domingo, 19 de março de 2023

Cartas para minha avó

Minhas primeiras experiências com meninos foram muito invasivas, vó. Por isso, entre meus dezesseis e dezenove anos, eu saía com minhas colegas sem pensar muito em garotos, só para curtir o passeio. Sabia que ninguém iria querer ficar comigo e, de algum modo, eu também não queria nada com ninguém, porque sempre fui muito sensível. Há que se fazer a diferença aqui entre sensível e suscetível. Sensível é um traço bom, de alguém que se deixa comover — quando adolescente eu já chorava com músicas que me emocionavam, com livros. Suscetível, por outro lado, é ser frágil, passivo. Eu não era suscetível ao desejo dos meninos, eu os repelia. Por ser sensível, eu repelia, mesmo quando eles tentavam me colocar como medrosa por eu não querer que eles abaixassem meu top sem autorização. A sensação de não me sentir respeitada foi a principal responsável por eu me afastar deles.
Mas lá no fundo, vó, eu fantasiava com amores intensos, desejava ter um encontro de verdade, com o garoto indo me buscar em casa e não me acossando em um banco de praia. Após o breve relacionamento que tive com o rapaz da igreja messiânica — a primeira vez em que me apaixonei de verdade, tirando as paixonites não correspondidas de adolescente (algumas até expostas pelos rapazes ofendidos pela preta gostar deles) —, eu fiquei mais alguns anos sozinha. Até saía com alguns rapazes, mas nada sério. Eles eram quase todos agressivos, queriam algo rápido e sem romance e eu detestava. Sofria muito porque queria estar com alguém, mas nunca me senti respeitada. Lembro que, na adolescência, quando chegava o Dia dos Namorados, várias garotas ganhavam ursinhos de pelúcia, caixas de bombons e outros presentes dos namorados ou pretendentes. Eu e minha irmã nunca ganhamos nada e observávamos a alegria das garotas na hora do intervalo e nossa sensação de não pertencimento.

Quando eu tinha vinte anos, comecei a frequentar os bailes black da cidade, especialmente o do Bar do 3. Minhas amigas e eu passávamos horas nos arrumando pra sair, combinávamos as roupas, penteados. Pela primeira vez eu senti a sensação de pertencer. Os rapazes nos queriam, nós não éramos mais as feias da turma. A noite de sábado era um verdadeiro acontecimento pra nós. Gostava de me sentir bonita, ser chamada de rainha do baile, me destacar com minhas blusas de lantejoulas e macacões abertos nas costas. Porém, com o tempo, fui deixando de me encaixar. Dançava a noite toda e voltava pra casa sozinha. Ficava horas ouvindo músicas românticas no meu radinho Lenoxx, comprado com o meu primeiro salário, e sonhava com o dia em que um homem tivesse o desejo real de me conhecer e não somente de me usufruir.
De algum modo, o preterimento me salvou, pois aproveitei o tempo sozinha lendo, escrevendo poesias, indo às reuniões em um centro espírita da cidade. Mas as poucas experiências que tive foram marcadas pelo olhar condicionado que nos sexualiza. Eu demorei a ter uma relação de verdade. Como mulher, eu era um produto que tinha como dono outro produto. Como negra, eu era um subproduto que tinha como dono outro subproduto. Um sub-subproduto. Todos tinham direitos sobre mim. Eu não tinha lugar nem na prateleira.
Quando saí com Allan, aos dezesseis anos, ele não quis andar de mãos dadas comigo ou me levar para tomar um refrigerante. Não perguntou sobre minha música favorita, se meus pais eram bravos, onde eu morava ou qual era a minha matéria preferida na escola. Ele não achou que eu merecia esse cuidado, vó. Após uma conversa-fiada, já quis logo se apossar de mim, sem saber que eu era filha da mulher que desafiou um patrão assediador segurando uma frigideira com óleo quente. Ele seria aquele que jamais tocaria em meus cabelos, mesmo querendo tocar no meu corpo. Eu era somente um instrumento de prazer, talvez uma iniciação para um garoto na puberdade, e não uma pessoa com quem ele gostaria de namorar.
Eu não sei como você criou meus tios, vó, mas todos parecem respeitosos com suas companheiras. Minha mãe, mesmo dando regalias aos meus irmãos em relação às tarefas domésticas, costumava ser brava quando o assunto era relacionamento. Sempre disse a eles que, se estivessem namorando e ela descobrisse que eles estavam traindo as namoradas, ela contaria. E uma vez ela fez isso mesmo. Uma moça ligou para um irmão meu e minha mãe logo percebeu do que se tratava. Quando ele levou a namorada pra jantar em casa, minha mãe a recebeu dizendo, sem o mínimo constrangimento: “Você sabe que ele fica recebendo ligação de outra mulher?”. Ela batia no peito dizendo que criaria homens dignos, que vigiaria tudo muito de perto. Meus irmãos só foram se relacionar de modo mais duradouro após a morte dela. Eles a respeitavam e temiam decepcioná-la.
Quando engravidei, torcia muito para não ser um menino, não porque não goste de meninos, claro que não, mas porque não me sentia preparada para educar um homem numa sociedade machista. Como ensiná-lo a ser decente num mundo que produz masculinidades tóxicas? Aos vinte e quatro anos, não me sentia nem um pouco preparada para essa tarefa. Anos depois, quando pensei em engravidar de novo, desejei um menino. Com mais de trinta anos, madura, eu saberia educá-lo, apresentar outras referências, ensiná-lo a ser criança e não menino. Passado um tempo, porém, decidi que não queria ter outro filho. Tenho sobrinhos e isso me satisfaz. São rapazes com caráter, você ficaria orgulhosa, vó. No entanto, as preocupações seguem as mesmas: cuidar para que eles sempre saiam com documentos, ensiná-los como proceder numa eventual parada da polícia, rezar para que eles cheguem em casa.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

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