
sala de jantar até então calma e recatada.
Num
ensaio clássico sobre o escritor, Walter Benjamin afirma que em
Kafka as deformações são precisas; não é para menos. Nessa
direção, talvez não seja um impulso de fantasia imaginar que a
estrutura interna da cidade e sua posição de posto avançado do
velho império habsburguês na confluência dos caminhos cruzados da
Europa têm algo a ver com a maneira literária que se
manifestou na Escola de Praga em fins do século xix e começo do XX
— da qual, aliás, Kafka poderia ser representante já aos vinte
anos se uma originalidade pertinaz não o tivesse mais tarde impedido
de fazê-lo.
Seja
como for, não é razoável assimilar sem cautela a escrita e os
temas kafkianos à cadência intimista do primeiro Rilke (que por
sinal falava de um “espaço interno do mundo” — Weltinnenraum),
aos transbordamentos de Werfel, à mística de Meyrinck ou ao
erotismo art nouveau de Brod. Por menos que pareça — a ideia vem
de uma comparação feita por Roberto Schwarz —, Kafka está mais
próximo do Bravo soldado Schweik do tcheco Haček do que dos
esforços estetizantes dos seus companheiros de geração. À
diferença destes, que buscavam superar o beco-sem-saída do alemão
cartorial da classe dirigente por meio de uma inventividade verbal
postiça, o autor da Carta ao pai foi pelo caminho inverso,
assumindo a linguagem desvitalizada da burocracia como instrumento
inesperado de criação literária.
Klaus
Wagenbach descreveu o idioma germânico praticado em Praga como uma
língua de cerimônia subvencionada pelo Estado — e foi dele que
saiu, como pão do forno, o famoso protocolo kafkiano. Pois era
justamente aquele tipo de esclerose linguística que vinha facilitar
o exame à distância de cada palavra (coisa que talvez um dialeto
não permitisse), circunstância que transparece no recuo narrativo,
no rigor vocabular e na sintaxe empertigada de Kafka, principalmente
a partir de O veredicto (1912), ponto de inflexão de sua
obra.
Falando
de outro modo, é como se a Dupla Monarquia, já agonizante,
estivesse dando o melhor de si para compensar a derrocada que se
consumaria logo depois em Sarajevo. Mas havia outros motivos para
essa desforra intelectual — um dos que contam foi a emancipação
dos judeus na metade do século XIX. Os avós de Kafka pertenceram
completamente ao mundo dos guetos, mas o mesmo não aconteceu com o
pai, Herrmann, que se impôs como comerciante e self-made man
implacável, capaz inclusive de infernizar o filho com comparações
supostamente desabonadoras, segundo consta na Carta ao pai. A
outra face da moeda é que tanto Franz (homenagem ao imperador Franz
Josef) como seus amigos mais ilustrados receberam o benefício da
emancipação política (relativa e sujeita a graves retrocessos) e
da acumulação material alcançada pelos pais. Isso possibilitou que
eles se voltassem para as artes e o pensamento com rebeldia, ardor e
maior ou menor grau de talento, buscando quem sabe recuperar a
espiritualidade dos avós por uma via secularizada: não surpreende
que quase todos tivessem simpatia pelo povo tcheco explorado e pelas
posições políticas de esquerda.
Evidentemente
todo esse trançado corre paralelo à tensão entre as três culturas
— alemã, tcheca e judaica — que conviviam e colidiam umas com as
outras em Praga. Transformada de periferia dos Habsburgo em capital
do reino, ela foi até o fim do século xix (Kafka é de 1883) uma
cidade mais alemã do que tcheca, mas antes ainda da Primeira Guerra
Mundial, que selou o fim da monarquia do Danúbio, Praga já era
predominantemente tcheca, o que se consolidou de uma vez na República
de Masarik.
Embora
oficial, a língua alemã era o veículo de uma minoria, tanto a da
classe governamental quanto a da parte abastada da comunidade
judaica, que a adotou depois de atraída pela ascensão social, o que
a tornava alvo dramático da hostilidade, potenciada pelo
antissemitismo, da maioria tcheca e dos próprios alemães. Sob
títulos diferentes Kafka nunca deixou de definir a si mesmo como
alguém que pertencia a esse triângulo das Bermudas centro-europeu:
à minoria alemã pela cultura e pela língua em que escrevia, à
população tcheca cujas aspirações legítimas apoiava, e aos
judeus com quem mantinha os laços de origem. No primeiro capítulo
de O processo, Josef K. fica perplexo ao constatar que entre
os representantes do tribunal incumbidos de detê-lo — o que afinal
não acontece, porque ele fica solto até o fim do livro — figuram
três funcionários do banco onde trabalha: Kullich, nome tcheco,
Rabensteiner, nome judeu, e Kaminer, nome alemão. A alusão é
sibilina, mas está lá; como se sabe, Kafka impediu, na sua obra,
qualquer identificação fácil com a realidade histórica.
