domingo, 12 de março de 2023

Cosmogonia

K

Sempre desejei possuir um cipreste; posso, enfim, satisfazer esse meu desejo.

O cipreste que comprei fica no campo, mas daqui até a cidade a distância não é grande e posso vir vê-lo todas as tardes, ao pôr do sol, e sentar-me sob os seus ramos para meditar sabiamente. Houve até uma noite, plena madrugada, em que vim vê-lo sob um luar esplêndido, e em razão justamente desse luar: é que sob o meu quarto mora agora uma pobre louca, que não suporta a lua cheia e se põe a uivar desesperadamente — e eu não suporto o uivo dos loucos, sobretudo dos que não conheço. (Sempre ouvi falar dessa história de loucos ladrarem à lua cheia como se fossem cães desesperados, mas nunca lhe dei maior atenção; agora sei que é verdade.)
Mas o meu cipreste, modéstia à parte, é um mimo de cipreste e bem mereceria estar num cemitério, ao lado de outros fantasmas de sua espécie, povoando a solidão dos mortos e velando o seu sono tranquilo e eterno. A princípio pareceu-me um pouco baixo, mas nessa noite em que a lua cheia refletiu seu vulto trágico por sobre o campo pude capacitar-me de que era o cipreste que me convinha, e passei a amá-lo perdidamente. Hoje somos um só corpo e uma só alma, e passo horas recostado ao seu tronco amigo como um filho nos braços de sua mãe verdadeira, o olhar perdido na imensidão do campo e o coração pulsando suave e sem remorsos.
Aliás, foi para filosofar, mais do que tudo, que eu adquiri este cipreste solitário e perdido no campo, aos pés dessa cidade que não é a minha e que um dia terei que abandonar repentinamente, como tenho abandonado a tudo e a todos, antes que me abandonem. À falta de um pórtico grego ou romano, no puro estilo da Acrópole, a sombra de um cipreste sempre me pareceu o lugar ideal para divagações profundas sobre o eterno e o efêmero no destino humano, sobretudo quando se é solitário por natureza como eu sou e não se tem necessidade de espaço maior para cantar em surdina sua milenar angústia. Cipreste lembra morte — isto é, o inelutável, a única certeza que salta aos olhos até dos mais tolos e inocentes — e que melhor conselheiro e guia para os nossos pensamentos de grandeza mas sem grandeza, e nossos temores e angústias construídos de fumaça e que por isso mesmo nos intoxicam e nos turvam a visão?
Isto mesmo que estou escrevendo, está sendo escrito à luz do crepúsculo, nesta réstia de terra que é minha propriedade como o é o próprio cipreste que a cobre como consta, aliás, da escritura de venda que me passou o comerciante Nicanor, estabelecido com secos e molhados no cais do porto. Esta noite a louca sob os meus pés uivou muito e impediu-me de conciliar o sono, embora não fosse lua cheia, mas eu não pude vir porque chovia muito e a chuva molha a alma mais do que o corpo. Agora, porém, na paz deste campo ainda úmido e cheirando a cemitério, eu e o meu cipreste voltamos a unir-nos numa união perfeita e total, como se eu fora a sua sombra ou simplesmente a sua alma visível e taciturna. O vento é o nosso intérprete, o vento que vem do mar distante e agita os meus cabelos de eterno viúvo e os seus ramos em eterna prece, voltados para o infinito.
Um chinês bêbado é muito difícil de distinguir-se de um chinês sóbrio. Ambos têm os olhos fechados, embora abertos, e sorriem tranquilamente para o nada, como é do seu hábito. Há instantes em que eu me sinto um chinês perfeito — Chiang O’Lyi, por sinal — e me ponho a rememorar todos os meus antepassados milenários, com rabicho e bigodes em forma de antena, captando o mistério que vem dos subterrâneos do mundo. Cada dia, aliás, eu pertenço a uma raça diferente, negra, amarela, roxa ou simplesmente furta-cor, e já me tem acontecido despertar sob a pele de uma raça ainda inexistente e de que só darão notícia os etnólogos dentro de mil anos, se até lá chegar a raça humana. Sob a máscara unicápita que reflete o meu espelho jazem os milhões de rostos que formam o meu homo multiplex, e é em vão que tento iludir-me a mim mesmo quando me faço a barba, como se fora um ser único e cotidiano. O próprio Cristo, que se dizia unigênito, era em verdade tríplice e muito mais do que tríplice, tanto que o desconheciam os seus próprios irmãos e os desconhecia ele por sua vez numa humanidade que abrangia toda a humanidade, sem distinção de tempo ou espaço. Eu e meu irmão somos apenas uma partícula ínfima do meu todo onímodo e universal, que de fato compreende toda uma multidão incalculável, e é com pasmo que nos vejo a todos sentados sobre este metro quadrado de terra e de sombra, sem que sequer nos esmaguemos com nossos mil braços e pernas, quando porventura levamos a mão aos olhos para chorar um pouco.
Se você chama um avestruz de pássaro, está implicitamente fazendo-lhe o maior dos elogios, e ele ficará eternamente grato por isso. (E, para ser sincero, não é mais justo que se chame de pássaro ao avestruz, em vez do gavião ou da águia, que envergonham a espécie e mereceriam antes ser humanos?). Mas o avestruz a que você chamasse de pássaro estaria, por sua vez, implicitamente obrigado a proceder como tal, nem que isso lhe custasse todos os riscos de vida e a própria vida — como sei de um que, para provar sua condição de pássaro, se atirou do alto de um penhasco e foi morrer lá em baixo espatifado, sem tempo sequer para um gemido. Morreu como um pássaro, esta é que é a verdade, e como pássaro foi enterrado.
Quanto a mim, apetecer-me-ia ser chamado de santo, ou, melhor ainda, de fantasma, para ser obrigado a agir como tal, com esta força de convicção que emprego em tudo quanto faço, quando faço. Santo ainda seria um pouco difícil mas como fantasma eu me sentiria inteiramente à vontade, tanto me sinto fantasma em meus momentos de devaneio e me sinto deslocado em meio aos homens movidos a intestinos e testículos. Por vezes me sinto tão fantasma — em meio à noite, sobretudo que chego a erguer-me do solo, por um espaço de tempo que varia entre cinco a dez segundos, num puro fenômeno de levitação — o que me custa, é bem verdade, uma terrível dor nos rins e uma copiosa exsudação, logo refletidas numa dor de cabeça insuportável, que por pouco não me leva ao desespero. Bastaria, porém, (disso estou convicto) que alguém me tomasse sinceramente por um fantasma e me chamasse por esse belo nome, os cabelos eriçados de pavor como acontece no cinema — para que eu, sem o menor esforço, não só me pusesse a flutuar no espaço como ainda começasse a atravessar portas e paredes, com o ar mais displicente deste mundo. A confiança que os outros têm em nós é mais importante do que a que nós mesmos temos, e disso dou testemunho exatamente pela minha vocação frustrada de fantasma, à qual faltou apenas alguém que acreditasse cegamente em mim e me transmitisse essa crença inabalável.
Mas já se faz noite, ou quase, a esta altura de minhas lucubrações metapsíquicas, e eu não trouxe vela nem lanterna para iluminar meu caderno de notas e meu lápis de ponta vermelha, como deveria ter feito e cuidarei de fazer para o futuro.
Adeus, pois, cipreste amigo, por hoje pelo menos — e ficarei na expect..........................................

Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia

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