K
Sempre
desejei possuir um cipreste; posso, enfim, satisfazer esse meu
desejo.
O
cipreste que comprei fica no campo, mas daqui até a cidade a
distância não é grande e posso vir vê-lo todas as tardes, ao pôr
do sol, e sentar-me sob os seus ramos para meditar sabiamente. Houve
até uma noite, plena madrugada, em que vim vê-lo sob um luar
esplêndido, e em razão justamente desse luar: é que sob o meu
quarto mora agora uma pobre louca, que não suporta a lua cheia e se
põe a uivar desesperadamente — e eu não suporto o uivo dos
loucos, sobretudo dos que não conheço. (Sempre ouvi falar dessa
história de loucos ladrarem à lua cheia como se fossem cães
desesperados, mas nunca lhe dei maior atenção; agora sei que é
verdade.)
Mas
o meu cipreste, modéstia à parte, é um mimo de cipreste e bem
mereceria estar num cemitério, ao lado de outros fantasmas de sua
espécie, povoando a solidão dos mortos e velando o seu sono
tranquilo e eterno. A princípio pareceu-me um pouco baixo, mas nessa
noite em que a lua cheia refletiu seu vulto trágico por sobre o
campo pude capacitar-me de que era o cipreste que me convinha, e
passei a amá-lo perdidamente. Hoje somos um só corpo e uma só
alma, e passo horas recostado ao seu tronco amigo como um filho nos
braços de sua mãe verdadeira, o olhar perdido na imensidão do
campo e o coração pulsando suave e sem remorsos.
Aliás,
foi para filosofar, mais do que tudo, que eu adquiri este cipreste
solitário e perdido no campo, aos pés dessa cidade que não é a
minha e que um dia terei que abandonar repentinamente, como tenho
abandonado a tudo e a todos, antes que me abandonem. À falta de um
pórtico grego ou romano, no puro estilo da Acrópole, a sombra de um
cipreste sempre me pareceu o lugar ideal para divagações profundas
sobre o eterno e o efêmero no destino humano, sobretudo quando se é
solitário por natureza como eu sou e não se tem necessidade de
espaço maior para cantar em surdina sua milenar angústia. Cipreste
lembra morte — isto é, o inelutável, a única certeza que salta
aos olhos até dos mais tolos e inocentes — e que melhor
conselheiro e guia para os nossos pensamentos de grandeza mas sem
grandeza, e nossos temores e angústias construídos de fumaça e que
por isso mesmo nos intoxicam e nos turvam a visão?
Isto
mesmo que estou escrevendo, está sendo escrito à luz do crepúsculo,
nesta réstia de terra que é minha propriedade como o é o próprio
cipreste que a cobre como consta, aliás, da escritura de venda que
me passou o comerciante Nicanor, estabelecido com secos e molhados no
cais do porto. Esta noite a louca sob os meus pés uivou muito e
impediu-me de conciliar o sono, embora não fosse lua cheia, mas eu
não pude vir porque chovia muito e a chuva molha a alma mais do que
o corpo. Agora, porém, na paz deste campo ainda úmido e cheirando a
cemitério, eu e o meu cipreste voltamos a unir-nos numa união
perfeita e total, como se eu fora a sua sombra ou simplesmente a sua
alma visível e taciturna. O vento é o nosso intérprete, o vento
que vem do mar distante e agita os meus cabelos de eterno viúvo e os
seus ramos em eterna prece, voltados para o infinito.
Um
chinês bêbado é muito difícil de distinguir-se de um chinês
sóbrio. Ambos têm os olhos fechados, embora abertos, e sorriem
tranquilamente para o nada, como é do seu hábito. Há instantes em
que eu me sinto um chinês perfeito — Chiang O’Lyi, por sinal —
e me ponho a rememorar todos os meus antepassados milenários, com
rabicho e bigodes em forma de antena, captando o mistério que vem
dos subterrâneos do mundo. Cada dia, aliás, eu pertenço a uma raça
diferente, negra, amarela, roxa ou simplesmente furta-cor, e já me
tem acontecido despertar sob a pele de uma raça ainda inexistente e
de que só darão notícia os etnólogos dentro de mil anos, se até
lá chegar a raça humana. Sob a máscara unicápita que reflete o
meu espelho jazem os milhões de rostos que formam o meu homo
multiplex, e é em vão que tento iludir-me a mim mesmo quando me
faço a barba, como se fora um ser único e cotidiano. O próprio
Cristo, que se dizia unigênito, era em verdade tríplice e muito
mais do que tríplice, tanto que o desconheciam os seus próprios
irmãos e os desconhecia ele por sua vez numa humanidade que abrangia
toda a humanidade, sem distinção de tempo ou espaço. Eu e meu
irmão somos apenas uma partícula ínfima do meu todo onímodo e
universal, que de fato compreende toda uma multidão incalculável, e
é com pasmo que nos vejo a todos sentados sobre este metro quadrado
de terra e de sombra, sem que sequer nos esmaguemos com nossos mil
braços e pernas, quando porventura levamos a mão aos olhos para
chorar um pouco.
Se
você chama um avestruz de pássaro, está implicitamente fazendo-lhe
o maior dos elogios, e ele ficará eternamente grato por isso. (E,
para ser sincero, não é mais justo que se chame de pássaro ao
avestruz, em vez do gavião ou da águia, que envergonham a espécie
e mereceriam antes ser humanos?). Mas o avestruz a que você chamasse
de pássaro estaria, por sua vez, implicitamente obrigado a proceder
como tal, nem que isso lhe custasse todos os riscos de vida e a
própria vida — como sei de um que, para provar sua condição de
pássaro, se atirou do alto de um penhasco e foi morrer lá em baixo
espatifado, sem tempo sequer para um gemido. Morreu como um pássaro,
esta é que é a verdade, e como pássaro foi enterrado.
Quanto
a mim, apetecer-me-ia ser chamado de santo, ou, melhor ainda, de
fantasma, para ser obrigado a agir como tal, com esta força de
convicção que emprego em tudo quanto faço, quando faço. Santo
ainda seria um pouco difícil mas como fantasma eu me sentiria
inteiramente à vontade, tanto me sinto fantasma em meus momentos de
devaneio e me sinto deslocado em meio aos homens movidos a intestinos
e testículos. Por vezes me sinto tão fantasma — em meio à noite,
sobretudo que chego a erguer-me do solo, por um espaço de tempo que
varia entre cinco a dez segundos, num puro fenômeno de levitação —
o que me custa, é bem verdade, uma terrível dor nos rins e uma
copiosa exsudação, logo refletidas numa dor de cabeça
insuportável, que por pouco não me leva ao desespero. Bastaria,
porém, (disso estou convicto) que alguém me tomasse sinceramente
por um fantasma e me chamasse por esse belo nome, os cabelos eriçados
de pavor como acontece no cinema — para que eu, sem o menor
esforço, não só me pusesse a flutuar no espaço como ainda
começasse a atravessar portas e paredes, com o ar mais displicente
deste mundo. A confiança que os outros têm em nós é mais
importante do que a que nós mesmos temos, e disso dou testemunho
exatamente pela minha vocação frustrada de fantasma, à qual faltou
apenas alguém que acreditasse cegamente em mim e me transmitisse
essa crença inabalável.
Mas
já se faz noite, ou quase, a esta altura de minhas lucubrações
metapsíquicas, e eu não trouxe vela nem lanterna para iluminar meu
caderno de notas e meu lápis de ponta vermelha, como deveria ter
feito e cuidarei de fazer para o futuro.
Adeus,
pois, cipreste amigo, por hoje pelo menos — e ficarei na
expect..........................................
Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia
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