Minhas
primeiras experiências com meninos foram muito invasivas, vó. Por
isso, entre meus dezesseis e dezenove anos, eu saía com minhas
colegas sem pensar muito em garotos, só para curtir o passeio. Sabia
que ninguém iria querer ficar comigo e, de algum modo, eu também
não queria nada com ninguém, porque sempre fui muito sensível. Há
que se fazer a diferença aqui entre sensível e suscetível.
Sensível é um traço bom, de alguém que se deixa comover —
quando adolescente eu já chorava com músicas que me emocionavam,
com livros. Suscetível, por outro lado, é ser frágil, passivo. Eu
não era suscetível ao desejo dos meninos, eu os repelia. Por ser
sensível, eu repelia, mesmo quando eles tentavam me colocar como
medrosa por eu não querer que eles abaixassem meu top sem
autorização. A sensação de não me sentir respeitada foi a
principal responsável por eu me afastar deles.
Mas
lá no fundo, vó, eu fantasiava com amores intensos, desejava ter um
encontro de verdade, com o garoto indo me buscar em casa e não me
acossando em um banco de praia. Após o breve relacionamento que tive
com o rapaz da igreja messiânica — a primeira vez em que me
apaixonei de verdade, tirando as paixonites não correspondidas de
adolescente (algumas até expostas pelos rapazes ofendidos pela preta
gostar deles) —, eu fiquei mais alguns anos sozinha. Até saía com
alguns rapazes, mas nada sério. Eles eram quase todos agressivos,
queriam algo rápido e sem romance e eu detestava. Sofria muito
porque queria estar com alguém, mas nunca me senti respeitada.
Lembro que, na adolescência, quando chegava o Dia dos Namorados,
várias garotas ganhavam ursinhos de pelúcia, caixas de bombons e
outros presentes dos namorados ou pretendentes. Eu e minha irmã
nunca ganhamos nada e observávamos a alegria das garotas na hora do
intervalo e nossa sensação de não pertencimento.
Quando
eu tinha vinte anos, comecei a frequentar os bailes black da cidade,
especialmente o do Bar do 3. Minhas amigas e eu passávamos horas nos
arrumando pra sair, combinávamos as roupas, penteados. Pela primeira
vez eu senti a sensação de pertencer. Os rapazes nos queriam, nós
não éramos mais as feias da turma. A noite de sábado era um
verdadeiro acontecimento pra nós. Gostava de me sentir bonita, ser
chamada de rainha do baile, me destacar com minhas blusas de
lantejoulas e macacões abertos nas costas. Porém, com o tempo, fui
deixando de me encaixar. Dançava a noite toda e voltava pra casa
sozinha. Ficava horas ouvindo músicas românticas no meu radinho
Lenoxx, comprado com o meu primeiro salário, e sonhava com o dia em
que um homem tivesse o desejo real de me conhecer e não somente de
me usufruir.
De
algum modo, o preterimento me salvou, pois aproveitei o tempo sozinha
lendo, escrevendo poesias, indo às reuniões em um centro espírita
da cidade. Mas as poucas experiências que tive foram marcadas pelo
olhar condicionado que nos sexualiza. Eu demorei a ter uma relação
de verdade. Como mulher, eu era um produto que tinha como dono outro
produto. Como negra, eu era um subproduto que tinha como dono outro
subproduto. Um sub-subproduto. Todos tinham direitos sobre mim. Eu
não tinha lugar nem na prateleira.
Quando
saí com Allan, aos dezesseis anos, ele não quis andar de mãos
dadas comigo ou me levar para tomar um refrigerante. Não perguntou
sobre minha música favorita, se meus pais eram bravos, onde eu
morava ou qual era a minha matéria preferida na escola. Ele não
achou que eu merecia esse cuidado, vó. Após uma conversa-fiada, já
quis logo se apossar de mim, sem saber que eu era filha da mulher que
desafiou um patrão assediador segurando uma frigideira com óleo
quente. Ele seria aquele que jamais tocaria em meus cabelos, mesmo
querendo tocar no meu corpo. Eu era somente um instrumento de prazer,
talvez uma iniciação para um garoto na puberdade, e não uma pessoa
com quem ele gostaria de namorar.
Eu
não sei como você criou meus tios, vó, mas todos parecem
respeitosos com suas companheiras. Minha mãe, mesmo dando regalias
aos meus irmãos em relação às tarefas domésticas, costumava ser
brava quando o assunto era relacionamento. Sempre disse a eles que,
se estivessem namorando e ela descobrisse que eles estavam traindo as
namoradas, ela contaria. E uma vez ela fez isso mesmo. Uma moça
ligou para um irmão meu e minha mãe logo percebeu do que se
tratava. Quando ele levou a namorada pra jantar em casa, minha mãe a
recebeu dizendo, sem o mínimo constrangimento: “Você sabe que ele
fica recebendo ligação de outra mulher?”. Ela batia no peito
dizendo que criaria homens dignos, que vigiaria tudo muito de perto.
Meus irmãos só foram se relacionar de modo mais duradouro após a
morte dela. Eles a respeitavam e temiam decepcioná-la.
Quando
engravidei, torcia muito para não ser um menino, não porque não
goste de meninos, claro que não, mas porque não me sentia preparada
para educar um homem numa sociedade machista. Como ensiná-lo a ser
decente num mundo que produz masculinidades tóxicas? Aos vinte e
quatro anos, não me sentia nem um pouco preparada para essa tarefa.
Anos depois, quando pensei em engravidar de novo, desejei um menino.
Com mais de trinta anos, madura, eu saberia educá-lo, apresentar
outras referências, ensiná-lo a ser criança e não menino. Passado
um tempo, porém, decidi que não queria ter outro filho. Tenho
sobrinhos e isso me satisfaz. São rapazes com caráter, você
ficaria orgulhosa, vó. No entanto, as preocupações seguem as
mesmas: cuidar para que eles sempre saiam com documentos, ensiná-los
como proceder numa eventual parada da polícia, rezar para que eles
cheguem em casa.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
Nenhum comentário:
Postar um comentário