Voltando
a Praga, uma das suas experiências mais desnorteantes é que a
heterogeneidade das culturas que ela abrigava acabou por torná-la um
lugar de desabrigados (em alemão, Heimatlose, cifra
rilkiana), onde, no limite, ninguém conseguia garantir para si mesmo
um lar definido e muito menos definitivo. Para quem fazia literatura
em língua alemã no país dos tchecos, a sensação de
desenraizamento correspondia taco a taco à realidade: Franz Werfel
afirmava que Praga não tinha realidade e Paul Kornfeld a descreveu
como um hospício metafísico. A tradução idealizada desse estado
de coisas foi, durante muito tempo, a fórmula “Praga mágica”,
que ninguém menos que Thomas Mann usou ao definir a cidade como a
mais mágica do mundo. Mas a leitura a contrapelo dos paradoxos que
marcavam a capital da Boêmia e mais tarde da Tchecoslováquia ficou
a cargo de exilados como Malte Laurids Brigge e dos
personagens-forasteiros de Kafka, fossem eles Karl Rossmann, Gregor
Samsa, Josef K. ou K.
Exílio
e expulsão são experiências que se complementam. Num de seus
aforismos praguenses, Kornfeld dispara que a porta pela qual o homem
foi expulso do Paraíso dava para uma delegacia de polícia. A imagem
revive a contiguidade de espaços incompatíveis em termos de
repressão social, embora o que veio depois tenha sido muito, muito
pior. Em última análise, o desterramento da literatura alemã de
Praga foi vivido de maneira irreparavelmente dolorosa pela última
geração de judeus que escaparam à fúria cega do nazismo, mas não
ao horror de saber que sua cidade chegou a ser pensada como sede do
hediondo museu da raça extinta.
Não
espanta, portanto, que nas invenções de Kafka o narrador de O
processo, depois de apresentar a seco a macabra execução de
Josef K., feche o romance declarando que “era como se a vergonha
devesse sobreviver a ele”. É pertinente relembrar que a obra foi
escrita entre agosto de 1914 e janeiro de 1915, editada em 1925 por
Max Brod, caçada pelos nazistas e posta no ostracismo pela estética
oficial stalinista. Ela no entanto resistiu, e a história da prosa
universal lhe assegurou a posteridade: na Alemanha do pós-Segunda
Guerra o seu teor de verdade foi imediatamente reconhecido diante da
brutalidade inconcebível dos fatos recentes, e agora faz muito tempo
que ela consta das leituras obrigatórias de qualquer cidadão
civilizado — seja onde for.
Mas
como eram as relações pessoais de Kafka com Praga? É raro que um
escritor passe praticamente a vida inteira em alguns quilômetros
quadrados de uma cidade, como foi o caso do maior artista literário
da língua alemã neste século. É conhecido que Kafka podia ler a
história desse lugar a partir das velhas paredes dos prédios que
ele conhecia na palma da mão. Mas o comportamento afetivo profundo
passava por outros caminhos que não os do conhecimento factual e é
possível que encontrasse sua expressão mais complexa e matizada no
ódio-amor (em alemão, Hassliebe) que o ligava àquele pedaço
do “coração da Europa”. No conto “O brasão da cidade”
fala-se da nostalgia pelo dia profetizado em que a cidade será
destroçada por um punho gigantesco com cinco golpes em rápida
sucessão; por isso no seu brasão figura um punho fechado.
A
associação com Praga no plano subjetivo não é forçada e remete a
analogias materiais contundentes. Nas suas memórias, Willy Haas
afirma que “sem dúvida Kafka disse tudo que nós [escritores
alemães da cidade] tínhamos para dizer e não dissemos, não
pudemos dizer [...]. Não posso imaginar como um homem possa
compreendê-lo se não nasceu na Praga dos anos 1880-90”. A forma
literária criada por Kafka generalizou a experiência que ele
internalizou para torná-la inteligível em toda parte, sem dispensar
indícios e vestígios relevantes. Mas mesmo sob o aspecto
estritamente individual, o escritor não perdeu a oportunidade de
exprimir o que sentia pela cidade natal que conservou o portal da
casa onde ele nasceu e ali fixou uma placa comemorativa. A frase que
resume esse sentimento é famosa: Praga laesst nicht los. Das
Muetterchen hat Krallen (Praga não solta. A mãezinha tem
garras). Dificilmente a obra de Kafka teria sido o que foi sem as
feridas que ele recebeu dessa bela cidade.
Modesto Carone, in Lição de Kafka
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